terça-feira, 3 de setembro de 2019

MARIA APARECIDA BARBOSA | Teatro Surrealista – anotações sobre Yvan Goll


No prefácio de sua peça As mamas de Tirésias, publicada em 1917, o poeta Guillaume Apollinaire (1880-1918) defende a ação dinâmica: “eu a (a peça) chamo de drama o que significa ação” Apollinaire 1917. E se coloca contra o princípio de verossimilhança do Naturalismo e a mimese teatral: “para tentar, se não uma renovação do teatro, pelo menos um esforço pessoal, pensei que seria necessário retornar à própria natureza, sem imitá-la à maneira da fotografia”.
Nesse ponto ele emprega então a célebre comparação entre a roda e a perna humana: ao tentar imitar o passo, o homem criou a roda, sem que essa se assemelhe à perna. “Sem sabê-lo, o homem agiu de modo surrealista”. A metáfora pode ser pensada no sentido de um apelo ao teatro baseado na realidade, mas que traga algo inusitado, a novidade espirituosa comparável à invenção da roda.
É nesse prefácio que Apollinaire diz que não pretende “desesperar” quem quer que seja com tons sombrios, antes agradar e entreter. Ao desdenhar, conforme diz em seguida, um teatro em voga que se dizia pensante, Apollinaire se posiciona claramente contrário aos princípios norteadores do teatro épico que almeja o espectador crítico através do “Verfremdungseffekt” (efeito de estranhamento), reflexões que Bertolt Brecht (1898-1956) desenvolverá mais tarde na teoria e na prática teatral.
Em outubro de 1924, o poeta e dramaturgo Yvan Goll (1891-1950) escreve a “Lettre a Guillaume Apollinaire”, a fim de justificar o resgate do termo “Surréalisme” na designação da revista da qual publicou um único número em 1924: “você deu, Guillaume […] sentido teórico e ao mesmo tempo o nome de batismo: o surrealismo, que nada tem em comum com o naturalismo realista”. Mas já antes disso Goll empregou o termo em outros contextos, por exemplo, em 1922 no prefácio, cuja tradução apresento abaixo, à peça Matusalém ou o eterno Burguês – drama satírico.
Em francês, a peça Matusalém é publicada pela Editions de La Sirène de Paris, em 1923, e representada no Teatro Michel, naquela cidade, em 1927. No elenco, a participação de um ator que, sob o olhar retrospectivo, torna-se interessante: Antonin Artaud. A versão alemã foi editada por Kiepenheuer, na Berlim de 1922, com três ilustrações do caricaturista George Grosz. A peça teve estreia no Dramatisches Theater de Berlim, em outubro de 1924, com direção de William Dieterle. Os figurinos da peça de Goll ficaram a cargo de Grosz.
Após a derrocada da Revolução Spártacus na Berlim de 1919, quando Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht foram assassinados, a peça critica a alienada burguesia, e trata da “Novemberrevolution” (Revolução Alemã de 1918). Os animais falantes – gato, cachorro, urso, cuco, macaco, papagaio e cervo –, a cisão do protagonista – em eu, ele e tu –, além de seus três sonhos (que devem ser projetados cinematograficamente, segundo o livro) constituem características de um teatro surrealista que acentua imagens do inconsciente humano.
A querela entre Goll e André Breton (1896-1966) quanto à herança da tradição surrealista de Apollinaire se escala gradativamente durante os anos 20 através de uma série de manifestos de ambos os lados, trocas de correspondências e insultos, e atinge o clímax em 1926 durante um sarau artístico da dançarina Valeska Gert organizado por Goll no teatro parisiense Folies Bergére, quando a polícia precisou intervir para amainar os ânimos.
Em consonância com a metáfora da roda, Breton também deseja eliminar o pensamento crítico e dar lugar à criatividade inconsciente de maneira irrestrita: “funcionamento real do pensamento, isento de qualquer controle exercido pela razão ou de qualquer preocupação estética ou moral” (Primeiro Manifesto Surrealista, 1924 ).
Quando acusa a “lógica matemática e a dialética em sua mais profunda e íntima falsidade”, a concepção artística de Goll se afina com a de Breton. Mas logo na abertura do primeiro manifesto, Breton explica o surrealismo como “n.m. Automatismo psíquico puro pelo qual alguém se propõe a exprimir, seja verbalmente, por escrito ou outra maneira qualquer, o funcionamento real do pensamento”.
Quanto a isso, é possível ver que diferentemente Goll deplora a verborragia autômata do homem comum na dramaturgia poética. O que ele enaltece é a “inocência primitiva” (primitive Naivität) de uma naturalidade infantil e lúdica, que o teatro se empenha em oferecer. Na revista Surrèalisme, rejeitando tanto a aplicação das doutrinas psicanalíticas de Freud na literatura quanto a noção de um “mecanismo psíquico baseado no sonho e no jogo desinteressado do pensamento”, Goll afirma que a realidade da vida é que tem sempre razão e o surrealismo poético seria a “transposição da realidade num plano superior (artístico)”.
É na busca da linguagem ingênua e genuína semelhante à dos africanos que talvez seja possível situar a coerência e a constância do trabalho de Goll. Isso se depreende do “Avant-propos” da coletânea poética Les cinq Continentes – antologie mondiale de poésie contemporaine que ele organizou em 1922, bem como de vários ensaios, poemas e artigos sobre a poesia negra acessíveis sobretudo na revista Die Aktion editada por Franz Pfemfert (uma publicação que em princípio manteve orientação expressionista, mas sempre foi aberta a contribuições da esquerda).
Entre 1926 e 1927, um diálogo artístico profícuo se entabula entre Goll e o compositor Kurt Weill, que colaborou com Brecht dentre outras composições musicais com a Ópera dos três vinténs para a peça homônima. Deixo em aberto o encontro e as potenciais possibilidades da parceria entre poesia e música:

No Berliner Romanischer Café se encontravam literatos, artistas e músicos do mundo inteiro. Aqui se sentou certa vez Kurt Weill com um homem pálido e magro, que recém-chegara de Paris. Ele se chamava Yvan Goll e, nascido na Alsácia, fizera fama com a poesia fantástica expressionista composta em duas línguas (Stuckenschmidt 1971).


PREFÁCIO DA PEÇA MATUSALÉM OU O ETERNO BURGUÊS – UM DRAMA SATÍRICO, DE YVAN GOLL
[tradução de Maria Aparecida Barbosa]

Aristófanes, Plauto, Molière tiveram sorte: logravam ótimo efeito pelo meio mais simples do mundo: na base do cacete ou da paulada simbólica. Essa inocência nós perdemos. O palhaço no circo e Carlitos no cinema ainda dão bofetadas: e esses são os momentos em que o público pelo menos ri. A inocência primitiva está em falta. Será que tem uma relação com o apuramento de nosso ethos? Pode ser. Mas o do povo também? Mesmo nas casernas hoje em dia o castigo físico é proibido: na época de Aristófanes e Molière, não.
Na verdade, o homem moderno anda mais raramente armado com cacete do que com revólver. Mas tiro surte efeito menos cômico que paulada.
A sátira moderna precisa buscar novas maneiras de seduzir. E os encontra no surrealismo e no absurdo. Desmascara-se a realidade aparente, em favor da verdade intrínseca. “Máscaras”, mau-acabamento, grotesco, feito os sentimentos que expressam. Não mais “heróis”, mas, sim, pessoas, não mais caracteres, mas instintos puros. Nus e crus. Para se conhecer um inseto é necessário dissecá-lo. O dramaturgo é um pesquisador, um político e um legislador. Como surrealista, estabelece coisas de um distante reino, da verdade que ele ausculta ao pousar o ouvido sobre as cerradas paredes do mundo.
Absurdo hoje em dia é o humor espirituoso, ou seja, o melhor remédio contra as frases que grassam por aí. O homem fala no cotidiano quase exclusivamente para pôr a língua, não o espírito, em movimento. Para que falar tanto e tão literalmente! O homem comum está de tal modo suscetível a isso, que por qualquer palavra figurada se ofende e aposta vingança de morte.
O absurdo dramático deve ridicularizar todas as frases banais, tocar a lógica matemática e a dialética em sua mais profunda e íntima falsidade. E ao mesmo tempo, o absurdo servirá para desvendar o cérebro humano em suas circunvoluções intermitentes, sendo que uma pensa, outra fala e divaga errante de um pensamento a outro, sem o mínimo senso aparente-lógico.
Mas para não ser choramingas, pacifista ou politicamente correto, o poeta tem ainda de se contorcer para que vocês virem crianças. Pois é o que ele quer: dar-lhes bonecos, ensinar-lhes a brincar e depois jogar fora os cacos dos brinquedos quebrados.
Ação dramática? Os fatos estão impregnados de tal força, que bastam por si sós. Alguém atropelado na rua: um incidente se adentrando incisivo e implacável pela vida do mundo. Por que se chama de trágica somente a morte humana? Uma conversa de cinco frases com um desconhecido pode assinalar um efeito trágico contundente e eterno.
A peça teatral deve constituir-se sem início nem fim, como tudo cá embaixo. Mas num certo momento deve acabar, por que será? Não, a vida prossegue, todo mundo sabe disso. A peça, contudo, tem um final, porque vocês se cansam, velhos de uma hora para a outra, e porque a verdade, o mais intenso veneno para o coração humano, deve ser ingerida somente em doses homeopáticas.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Rachel Baes (Bélgica, 1912-1983)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 143 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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