No prefácio de sua peça As mamas de Tirésias, publicada em 1917, o poeta Guillaume Apollinaire
(1880-1918) defende a ação dinâmica: “eu a (a peça) chamo de drama o que significa
ação” Apollinaire 1917. E se coloca contra o princípio de verossimilhança do Naturalismo
e a mimese teatral: “para tentar, se não uma renovação do teatro, pelo menos um
esforço pessoal, pensei que seria necessário retornar à própria natureza, sem imitá-la
à maneira da fotografia”.
Nesse
ponto ele emprega então a célebre comparação entre a roda e a perna humana: ao tentar
imitar o passo, o homem criou a roda, sem que essa se assemelhe à perna. “Sem sabê-lo,
o homem agiu de modo surrealista”. A metáfora pode ser pensada no sentido de um
apelo ao teatro baseado na realidade, mas que traga algo inusitado, a novidade espirituosa
comparável à invenção da roda.
É nesse
prefácio que Apollinaire diz que não pretende “desesperar” quem quer que seja com
tons sombrios, antes agradar e entreter. Ao desdenhar, conforme diz em seguida,
um teatro em voga que se dizia pensante, Apollinaire se posiciona claramente contrário
aos princípios norteadores do teatro épico que almeja o espectador crítico através
do “Verfremdungseffekt” (efeito de estranhamento), reflexões que Bertolt Brecht
(1898-1956) desenvolverá mais tarde na teoria e na prática teatral.
Em
outubro de 1924, o poeta e dramaturgo Yvan Goll (1891-1950) escreve a “Lettre a
Guillaume Apollinaire”, a fim de justificar o resgate do termo “Surréalisme” na
designação da revista da qual publicou um único número em 1924: “você deu, Guillaume
[…] sentido teórico e ao mesmo tempo o nome de batismo: o surrealismo, que nada
tem em comum com o naturalismo realista”. Mas já antes disso Goll empregou o termo
em outros contextos, por exemplo, em 1922 no prefácio, cuja tradução apresento abaixo,
à peça Matusalém ou o eterno Burguês – drama
satírico.
Em
francês, a peça Matusalém é publicada
pela Editions de La Sirène de Paris, em 1923, e representada no Teatro Michel, naquela
cidade, em 1927. No elenco, a participação de um ator que, sob o olhar retrospectivo,
torna-se interessante: Antonin Artaud. A versão alemã foi editada por Kiepenheuer,
na Berlim de 1922, com três ilustrações do caricaturista George Grosz. A peça teve
estreia no Dramatisches Theater de Berlim, em outubro de 1924, com direção de William
Dieterle. Os figurinos da peça de Goll ficaram a cargo de Grosz.
Após
a derrocada da Revolução Spártacus na Berlim de 1919, quando Rosa Luxemburg e Karl
Liebknecht foram assassinados, a peça critica a alienada burguesia, e trata da “Novemberrevolution”
(Revolução Alemã de 1918). Os animais falantes – gato, cachorro, urso, cuco, macaco,
papagaio e cervo –, a cisão do protagonista – em eu, ele e tu –, além de seus três
sonhos (que devem ser projetados cinematograficamente, segundo o livro) constituem
características de um teatro surrealista que acentua imagens do inconsciente humano.
A querela
entre Goll e André Breton (1896-1966) quanto à herança da tradição surrealista de
Apollinaire se escala gradativamente durante os anos 20 através de uma série de
manifestos de ambos os lados, trocas de correspondências e insultos, e atinge o
clímax em 1926 durante um sarau artístico da dançarina Valeska Gert organizado por
Goll no teatro parisiense Folies Bergére, quando a polícia precisou intervir para
amainar os ânimos.
Em
consonância com a metáfora da roda, Breton também deseja eliminar o pensamento crítico
e dar lugar à criatividade inconsciente de maneira irrestrita: “funcionamento real
do pensamento, isento de qualquer controle exercido pela razão ou de qualquer preocupação
estética ou moral” (Primeiro Manifesto Surrealista,
1924 ).
Quando
acusa a “lógica matemática e a dialética em sua mais profunda e íntima falsidade”,
a concepção artística de Goll se afina com a de Breton. Mas logo na abertura do
primeiro manifesto, Breton explica o surrealismo como “n.m. Automatismo psíquico
puro pelo qual alguém se propõe a exprimir, seja verbalmente, por escrito ou outra
maneira qualquer, o funcionamento real do pensamento”.
Quanto
a isso, é possível ver que diferentemente Goll deplora a verborragia autômata do
homem comum na dramaturgia poética. O que ele enaltece é a “inocência primitiva”
(primitive Naivität) de uma naturalidade infantil e lúdica, que o teatro se empenha
em oferecer. Na revista Surrèalisme, rejeitando
tanto a aplicação das doutrinas psicanalíticas de Freud na literatura quanto a noção
de um “mecanismo psíquico baseado no sonho e no jogo desinteressado do pensamento”,
Goll afirma que a realidade da vida é que tem sempre razão e o surrealismo poético
seria a “transposição da realidade num plano superior (artístico)”.
É na
busca da linguagem ingênua e genuína semelhante à dos africanos que talvez seja
possível situar a coerência e a constância do trabalho de Goll. Isso se depreende
do “Avant-propos” da coletânea poética Les
cinq Continentes – antologie mondiale de poésie contemporaine que ele organizou
em 1922, bem como de vários ensaios, poemas e artigos sobre a poesia negra acessíveis
sobretudo na revista Die Aktion editada
por Franz Pfemfert (uma publicação que em princípio manteve orientação expressionista,
mas sempre foi aberta a contribuições da esquerda).
Entre
1926 e 1927, um diálogo artístico profícuo se entabula entre Goll e o compositor
Kurt Weill, que colaborou com Brecht dentre outras composições musicais com a Ópera dos três vinténs para a peça homônima.
Deixo em aberto o encontro e as potenciais possibilidades da parceria entre poesia
e música:
No Berliner Romanischer Café se encontravam literatos,
artistas e músicos do mundo inteiro. Aqui se sentou certa vez Kurt Weill com um
homem pálido e magro, que recém-chegara de Paris. Ele se chamava Yvan Goll e, nascido
na Alsácia, fizera fama com a poesia fantástica expressionista composta em duas
línguas (Stuckenschmidt
1971).
PREFÁCIO DA PEÇA MATUSALÉM OU O ETERNO BURGUÊS – UM
DRAMA SATÍRICO, DE YVAN GOLL
[tradução de Maria Aparecida
Barbosa]
Aristófanes, Plauto, Molière tiveram sorte: logravam
ótimo efeito pelo meio mais simples do mundo: na base do cacete ou da paulada simbólica.
Essa inocência nós perdemos. O palhaço no circo e Carlitos no cinema ainda dão bofetadas:
e esses são os momentos em que o público pelo menos ri. A inocência primitiva está
em falta. Será que tem uma relação com o apuramento de nosso ethos? Pode ser. Mas
o do povo também? Mesmo nas casernas hoje em dia o castigo físico é proibido: na
época de Aristófanes e Molière, não.
Na verdade, o homem moderno anda mais raramente armado
com cacete do que com revólver. Mas tiro surte efeito menos cômico que paulada.
A sátira moderna precisa buscar novas maneiras de seduzir.
E os encontra no surrealismo e no absurdo. Desmascara-se a realidade aparente, em
favor da verdade intrínseca. “Máscaras”, mau-acabamento, grotesco, feito os sentimentos
que expressam. Não mais “heróis”, mas, sim, pessoas, não mais caracteres, mas instintos
puros. Nus e crus. Para se conhecer um inseto é necessário dissecá-lo. O dramaturgo
é um pesquisador, um político e um legislador. Como surrealista, estabelece coisas
de um distante reino, da verdade que ele ausculta ao pousar o ouvido sobre as cerradas
paredes do mundo.
Absurdo hoje em dia é o humor espirituoso, ou seja,
o melhor remédio contra as frases que grassam por aí. O homem fala no cotidiano
quase exclusivamente para pôr a língua, não o espírito, em movimento. Para que falar
tanto e tão literalmente! O homem comum está de tal modo suscetível a isso, que
por qualquer palavra figurada se ofende e aposta vingança de morte.
O absurdo dramático deve ridicularizar todas as frases
banais, tocar a lógica matemática e a dialética em sua mais profunda e íntima falsidade.
E ao mesmo tempo, o absurdo servirá para desvendar o cérebro humano em suas circunvoluções
intermitentes, sendo que uma pensa, outra fala e divaga errante de um pensamento
a outro, sem o mínimo senso aparente-lógico.
Mas para não ser choramingas, pacifista ou politicamente
correto, o poeta tem ainda de se contorcer para que vocês virem crianças. Pois é
o que ele quer: dar-lhes bonecos, ensinar-lhes a brincar e depois jogar fora os
cacos dos brinquedos quebrados.
Ação dramática? Os fatos estão impregnados de tal força,
que bastam por si sós. Alguém atropelado na rua: um incidente se adentrando incisivo
e implacável pela vida do mundo. Por que se chama de trágica somente a morte humana?
Uma conversa de cinco frases com um desconhecido pode assinalar um efeito trágico
contundente e eterno.
A peça teatral deve constituir-se sem início nem fim,
como tudo cá embaixo. Mas num certo momento deve acabar, por que será? Não, a vida
prossegue, todo mundo sabe disso. A peça, contudo, tem um final, porque vocês se
cansam, velhos de uma hora para a outra, e porque a verdade, o mais intenso veneno
para o coração humano, deve ser ingerida somente em doses homeopáticas.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Rachel Baes
(Bélgica, 1912-1983)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 143 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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