sábado, 30 de novembro de 2019

20 ANOS O MUNDO CONOSCO – Parte 9


FLORIANO MARTINS | A perenidade exaltada da Agulha Revista de Cultura

Em 2007 a Agulha Revista de Cultura recebeu o Prêmio Antonio Bento, da ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte, como melhor veículo de comunicação no país. Em 2009 fui convidado para ser o curador geral da VIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, ocasião em que se resolveu homenagear todas as culturas de línguas portuguesa e espanhola, em um evento bastante singular por sua imperativa elasticidade no volume de convidados e sua correspondente pauta de atividades. Ao participar de uma mesa-redonda, disse algumas palavras que acabam por situar o projeto daquela edição da Bienal como uma extensão do trabalho editorial da Agulha Revista de Cultura:

Creio que a perspectiva internacionalista evocada pelo tema aqui proposto nos leva a pensar acerca do funcionamento de uma política cultural do Estado. A ausência de um mecanismo desta natureza, em defesa do patrimônio artístico brasileiro, tem sido uma preocupação sempre isolada de alguns gestores culturais, artistas e intelectuais. Áreas da criação que dão mais visibilidade encontram melhor oportunidade, porém não de forma sistemática ou de relevância crítica. Também o Estado opera de maneira oportunista em geral sensibilizando-se por uma agenda de efemérides.
Evidente que sempre que falo em Estado aqui eu me refiro à esfera nacional.
O escritor brasileiro, de uma maneira geral, está (sempre esteve) por conta própria, de tal forma que nossa literatura sequer deve ser pensada como um ingrediente do patrimônio cultural brasileiro. Sua internacionalização – que não é tanta ao ponto de corresponder à sua grandeza – se deu quase sempre por esforços movidos pelos próprios escritores e, em grande parte, por seus tradutores. Foi graças a Curt Meyer-Clason que João Guimarães Rosa teve a quase totalidade de sua obra publicada na Alemanha. Há também o caso em que a literatura brasileira se difunde no exterior por interesse da política cultural de um outro país, que reconhece sua qualidade e a exigência natural de que a mesma integre um catálogo editorial internacional. Um exemplo que se pode mencionar aqui é o da Fundación Biblioteca Ayacucho, na Venezuela, que tem publicado mais de duas dezenas de autores brasileiros, em obras críticas que abrangem poesia, crônica, conto, romance, filosofia, sociologia e crítica literária. Ali estão autores como Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego, Oswald de Andrade.
Há dois anos fui convidado para preparar aquela que seria a primeira edição bilíngue desta já plenamente consolidada coleção, um volume crítico dedicado à poesia de Carlos Drummond de Andrade. Enquanto preparava este livro, confirmei que Drummond é o poeta brasileiro mais publicado no exterior. É também o mais publicado em espanhol, embora tenham se passado mais de três
décadas desde a última edição de um livro seu neste idioma. Drummond volta então à circulação em âmbito espanhol por conta do reconhecimento de uma grande casa editorial venezuelana. No entanto, o livro até este momento não saiu. E aqui entra um outro ingrediente que não é particularidade brasileira, porém nos confunde a todos. O livro não saiu porque a guarda dos direitos autorais de Drummond está em mãos de um neto advogado que reside em Buenos Aires e que… Bom, não nos cabe agora discutir os dividendos que familiares cobram pela memória de seus mortos. O caso é que temos um forte agregado à ausência de política cultural do Estado em relação à difusão internacional de nosso patrimônio literário.
Passemos a página.
Para entender melhor o que digo a respeito do tema, gostaria de mencionar outro exemplo. Desde 2004 o governo português disponibiliza uma verba anual para editoras brasileiras interessadas em publicar autores não somente de Portugal, mas também da África Portuguesa. Graças a este convênio dezenas de autores portugueses foram já publicados no Brasil. A Escrituras Editora, de São Paulo, chegou a criar uma coleção, de nome Ponte Velha, que atende a este notável empenho do Estado, no caso o governo português, no que diz respeito ao que efetivamente se deve chamar de política cultural. Ao meu lado encontra-se o editor Raimundo Gadelha, que certamente terá muito a comentar.
Não há no Brasil um correspondente a este tipo de ação cultural? A Biblioteca Nacional possui um programa de apoio à tradução de autores brasileiros para o espanhol? Em 2006 a Agulha Revista de Cultura divulgou o regulamento para editoras em vários países de língua espanhola. Os casos que manifestaram interesse não foram atendidos. O que nos leva a mais um ingrediente, o da ação política interferindo nos destinos da cultura. Recapitulando temos que o Estado se ausenta, o acaso insiste, os herdeiros cobram lucros impensáveis, o acaso insiste, o Estado se deixa manipular por sua política de costumes, o acaso insiste. E nesta ciranda encontra-se entregue o destino da literatura brasileira em seu imperativo de internacionalização.

Em boa hora a referência à coleção Ponte Velha da Escrituras Editora, que eu coordenei por cinco anos, tendo ali organizado a edição de obras completas, antologias ou mesmo volumes esparsos de 30 destacados nomes na tradição lírica de língua portuguesa (excetuando o Brasil, país-editor). Foram publicados livros de autores como Cruzeiro Seixas, João Barrento, Maria Estela Guedes, Luiza Neto Jorge, Luiz Pacheco, Armando Silva Carvalho, Ana Hatherly, Maria Tereza Horta, Fernando Echevarría, entre outros. Uma vez mais tratei ali de imprimir o selo espiritual da Agulha Revista de Cultura, em sua amplitude universalista.
A respeito da ausência do Estado, vale recordar o que acrescentei, em entrevista que concedi a Álvaro Alves de Faria, em 2007:

Não há reciprocidade em nenhum dos dois aspectos aqui mencionados, ou seja, não há apoio do nosso Ministério da Cultura para a publicação de autores brasileiros em Portugal, nem há ali (e não diria por consequência) sistematização na presença editorial de nossos escritores. Por outro lado, tem sido quase insignificante a recepção dada pela imprensa a este fato editorial. Mantém-se no Brasil certa fixação por modismos e por aspectos pitorescos, alguns até bem atléticos, o que acaba por conduzir a uma atrofia do ponto de vista de percepção do objeto estético em seu valor intrínseco. Naturalmente não é este o espírito que norteia a aposta editorial da Escrituras e sua coleção Ponte Velha.

Outra referência ao mesmo espírito são as nossas parcerias estabelecidas, ao longo de duas décadas, com publicações similares, tais como Matérika (Costa Rica), La Otra e Blanco Móvil (ambas no México), TriploV (Portugal). Seus editores, respectivamente, Alfonso Peña, José Ángel Leyva, Eduardo Mosches e Maria Estela Guedes, generosamente propiciaram a realização de projetos paralelos que incluíam a publicação de livros e organização de edições especiais de suas revistas. Também por ocasião da referida Bienal, foram publicados pela primeira vez no Brasil, livros de Juan Gelman, Pablo Antonio Cuadra e uma antologia de jovens poetas mexicanos. O caso específico de Maria Estela Guedes foi ainda mais ousado, considerando que em 2009 criamos uma revista paralela, Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, cuja parceria rendeu a edição de cinco números. Na mesma ocasião, concluo a primeira fase da Agulha Revista de
Cultura e passo a editar a Agulha Hispânica, por dois anos, voltada exclusivamente para assuntos ligados à cultura e às artes nos países hispano-americanos. Com os planos de retomar a edição da Agulha e a criação de um selo editorial, ARC Edições, não houve como seguir no trabalho de coedição com a Maria Estela Guedes, e coube a ela seguir sozinha, o que faz brilhantemente até hoje.
Reproduzo aqui o trecho final de informativa entrevista que nos fez Luís Reis, em 2009, quando anunciamos a edição da referida parceria:

MARIA ESTELA GUEDES | A Agulha, já o disse, é neste momento a mais importante publicação electrónica em língua portuguesa. A sua importância é intrínseca, como repositório de informação e  cultura literária, e extrínseca, por isto se entendendo que a sua esfera de influência ultrapassa as fronteiras do virtual para interagir com o presencial. Claudio Willer e Floriano Martins, editores da Agulha, estabeleceram contato com inúmeros escritores brasileiros e de outros países e promoveram o contato entre eles. São embaixadores do Brasil no mundo.
O TriploV é mais novo dois anos, sempre foi mais pluridisciplinar e por isso pode parecer caótico, os meus critérios de publicação têm sido mais estratégicos do que estéticos, e para além disso é-me difícil falar de mim. De qualquer modo, os resultados e a esfera de ação de ambos é similar. O TriploV também é um veículo poderoso, em termos de audiência.

FLORIANO MARTINS | A Agulha Revista de Cultura me parece que cumpriu, em seus 10 anos de aventura editorial, o papel que motivou sua existência: o de transformar-se em uma mesa de debate dos principais temas que envolvem a cultura e as artes em nosso tempo. Quando surgimos não havia este espaço na imprensa no Brasil. Virtual ou impressa, esta área permanece ainda com enorme carência, já quase de todo naufragada nas águas do entretenimento, sem oferecer ao público um espaço de reflexão, conhecimento, multiplicidade de oportunidades, e não apenas a informação com caráter comercial. Em geral, a imprensa trata seu público como mero cliente, o que é uma lástima, e a área do chamado jornalismo cultural acabou adotando a fórmula. Agulha foi um espaço praticamente solitário, ao longo de uma década e com 70 números publicados, uma mesa farta que tem em seu acervo – sua madeira de lei – uma média de 1.800 ensaios e entrevistas, os mais diversos temas, verdadeira prática de política cultural em um país mais afeito ao fuxico cultural. E foi além da simples edição de seus números: seus editores foram convidados para eventos literários em diversos países; definiu contratos editoriais, seja na área de poesia, ensaio ou tradução; formou parcerias com grupos editoriais também em âmbito internacional; ampliou o espaço de difusão de inúmeras revistas, inclusive com um intercâmbio de edições especiais dedicadas a alguns países; e claro: agora estamos aqui, dando a este caráter cultural uma nova configuração, através da criação da Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências. Evidente que a Agulha Revista de Cultura tornou-se um consistente veículo de reflexão e circulação de ideias. Sem dúvida que seus leitores se reconhecem nela.

Um aspecto que sempre se pôs em destaque, para o bem ou para o mal, foi o vínculo da Agulha Revista de Cultura com o Surrealismo. Na parte inicial do editorial que escrevi para o número 4 da Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, em 2010, observei o que segue:

Editores da Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências iniciaram 2010 indo aos Estados Unidos. Maria Estela Guedes flanou pelas ruas de Nova York, fotografando e visitando maravilhas. Tão logo retornou a Portugal tratou de dar uma conferência no “Encontro Internacional sobre Realismos Antigos e Novos”, no Instituto Científico Bento da Rocha Cabral (Lisboa, fevereiro de 2010). O texto, intitulado “Realismos em Nova Iorque”, encontra-se publicado no presente número, e trata com fascinante pluma de estabelecer um parâmetro entre arte e realismo, pontuando eventos artísticos em cartaz em Nova York, em uma leitura algo polêmica e que pode ser entendida como contraponto ao trabalho que foi realizar no mesmo país o outro editor de nossa revista. Este, Floriano Martins, por sua vez, ainda se encontra por lá, precisamente em Ohio, como professor visitante da Universidade de Cincinnati, convidado para dar o seminário “Correntes de vanguarda na América Latina”. Ao tratar essencialmente do surrealismo, o seminário o faz revendo precursores, comentando as diversas vanguardas europeias e os movimentos ligados à contracultura na América dos anos 1960 do século passado. Destinado a um curso de doutoramento, coordenado pelo poeta e ensaísta Armando Romero, o conteúdo do seminário, que se distribui por 30 horas ao longo de 10 semanas, inclui material previamente distribuído aos alunos para diálogo em classe, apresentação de documentários e audiovisuais, oficina de colagens, jogos, enquetes etc., concluindo-se com a entrega de resenhas sobre diversos livros indicados aos alunos no início do curso. São livros de poetas como Ludwig Zeller, Braulio Arenas, Juan Calzadilla, Claudio Willer, entre outros. A dinâmica tem permitido aos estudantes um melhor aproveitamento do tema, inclusive não evitando as críticas eventuais ao surrealismo, bem como avaliando seus diversos desdobramentos, dos mais ortodoxos – em grande parte apenas mera diluição do que se pretendia há quase um século – aos mais consistentes e renovados.

Dada a importância inquestionável do Surrealismo e sua leitura quando muito avessa disseminada no Brasil, era antes de tudo uma questão de honestidade intelectual dos editores da Agulha Revista de Cultura dar ao tema a visibilidade crítica que ele impunha. Aos inúmeros ensaios que
dedicamos ao tema, Claudio Willer e eu, se somam livros que publiquei, tais como Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (México, 2015) e Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América (Brasil, 2016).
Esta memória que trato de registrar agora imprime naturalmente coerência editorial a um trabalho que me define como intelectual atuante e do qual me orgulho. Antes mesmo da Agulha Revista de Cultura eu já havia tecido o caminho que deveria tomar, em publicações como o jornal Resto do Mundo e a revista Xilo, respectivamente editadas em parceria com Sérgio Campos e Adriano Espínola. Não apenas no que diz respeito à natureza das publicações, mas também no espírito de cooperação, a imperativa necessidade de definir o mundo através da convivência.
Significativo avanço nas coordenadas de navegação da revista foi o encontro com o poeta e editor Márcio Simões, em 2012, o que nos levou a desenhar um projeto que envolvia novo design da revista, bem como a parceria editorial com os selos Sol Negro Edições e ARC Edições, que vínhamos já, isoladamente dirigindo. Márcio inicia comigo o que então chamávamos de fase II da Agulha Revista de Cultura, como editor assistente, cumplicidade que mantemos até hoje. Também situo de modo destacado a parceria com Leda Rita Cintra, da Editora Cintra, ao criarmos uma coleção de livros virtuais, de circulação pela Amazon, intitulada “O amor pelas palavras”, sem esquecer de mencionar que tais livros também podem ser adquiridos em sua versão impressa sob encomenda. Considerando a referência a 1919 como surgimento do Surrealismo, planejamos para 2019 a publicação de 24 edições quinzenais da revista dedicadas à comemoração crítica do centenário. Este mês de dezembro concluímos a pauta, e certamente surge nos leitores aquela natural preocupação com os desdobramentos da revista.
2020 será ano dedicado à organização interna, o que envolve primeiramente a criação de um índice geral de matérias, logo seguido da publicação de quatro volumes, pela referida coleção “O amor pelas palavras”, com a íntegra dos 20 anos de pauta da Agulha Revista de Cultura. Cumprida esta etapa de registro integral da revista, retornamos então com uma pauta renovada. Como disse um dos nossos colaboradores, 20 anos não é nada, de modo que estamos sempre começando. Nessa perenidade exaltada é que estimamos nossas vidas. Abraxas


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Juliana Hoffmann (Brasil, 1965)
Juliana Hoffmann


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 147 | Dezembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019


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