Floriano
Martins acaba de lançar, com o selo ARC Edições, a volumosa poesia completa Antes
que a Árvore se feche, cujo título foi extraído de um de seus extensos poemas,
constituindo significativo paideuma, posto que não necessariamente nos moldes dos
conceitos de Frobenius (Força interior) e de Pound (Renovação da tradição), tão
ao gosto dos concretos, pois nele também estão embutidas produções lavradas em parceria
com outros poetas, a exemplo do jogo coletivo “cadáveres esquisitos”, utilizado
na fase inicial da irrupção surrealista. Não deixa, contudo, de ser uma espécie
de sábia ordenação de artefatos poéticos, mapeamento das etapas evolutivas de sua
poesia, a partir de A outra ponta do homem (1998) até Atlas atrevido
(2018).
No
entanto, não se trata de um modelo ou sistema fechado. O próprio título do acervo,
ao contrário, explicita que se está diante de uma obra aberta (melhor dizendo: com
um final aberto) nos campos da criação e do ato interpretativo, regida pela fruição
(jouissante) reveladora de labiríntica matéria-prima vocacionada à emoção
estética, prenhe de peculiares instâncias orgânicas, impondo-se como coerente estatuto
poético, imantado pela originalidade do patrimônio literário, além de corresponder,
em certa medida, ao correlato objetivo de que falava Eliot, mormente ao tratar do
conjunto acabado de obra(s) de um autor.
Nem
por isso será adotado, sem reservas, o denominado close reading (ponto de
vista voltado às palavras) no aflorado exame (salientando-se o nível semântico)
dos elementos internos da materialidade linguística, considerando os poemas (ou
metapoemas) como organismos dinâmicos, pautados por ambuiguidades e tensões, mas
sem radical preocupação discursivo-estrutural.
Como
leitor-polo da vultosa obra, porém, sabedor da dificuldade do total desnudamento
dos enigmas e armadilhas da linguagem mascarada, às vezes obscura e impenetrável,
impulsionada por escavações arqueológicas dos signos do cosmos vocabular do autor,
de movimentos circulares e mutantes, inclusive nas entrelinhas dos poemas, parece-me
ser útil a Estética da Recepção como critério analítico.
Percebe-se,
à partida, após a conclusão da leitura vertical do tecido desse painel, em que confluem
os movimentos surrealismo/barroco/simbolismo, os três permeados pelas características
musicalidade/visualidade/teatralidade, inerentes àquelas estratégias estilísticas,
respeitada a especificidade de cada qual, porque, convinhável é dizer, transitam
entre si sem pedir licença.
Alerta-se
que, antes de examiná-los, per se, convém apontar e justificar, em breves
linhas, essas características quase sempre entrelaçadas.
Digo
musicalidade inerente por que, — nessa árvore sígnica, cifrada, mitológica, subversiva,
proverbial, espontânea, erótica, lúdica, aforística, irônica e ousada (“as noites uivam feito um pulmão repleto de música”),
plantada sob o fluxo e o influxo contínuos de relâmpagos/estilhaços/fagulhas (fragmentos
epopeicos), sob a qual o poeta dialoga consigo mesmo (prisioneiro da solidão) como
se genuflexo estivesse no confessionário, mergulhado em si (viagem de idas às profundezas
do ser e vindas à superfície onde sobram as inquietações), mas demonstrando empatia
com estranhos (nem sempre leitores ), apesar da catarse (derivada de uma memória
viciada ao recuperar o passado) ao retratar o mundo interior e exterior de ruínas
(carnavalização contida), — ela é fundamental ao emprestar, com apuro, velocidade
ao segmento rítmico nos versos em cadeia.
E
assim o é na conhecida concepção de Valéry, e melhor afeiçoada à de Pound (no sentido
de que a poesia se atrofia quando se afasta da música) para embalar a dicção da
imaginação fervente da matéria, propiciatória de manipuladas imagens profusas, intensas,
polivalentes e cúmplices de mistérios, espantos e tumultos numa espiral gozosa através
dos sentidos doados e de surpreendentes epifanias alquímicas.
Em
suma, atento o criador à sonoridade das camadas do poema, e ao valor mágico-musical
das palavras, construtores da partitura poética, sem desprezar o silêncio à maneira
de John Cage (“O ritmo é do silêncio que
nos recusa”).
Quanto
à inerência da visualidade, perpassa parte relevante dos poemas, confortada aos
conceitos horacianos relativos aos contrapontos ut poesis pictura (como a
poesia é pintura) e ut pictura poesis (como a pintura é poesia).
Nota-se,
com frequência, a eleição conceitual em consonância com ut poesis pictura,
dado o caráter pictórico de variados versos (“A árvore vermelha de Mondrian é o princípio da discórdia”), certa
plasticidade paralela à da linguagem (e por isso mesmo visual), relações entre o
verbal e o não-verbal, possibilitadoras da elaboração mental dos temas, quadros,
cenários e personagens. Aliás, ressalta-se que Stéphane Mallarmé concebia o poema
como um objeto pictórico-verbal.
Representativos,
entre outros, são os poemas escritos tendo como paradigmas/estímulos os desenhos
(Lembrança de homens que não existiam), gravuras em metal (O Sol e as
Sombras) e fotografias (Tabula Rasa) do artista plástico Valdir Rocha.
Afora as referências a Klee, van Gogh, Bacon, Blake, Goya, Bosch, e ao nosso Antônio
Bandeira, entre tantos trazidos à ribalta.
Ademais,
os livros componentes da obra compacta são ilustrados por Juliana Hoffmann (bem
como a capa), na pegada ut pictura poesis, embelezando-a sob o olhar estético.
Não é novidade, mas melhor conduz o rumo da leitura. No antigo Egito O Livro
dos Mortos continha imagética representação, avultando as Iluminuras medievais
e as ulteriores ilustrações de Dom Quixote, Eneida, As mil e uma
noites etc. etc. Afinal, o próprio Floriano Martins assegura que “o poema é uma pintura”, atestando sua
sensibilidade visual. Como sabido, além de poeta militante, ele é artista fazedor
de colagens e de intrigantes fotografias.
A
respeito da teatralidade (qualidade do que é teatral, por óbvio), conversam os poemas
com as mencionadas vertentes, dando-lhes tons dramatúrgicos, configurando-se, com
autonomia (ainda que não haja exterior espetáculo), porque “O Teatro não pode parar”, em um Teathron
(nada é mais possível do que o seu Teatro Impossível ) singular, ritualístico,
como fonte prazerosa, no plano espacial e no altiplano temporal, na tentativa de
superar, nesse ludismo quase infantil, as tensões, os conflitos e o sofrimento (pathos),
desencadeando uma dramaturgia poética de recorte surreal, barroco e/ou simbólico,
caracterizadora, com densidade metafórica, de sua pessoal e rica cosmovisão.
A
esta altura é de bom aviso sinalar a confluência dessas inclinações literárias,
muitas vezes entranhadas e superpostas.
Destaca-se
o surrealismo, que não rende homenagem
à tradição surrealista enquanto tal, de inspiração bretoniana, pondo-se a latere
do automatismo psíquico da fase inaugural. Não é, enfim, um típico poeta surrealista,
muito embora seja possível pinçar passagens de similar ressonância desde o primeiro
(“silêncio das cicatrizes traçadas nos
pulmões do kyrie eleison”), mediano (“lâmpadas descem as escadas em busca de presságios”) e último livro
enfeixado nessa montagem (“Temo pelos bigodes
cáusticos da solidão”).
Todavia,
não corresponde a um exagerado surrealismo metafísico, em que pese o viés transcendental
potencializado por certos deslocamento dos estados mentais flutuantes e pendulares
(consciência/inconsciência) na fatura imagética dos poemas como objeto estético,
haja vista o indeterminado balanço das associações livres, a par da anárquica e
dispersiva subversão cronológica dos polimorfos sintagmas, quando os devaneios,
geradores do delírio, se instauram mais agudos, por exemplo ao serem usadas repetições
(polissíndeto) como a da palavra-chave abismo, seduzido o poeta, na esteira
de Bachelard, pela imagem preferida (ideia nuclear até certo ponto melancólica),
que, com humor mais negro do que branco, arrasta as vozes do criador, incorporado
pelas fantasmas no caos consentido.
Essa
busca resultante da transcendência, catapultada pela circularidade abissal, nada
tem a ver com a metafísica. Daí que não vejo qualquer afinidade ou fervor nessa
domada incontinência verbal, notadamente nos poemas em prosa. Seria, quiçá, reflexão
ontológica, espécie de sabedoria poética ou aquele tipo de Poesia transcendental
fornida por Novalis (geminando-a com a Filosofia), ou, ainda, uma transcendentalidade
à moda de Emerson, sem intimidade com a metafísica de raízes neo-kantianas.
Parece-me
que se conecta com um surrealismo mais comportado (Martins abandonou o grupo surrealista
paulista em 1997). Até porque, se a linguagem é a Mansão do Ser (Heidegger), o poeta
estaria mais próximo da visão pessoana, a do verso “O que em mim sente 'stá pensando”. Sentimento e razão, a dor de pensar.
Observa-se,
então, que o surrealismo deste primoroso poeta passou a ser mitigado (afim ao de
Murilo Mendes, com recaídas cubistas), no curso do tempo (malgrado a paixão por
Benjamin Péret e Aimé Césaire), sendo in progress absorvido pelas teias do
barroco.
No
que tange à aura do barroco (vocábulo ambíguo devido às
vicissitudes semânticas), espargido com saliência maior em Alma em Chamas,
e diluídos temporalmente os traços capitais (não guardam os poemas relação direta
com a poesia antirrealista do século XVII (Luís de Góngora), também transfiguradores
do real, permissivos das oposições dualistas da coincidência dos contrários (coincidentia
oppositorum), sem maneirismo, no seu caso, apesar da ostentação, exuberância
e suntuosidade da linguagem elisiva e alusiva, mas à deriva dos artifícios ornamentais.
O
que há, no fundo, é um parentesco sentimental e espiritual, tendo influenciado,
inclusive, poetas como Jorge Guillén e Gerardo Diego, o expressionismo alemão dos
anos 20, e, na França, Valéry Larbaud, além da poesia simbolista (final do século
XIX e início do XX), com Stefan George e Mallarmé. Se inspirou o surrealista Benjamin
Crémiex, pode-se dizer o mesmo no tocante a Floriano Martins, agitado pelo sensorial
espírito dionisíaco e pelos mitos nietzschianos do eterno retorno.
Esse
fulgor e requinte são, em especial, encontradiços no encartado livro Alma em
Chamas acima noticiado (“Morta no desespero
do fogo, seu corpo desfigurado gelava a noite”), com o léxico opulento da
mesma sorte visto e lido em outros poemas (e na prosa poética), soltos ou agrupados,
gozado o mundo através dos sentidos (avultando as sensações cromáticas, tácteis
e olfativas), onde são intensos o erotismo (que insinua perversão), a carnalidade
e os retratos sensuais de mulheres (“gozem
sozinhas, e me enterrem no quintal” / “Teus gemidos projetam suas chamas em meu sexo” /
“Bendita seja forma de teu clitóris, e a noite que me consome”), inclusive aquelas em relação às quais se apropria da persona feminina no domínio da alteridade (“Meus mamilos queimavam” / Minha nudez de bruços espalhada pelo sofá”), nesse estágio secularizando o transcendente (“Vamos desenhar a espinha dorsal de um enigma”), ao tematizar, pelo fusionismo (unificação dos pormenores), a ilusão e a fugacidade da vida, visando à unidade das contradições com o poder crepitante das metáforas (“Comporta-se o náufrago como um farol caído”) de misteriosa expressividade, objetivando, com esses contornos de multifacetado estilo, o alegre advento das maravilhas e das surpresas (construção zeugmática das frases), de tal arte que, em paralelo, se aproxima da poesia simbólica.
“Bendita seja forma de teu clitóris, e a noite que me consome”), inclusive aquelas em relação às quais se apropria da persona feminina no domínio da alteridade (“Meus mamilos queimavam” / Minha nudez de bruços espalhada pelo sofá”), nesse estágio secularizando o transcendente (“Vamos desenhar a espinha dorsal de um enigma”), ao tematizar, pelo fusionismo (unificação dos pormenores), a ilusão e a fugacidade da vida, visando à unidade das contradições com o poder crepitante das metáforas (“Comporta-se o náufrago como um farol caído”) de misteriosa expressividade, objetivando, com esses contornos de multifacetado estilo, o alegre advento das maravilhas e das surpresas (construção zeugmática das frases), de tal arte que, em paralelo, se aproxima da poesia simbólica.
O
simbolismo,
ou, melhor dito, a serventia dos símbolos nos poemas, atravessa toda a produção,
sem decalque na Escola Simbolista, valendo-se das sugestões, das correspondências
de sotaque baudelairiano (mais rimbaudiano na prosa poética), numa linguagem um
tanto falocêntrica, sinestésica, variando a imagética simbólica quando se imiscui
nas órbitas surreal e barroca.
Quando
a imagem se põe mais pura com o símbolo eleito (em geral de feição erudita), imbrica-se
com o lirismo que passeia com desenvoltura, visto como “o desenvolvimento de um
grito”, para usar as palavras de Valéry, no momento do aperfeiçoamento do caráter
musical do poema (ritmo/melodia/harmonia).
Tudo
decorre de um simbolismo energético, na toada do discurso livre, indireto, como
componente demiúrgico (função poética), associado, no instante da imaginação excitada
(e seus punti luminosi), ao mito da queda, o criador compartilhando o eu-lírico
(o eu é o seu abismo) de estrato subliminar.
É
preciso ser um poeta magnífico, de indiscutível excelência, como Floriano Martins,
devotado ao sagrado, para conciliar, com naturalidade, esses movimentos constituintes
de uma estrutura azeitada, coesa, não obstante as transeuntes peculiaridades, transformando-as
em uma obra poética complexa, de qualidade perene, pós-moderna, na expectativa de
que as gerações futuras possam degustá-la quando se depararem com o paideuma de
nossa época, vertido ou não em outras formas de expressão estético-literária.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 151 | Março de 2020
Artista convidado: Lia Testa (Brasil, 1977)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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