segunda-feira, 8 de junho de 2020

AFONSO HENRIQUES NETO | Artur do Cruzeiro Seixas, pintor de prodígios


Não haver tempo, lugar. Os pássaros das luas delirantes, espaços de abstrações flutuantes, os olhos abertos em infinito, o que dizer das imaginações, das imagens de assombro tecidas pelo pintor-poeta português Artur do Cruzeiro Seixas? Os híbridos são tigres de espanto que saltam do invisível e vêm mostrar as vísceras transparentes em uma corredeira de sonhos e prodígios.
Senão vejamos. O Surrealismo continua a ser, para mim, a mais segura prova de que as mãos do homem o podem manter, suspenso, sobre o precipício (esta, a palavra do pintor-poeta). Ouço (ainda diz ele), monótono, o ruído do mar no convés da cidade. Vejo os livros, que são ilhas. E o mar, devolvendo os náufragos (flutuações do poeta-pintor). A tua boca adormeceu, parece um cais muito antigo à volta da minha boca (navega o poema). E súbito um cão fantasma rosna no vazio, fruto que a tudo recobre com universal uivo. Aquele relógio das horas de ouro que muito além viaja. Esta, a grande homenagem à Realidade (ironiza o artista), sorriso imenso de Cruzeiro Seixas, que neste 2020 completa cem anos de vida em sol intenso. Celebremos.
René Char diz que se habitamos um relâmpago, ali está o coração do eterno. Cruzeiro Seixas haveria de muito bem desenhar em torno dessa ideia extensa coleção de seres transtornados, fieira de relâmpagos mudos entre corpos híbridos. Comoção derramada nos abismos. Eternidade bela, imóvel, uma pedra que ardesse para sempre. Mulher com nádegas de primavera, caro Breton, a abrir sobre o falso universo dois olhos de cores diferentes. E com olhos de um silêncio vermelho Cruzeiro Seixas sorri ao desenhar a imaginação armada entre fulgurações e roupagens feitas sob medida para todos os tipos de sombras e de abismos. Vertigens para a libertação do homem. Mudar a vida. Pensemos o Surrealismo.
Quando em 1922 começa a se revelar na França um grupo de artistas que se dizem militantes de um novo movimento a que apõem a designação de Surrealismo, o pintor-poeta Cruzeiro Seixas, nascido em Portugal, tinha dois anos de vida. Os então jovens artistas surrealistas faziam o papel de agitadores. Na palavra de Aldo Pellegrini, propunham questões sobre o homem e a condição humana que pareciam transcender o âmbito habitual da arte. Neles se mesclavam o político e o filosófico com o poético. Ao mesmo tempo, um curioso espírito de investigação se unia a uma permanente busca da aventura e do escândalo. Essas novas atitudes tiveram suas raízes não só nos movimentos de vanguarda dos começos do século 20, Cubismo e Futurismo à frente, mas fundamentalmente no movimento dadaísta, do qual quase todos os surrealistas de primeira hora tomaram parte. O Dadaísmo significou uma ruptura absoluta com os princípios da cultura vigente, chegando a negar não só a arte e a literatura do passado, mas questionou a essência e a razão de ser da própria arte. Afirmava a caducidade de qualquer forma de expressão artística. Após todas essas demolições, os jovens surrealistas partiram do zero para construir o novo campo de trabalho, iniciando, por meio de uma liberdade sem medidas, a tessitura de uma arte absolutamente sem cânones. Para eles arte e vida passam a formar unidade poderosa.
Portanto, foi desse solo que Cruzeiro Seixas retirou o húmus propício para a construção de sua estrada artística. A inspiração dadaísta, como foi dito, perpassou os principais caminhos iniciais do Surrealismo, como se pode ver nesta declaração coletiva dos jovens surrealistas em 1925: Não temos nada que ver com a literatura. O surrealismo é um meio de liberação total do espírito. (…) O surrealismo não é uma forma poética. É um grito do espírito que se volta para si mesmo decidido a pulverizar desesperadamente seus entraves. Recupera-se com isso a liberdade livre rimbaudiana; ou desenha-se mais adiante o slogan de maio de 1968: A imaginação toma o poder (e, contraditoriamente, sem nenhum poder tangível); e ainda 1968: Abaixo o realismo socialista. Viva o surrealismo. Tropel das batalhas, cavalos de orvalho que galopam o sonho. Pois a pintura de Cruzeiro Seixas tangencia sempre as livres vozes do sonho e da utopia, imagens díspares que se enlaçam para desenhar seres e objetos plenos de poesia. E esses felizes e poéticos enlaces e fusões entre formas variadas na pintura do artista português têm muito que ver com a famosa frase de Lautréamont tão citada e analisada pelos surrealistas: Belo igual o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecção. René Char diria da poesia um permanente encontro com o inesperado. Assim também se constroem as figuras pictóricas de Cruzeiro Seixas, plasmadas por formas e símbolos dessemelhantes e surpreendentes que se encontram para a confecção de universos imersos no maravilhoso. É óbvio que essas aproximações insólitas podem cair sempre em perigosas facilidades, sendo da responsabilidade do artista o encontro dos casamentos mais adequados, expressivos, vigorosos. E essa busca permanente do verdadeiro poético por parte dos surrealistas está bem expressa no certeiro comentário de Aldo Pellegrini: Tudo o que o surrealismo pensa da arte se resume na concepção da onipotência da poesia. A poesia constitui o núcleo vivo de toda manifestação de arte e lhe dá o verdadeiro sentido. Mas a poesia não é para os surrealistas um elemento decorativo, ou a busca de uma abstrata beleza pura: é a linguagem do homem na condição de essência, é a linguagem do que é inexpressável no homem, é o conhecimento que ao mesmo tempo se faz manifestação vital, é o verbo em sua qualidade de sonda lançada até o mais profundo do humano.
É importante considerar ainda dois aspectos fundamentais em relação às técnicas usadas pelos poetas e artistas visuais surrealistas. O primeiro é relativo ao aproveitamento do material onírico para se urdir a obra de arte. As imagens produzidas nos sonhos formam parte importante da técnica poética dos surrealistas, que certamente concordam com a afirmação de Hölderlin: O homem é um Deus quando sonha, um mendigo quando pensa. Para Cruzeiro Seixas pintar é sonhar dentro da mais intensa vigília.
O segundo aspecto diz respeito à escrita automática. Quanto a isso, penso ser interessante reproduzir a palavra do poeta colombiano Armando Romero que, em uma conversa mantida com o poeta Floriano Martins, narrou o seguinte: Recordo que um amigo poeta, adepto da corrente da poesia construída pela razão e pensamento, me disse um dia que gostava muito de como eu terminava um de meus poemas em prosa, e queria saber como fizera para chegar a esse verso final. Então lhe falei que fora fruto de uma construção automática, que na verdade não o havia pensado, e sim que o verso saíra de forma automática, sem maior esforço. Desiludido, meu amigo poeta disse que agora, após saber a estranha origem desse verso, o mesmo perdera todo valor para ele. Neste ponto me lembro da Filosofia da composição, de Edgar Allan Poe, quando o poeta norte-americano defende a construção racional do famoso poema O Corvo e, entre tanta coisa, diz o seguinte: É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto da composição do poema se refere ao acaso ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a sequência rígida de um problema matemático. Para mim é bastante nítido que Poe travava, entre outras questões, um embate com a chamada inspiração romântica, a ideia do poeta tomado pelas forças irracionais da musa. Vejo, assim, que essa discussão entre racionalismo e automatismo possui várias faces, desdobramentos e contextualizações ao longo da história. Mesmo porque alguém poderá sempre dizer que a razão tantas vezes se faz de poderoso guia para o mais livre fluxo de pensamento. Afinal, onde estão as fronteiras em meio a essas intangíveis explosões do espírito? Quanto a O Corvo, nunca levei muito em consideração essa exaustiva (e, aliás, muito bem feita) defesa realizada por Poe da racionalidade construtiva necessária à produção de qualquer peça poética, pois quando vou ao poema propriamente dito o que me encanta é algo bastante fantasmático, qual seja a música solene que emana daquele singular encadeamento de vocábulos em que ritmo, rima e aliteração, entre outras mágicas, se unem de modo primoroso, não importando mais em que lugar esteja o campo racional, ou a ausência dele, na tessitura iluminada: Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary… Ou seja, tudo estará bem certo quando se trata de poesia absoluta.




 Mas regressemos sempre às pinturas surreais de Cruzeiro Seixas, melhor dizendo, aos fantasmáticos delírios de uma poesia que nasce de torrenciais fluxos onde a imaginação floresce em liberdade e de onde brota de maneira permanente o maravilhoso, um céu de escândalos sem nenhum controle. Florações de cristais acesos. Veementes figurações sob as arcadas do silêncio. Vagos seios, vasos de tigres fulminantes. Um coração que se enche de treva antes da iluminação. Pois de um violão azul o que esperar? Líquida solidão na música do ar? Peixes que caminham no absurdo. Contorcidos e híbridos seres matinais saudosos do anoitecer. Transparências. Pintura de mitos. Ventanias nos cabelos do invisível. Alto aniversário de Cruzeiro Seixas. Celebração.


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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 152 | Abril de 2020
Artista convidado: Cruzeiro Seixas (Portugal, 1920)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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