Não haver
tempo, lugar. Os pássaros das luas delirantes, espaços de abstrações flutuantes,
os olhos abertos em infinito, o que dizer das imaginações, das imagens de assombro
tecidas pelo pintor-poeta português Artur do Cruzeiro Seixas? Os híbridos são tigres
de espanto que saltam do invisível e vêm mostrar as vísceras transparentes em uma
corredeira de sonhos e prodígios.
Senão vejamos. O Surrealismo continua a
ser, para mim, a mais segura prova de que as mãos do homem o podem manter, suspenso,
sobre o precipício (esta, a palavra do pintor-poeta). Ouço (ainda diz ele), monótono,
o ruído do mar no convés da cidade. Vejo os livros, que são ilhas. E o mar, devolvendo
os náufragos (flutuações do poeta-pintor). A
tua boca adormeceu, parece um cais muito antigo à volta da minha boca (navega
o poema). E súbito um cão fantasma rosna
no vazio, fruto que a tudo recobre com universal uivo. Aquele relógio das horas
de ouro que muito além viaja. Esta, a grande homenagem à Realidade (ironiza o artista),
sorriso imenso de Cruzeiro Seixas, que neste 2020 completa cem anos de vida em sol
intenso. Celebremos.
René Char diz que se habitamos um relâmpago,
ali está o coração do eterno. Cruzeiro Seixas haveria de muito bem desenhar em torno
dessa ideia extensa coleção de seres transtornados, fieira de relâmpagos mudos entre
corpos híbridos. Comoção derramada nos abismos. Eternidade bela, imóvel, uma pedra
que ardesse para sempre. Mulher com nádegas de primavera, caro Breton, a abrir sobre
o falso universo dois olhos de cores diferentes. E com olhos de um silêncio vermelho
Cruzeiro Seixas sorri ao desenhar a imaginação armada entre fulgurações e roupagens
feitas sob medida para todos os tipos de sombras e de abismos. Vertigens para a
libertação do homem. Mudar a vida. Pensemos o Surrealismo.
Quando em 1922 começa a se revelar na França
um grupo de artistas que se dizem militantes de um novo movimento a que apõem a
designação de Surrealismo, o pintor-poeta Cruzeiro Seixas, nascido em Portugal,
tinha dois anos de vida. Os então jovens artistas surrealistas faziam o papel de
agitadores. Na palavra de Aldo Pellegrini, propunham questões sobre o homem e a
condição humana que pareciam transcender o âmbito habitual da arte. Neles se mesclavam
o político e o filosófico com o poético. Ao mesmo tempo, um curioso espírito de
investigação se unia a uma permanente busca da aventura e do escândalo. Essas novas
atitudes tiveram suas raízes não só nos movimentos de vanguarda dos começos do século
20, Cubismo e Futurismo à frente, mas fundamentalmente no movimento dadaísta, do
qual quase todos os surrealistas de primeira hora tomaram parte. O Dadaísmo significou
uma ruptura absoluta com os princípios da cultura vigente, chegando a negar não
só a arte e a literatura do passado, mas questionou a essência e a razão de ser
da própria arte. Afirmava a caducidade de qualquer forma de expressão artística.
Após todas essas demolições, os jovens surrealistas partiram do zero para construir
o novo campo de trabalho, iniciando, por meio de uma liberdade sem medidas, a tessitura
de uma arte absolutamente sem cânones. Para eles arte e vida passam a formar unidade
poderosa.
Portanto, foi desse solo que Cruzeiro Seixas
retirou o húmus propício para a construção de sua estrada artística. A inspiração
dadaísta, como foi dito, perpassou os principais caminhos iniciais do Surrealismo,
como se pode ver nesta declaração coletiva dos jovens surrealistas em 1925: Não temos nada que ver com a literatura. O surrealismo
é um meio de liberação total do espírito. (…) O surrealismo não é uma forma poética.
É um grito do espírito que se volta para si mesmo decidido a pulverizar desesperadamente
seus entraves. Recupera-se com isso a liberdade livre rimbaudiana; ou desenha-se
mais adiante o slogan de maio de 1968:
A imaginação toma o poder (e, contraditoriamente,
sem nenhum poder tangível); e ainda 1968: Abaixo
o realismo socialista. Viva o surrealismo. Tropel das batalhas, cavalos de orvalho
que galopam o sonho. Pois a pintura de Cruzeiro Seixas tangencia sempre as livres
vozes do sonho e da utopia, imagens díspares que se enlaçam para desenhar seres
e objetos plenos de poesia. E esses felizes e poéticos enlaces e fusões entre formas
variadas na pintura do artista português têm muito que ver com a famosa frase de
Lautréamont tão citada e analisada pelos surrealistas: Belo igual o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva
sobre uma mesa de dissecção. René Char diria da poesia um permanente encontro
com o inesperado. Assim também se constroem as figuras pictóricas de Cruzeiro Seixas,
plasmadas por formas e símbolos dessemelhantes e surpreendentes que se encontram
para a confecção de universos imersos no maravilhoso. É óbvio que essas aproximações insólitas podem cair sempre
em perigosas facilidades, sendo da responsabilidade
do artista o encontro dos casamentos mais adequados, expressivos, vigorosos. E essa
busca permanente do verdadeiro poético por parte dos surrealistas está bem expressa
no certeiro comentário de Aldo Pellegrini: Tudo
o que o surrealismo pensa da arte se resume na concepção da onipotência da poesia.
A poesia constitui o núcleo vivo de toda manifestação de arte e lhe dá o verdadeiro
sentido. Mas a poesia não é para os surrealistas um elemento decorativo, ou a busca
de uma abstrata beleza pura: é a linguagem do homem na condição de essência, é a
linguagem do que é inexpressável no homem, é o conhecimento que ao mesmo tempo se
faz manifestação vital, é o verbo em sua qualidade de sonda lançada até o mais profundo
do humano.
É importante considerar ainda dois aspectos
fundamentais em relação às técnicas usadas pelos poetas e artistas visuais surrealistas.
O primeiro é relativo ao aproveitamento do material onírico para se urdir a obra
de arte. As imagens produzidas nos sonhos formam parte importante da técnica poética
dos surrealistas, que certamente concordam com a afirmação de Hölderlin: O homem é um Deus quando sonha, um mendigo quando
pensa. Para Cruzeiro Seixas pintar é sonhar dentro da mais intensa vigília.
O segundo aspecto diz respeito à escrita
automática. Quanto a isso, penso ser interessante reproduzir a palavra do poeta
colombiano Armando Romero que, em uma conversa mantida com o poeta Floriano Martins,
narrou o seguinte: Recordo que um amigo poeta,
adepto da corrente da poesia construída pela razão e pensamento, me disse um dia
que gostava muito de como eu terminava um de meus poemas em prosa, e queria saber
como fizera para chegar a esse verso final. Então lhe falei que fora fruto de uma
construção automática, que na verdade não o havia pensado, e sim que o verso saíra
de forma automática, sem maior esforço. Desiludido, meu amigo poeta disse que agora,
após saber a estranha origem desse verso, o mesmo perdera todo valor para ele.
Neste ponto me lembro da Filosofia da composição,
de Edgar Allan Poe, quando o poeta norte-americano defende a construção racional
do famoso poema O Corvo e, entre tanta
coisa, diz o seguinte: É meu desígnio tornar
manifesto que nenhum ponto da composição do poema se refere ao acaso ou à intuição,
que o trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a sequência
rígida de um problema matemático. Para mim é bastante nítido que Poe travava,
entre outras questões, um embate com a chamada inspiração romântica, a ideia do
poeta tomado pelas forças irracionais da musa. Vejo, assim, que essa discussão entre
racionalismo e automatismo possui várias faces, desdobramentos e contextualizações
ao longo da história. Mesmo porque alguém poderá sempre dizer que a razão tantas
vezes se faz de poderoso guia para o mais livre fluxo de pensamento. Afinal, onde
estão as fronteiras em meio a essas intangíveis explosões do espírito? Quanto a
O Corvo, nunca levei muito em consideração
essa exaustiva (e, aliás, muito bem feita) defesa realizada por Poe da racionalidade
construtiva necessária à produção de qualquer peça poética, pois quando vou ao poema
propriamente dito o que me encanta é algo bastante fantasmático, qual seja a música
solene que emana daquele singular encadeamento de vocábulos em que ritmo, rima e
aliteração, entre outras mágicas, se unem de modo primoroso, não importando mais
em que lugar esteja o campo racional, ou a ausência dele, na tessitura iluminada:
Once upon a midnight dreary, while I pondered,
weak and weary… Ou seja, tudo estará bem certo quando se trata de poesia absoluta.
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Mas regressemos sempre às pinturas surreais de Cruzeiro Seixas, melhor dizendo, aos fantasmáticos delírios de uma poesia que nasce de torrenciais fluxos onde a imaginação floresce em liberdade e de onde brota de maneira permanente o maravilhoso, um céu de escândalos sem nenhum controle. Florações de cristais acesos. Veementes figurações sob as arcadas do silêncio. Vagos seios, vasos de tigres fulminantes. Um coração que se enche de treva antes da iluminação. Pois de um violão azul o que esperar? Líquida solidão na música do ar? Peixes que caminham no absurdo. Contorcidos e híbridos seres matinais saudosos do anoitecer. Transparências. Pintura de mitos. Ventanias nos cabelos do invisível. Alto aniversário de Cruzeiro Seixas. Celebração.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 152 | Abril de 2020
Artista convidado: Cruzeiro Seixas (Portugal, 1920)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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