É preciso ver a poesia
e a pintura muito ao longe. Ou antes: é necessário, por vezes, vê-las como se estivéssemos
muito longe, do lado de cá dos montes com desertos misteriosos pelo meio. Muito
longe do poeta/pintor, das suas palavras, das suas razões ou desrazões, muito distantes
da sua figura, dos seus secretos motivos, dos seus motivos quotidianos e reais –
das suas quimeras ou das realidades que lhe crestam a face, dos segredos todavia
muito próprios, dos seus pavores e dos seus encantamentos. Como se, magoadamente,
serenamente, o encarássemos como o aventureiro legítimo, cuja imaginação clara e
concreta nos vai talvez salvar, nos vai talvez fornecer a pista inquestionável para
a viagem mais rara. Para a viagem que iremos fazer, cruzando as lonjuras que frente
aos nossos olhos se patenteiam.
Mas será isto possível? Será mesmo efectivável, por
maioria de razão se com ele convivemos durante décadas, se lhe conhecemos muitos
dos mitos e dos quotidianos em que se envolveu ou se deixou envolver, dos sonhos
que lhe permeiam o espírito, daquilo que viu e que o suscita para que se permita
escrever e pintar sem desdouro e sem desfalecimento? Se o estimamos, se vemos nele
um companheiro de jornada, um confrade na rota que é própria de quem vive, que é
única mas também nos seduziu?
Pode, pelo menos, tentar-se. Efectuar essa distanciação
que é como uma boa regra vital, que é assim como que um olhar lançado na direcção
de algo que já vimos mas não esgotámos, como acontece nos grandes passeios que não
planeamos ao pormenor mas que ficam em nós para sempre tal qual as memórias de ritmos
imarcescíveis.
E, afinal, não pode esquecer-se que há no artista,
como em qualquer outra pessoa, sempre uma parte velada, uma espécie de continente
desconhecido que nunca chegaremos a descriptar perfeitamente.
Perene regra que deverá ser observada, mesmo escutada quando iniciamos uma demanda.
Para além dos horizontes, em pleno território da escrita e da pintura que doravante
não nos será alheia.
Mesmo estando em Lisboa,
no continente divisado seja em Loulé, Caminha ou Alpalhão, ou no Norte onde ele
agora vive, há qualquer coisa na poesia de Cruzeiro Seixas – incomplacente, inventiva
e com um perceptível halo de mistério (não de exotismo!) – que me comunica um cheiro,
um sabor, uma ambiência que me faz sentir a presença da África onde residiu e viveu
durante anos que, se foram decerto de encantamento, também foram de inquietação
e mesmo de amargura devido a condições muito próprias.
Creio que qualquer um que
ali tenha vivido ou excursionado por um considerável lapso de tempo sente esta sensação
ao defrontar-se com o acervo de poemas de sua lavra. Com efeito, se o seu percurso
nos mostra um autor absolutamente lusitano e surrealista de várias têmperas, não
é menos verdade que, tal como me sucede por exemplo na leitura de Leal de Zêzere,
sinto o poderoso apelo de África disseminado no que escreve, ora aqui ora ali, expressa
ou impressamente: o cheiro da terra e o sabor dos frutos e dos produtos de quitanda,
o ritmo das emoções e dos pensamentos que rodeiam os que, estando em África, tendo
conhecido nela como num encantamento jornadas e vilegiaturas, acabam por se ligar
a esse continente da forma muito pessoal e peculiar que cifra o seu discurso literário e artístico.
E, com efeito,
Cruzeiro Seixas põe em equação, diria em confrontação, figuras originárias – mitológicas
umas, intensamente realistas ou fazendo parte dum imaginário retintamente europeu
outras – do continente lugar de partida
como lhe chamava G. A. Henty e onde cristalizaram muitos ritmos que depois se iriam
difundir, mercê dos fados da História, pelas terras de Mashona, ou de Chiqwelembo,
de Shaka ou de Barotse… Ou dos plainos desérticos de Namanga.
Ou seja: por
todos os locais onde se cimentou a imagem que, com alguma dose de magoada ironia,
Aimé Césaire, Frantz Fanon ou Fred Blanchod qualificaram de negritude greco-latina.
O apelo da terra,
europeia ou africana, é contudo certificado pelo apelo da escrita: dono de uma límpida
erudição a que prefiro chamar conhecimento, cultura viva e profundamente humanizada,
Artur do Cruzeiro Seixas faz reflectir nos seus poemas uma qualidade de discurso
poético absolutamente salubre, cortada por um humor e agilidade de estilo que só
aos zoilos aparecerá como agilidade extrínseca. Discretamente dramática, quando
não mesmo trágica, na sua poesia percebe-se uma fundura de pensamento que toca os
grandes temas universais e a forma que eles tomam ao organizarem-se num determinado
espírito, num determinado autor.
Numa determinada
demanda, de cariz muito próprio, complexo mas conseguido e inteiramente fundacional.
Colho, de um espaço interactivo,
estas palavras: De acordo com Isabel Meyrelles
acerca da poesia, Seixas encontrou em África o espaço que, homem esponja, sonhava, estando sempre pronto a absorver o
que o cerca, e a transformá-lo. Já Alfredo Margarido considera que [a] África foi
um continente que nunca nos deu sistemas filosóficos e nunca conheceu as peias de
um cartesianismo mal entendido. Daí que sintamos estar Cruzeiro Seixas no continente
que é realmente o seu, com uma imaginação elástica e lançando cabos em direcção
a todos os seres e todas as coisas.
E é, foi e continua a ser
em África – como noutros lugares primitivos
do mundo – que um dado (que a pintura deste pesquisador de Universos, tão visionado
(de vidente) na sua pintura que se plasma em figurações quase reconhecíveis mas
que vivem noutra dimensão) se consubstancia: refiro-me à máscara, às máscaras, que
os seus personagens incorporam.
Escrevi eu algures: Sendo uma clara face de substituição, mesmo de
transfiguração como ficou sugerido, a máscara é igualmente uma projecção dos nossos
continentes submersos, das partes demasiado sugestivas e reveladoras do duplo que
se acoita nos nossos compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado
para as actuações que doutra forma não teriam ensejo de se manifestar. Através da
máscara que nos vela e nos esconde, paradoxalmente mostramos então a parte oculta
da nossa Lua pessoal. Ao mesmo tempo que nos disfarça, a máscara revela/desvela:
o que somos intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca patentearíamos
à realidade circundante e colectiva. E é precisamente mediante esses corpos
contorcidos de manequins, de mascarados
compósitos que apontam para uma humanidade sofrendo as agruras de algo que as deforma,
que a pintura e os desenhos de Cruzeiro Seixas constroíem um mundo que grita o seu
desespero mas que, contudo, aponta para um desejado permanecer de esperança e de
redenção, não mística mas realizável num continente, em continentes, deste lado
da vida.
Dum lado a África, doutro
lado o mundo, todos os mundos que o pintor-poeta percorreu, cifrando-se finalmente
no país que foi o do seu começo, esse início que, presumimo-lo, será o do final
da sua viagem bem real e concreta de homem entre os homens.
Cruzeiro Seixas-pintor,
dobrado de poeta, é um organismo mais que vivo. Criador, mas que cria a partir do
objecto obscuro dos philosophos, do elemento
primordial desorganizado e portanto que carece de um trabalho de limpeza, de decantação,
de desconstrução das matérias desordenadas que só nos são oferecidas porque necessitam,
para brilharem, que a mão – mesmo inábil ou gauche
– as
projecte, se projecte, num cenário de contínuo esforço ao longo do tempo. Contra os monstros, mas também contra as seduções de um reino aparentemente acolhedor e luminoso que, no entanto, traz em si os alçapões da falsa tranquilidade para nos amordaçar, para nos retirar de nós mesmos com os pretextos de uma razão que não é mais que estreiteza de vistas e de tentar exaurir o conhecimento transgressor contra fábulas velhacas.
projecte, se projecte, num cenário de contínuo esforço ao longo do tempo. Contra os monstros, mas também contra as seduções de um reino aparentemente acolhedor e luminoso que, no entanto, traz em si os alçapões da falsa tranquilidade para nos amordaçar, para nos retirar de nós mesmos com os pretextos de uma razão que não é mais que estreiteza de vistas e de tentar exaurir o conhecimento transgressor contra fábulas velhacas.
A arte, antes de ser um conceito é sempre um impulso. Nenhum artista de qualidade
faz arte reflectindo simplesmente sobre o que a arte é. Isso sucede a posteriori. Só os pintores medíocres –
como se lhes chama na gíria do meio, pintamonos – é que para se darem ares
ou porque são de facto mentecaptos afivelam um certo ar empafiado e bolsam por vezes
frases empoladas sobre a intenção, o trabalho, como dizia Borges el acto de hacer.
O verdadeiro artista é mais modesto e, por isso, faz arte para aprender sobre
o mistério da existência e do mundo. Assim sendo, a arte (seja ela qual for)
é sempre uma negação da morte, do vazio, do desaparecimento. Só os filisteus, os
de duvidosa mentalidade, propõem a arte como uma coisa bela, algo que serve
para tornar os dias e as horas do vulgo ou dos poderosos um pouco mais suportável
ou luxuosa.
Pelo contrário, a arte autêntica é sempre desinquietante, transtorna e só depois
é que nos apazigua.
Antes de transmitir, mediante as suas realizações materiais, algo ao público,
o verdadeiro artista procura esclarecer-se a si mesmo. Se um artista tentar fazer
arte para transmitir uma mensagem ou um conteúdo, provavelmente não é um artista
mas um propagandista. (Há propagandistas, em geral ligados a partidos políticos
ou áreas religiosas, que sem pudor se
atribuem - ou deixam que lhes atribuam - o nome de artistas. Mas são apenas falsários,
como muito bem disse André Gide, por muita habilidade técnica que tenham. Podem
enganar pessoas ignorantes ou tão desonestas como eles, mas não enganam o tempo,
que é como se sabe o maior dos críticos. Indo agora à verdadeira questão,
o artista propõe – para empregar a expressão de André Malraux – ao público
as suas concepções e sonhos particulares. No caso da pintura, através dos quadros.
O que ele deseja é partilhar com os outros as suas descobertas, uma vez que
como o referiu João Garção num ensaio sobre a estrutura da arte, esta é a respiração
da mente.
Dizia Péret, com a autoridade
moral que lhe assistia por ter sido, nos sítios onde deu o corpo ao manifesto, um
dos protagonistas do bom combate: O poeta luta contra toda a espécie de opressão: em primeiro
lugar a do homem pelo homem e a opressão do seu pensamento pelos dogmas religiosos,
filosóficos ou sociais. Ele luta para que o homem atinja definitivamente um conhecimento
perfectível de si próprio e do Universo. Não se conclua disto que o poeta deseja
pôr a sua poesia ao serviço de uma acção política, mesmo revolucionária. Mas a sua
qualidade de poeta faz dele um revolucionário que deve combater em todos os terrenos:
no da poesia pelos meios que a esta são idóneos e no terreno da acção social sem
jamais confundir os dois campos de acção, sob pena de estabelecer a confusão que
importa dissipar e, por conseguinte, de deixar de ser poeta, isto é, revolucionário.
Nesta conformidade,
é necessário que – sem nos deixarmos intimidar pelos que tentam utilizar o Surrealismo
como excipiente para engolirmos melhor a pílula do totalitarismo – seja na Europa
das pátrias, no oriente ou nas américas, do norte, do sul ou da central, e que hoje
compreendem e apoiam, impressa ou expressamente, delinquentes políticos como Lula,
Maduro, turiferários cubanos ou chineses tal como dantes o faziam com os fidéis,
os maos ou os stalins – é necessário, dizia, que os mostremos como de facto são:
surrealistas de aviário, entes apostados
em nos jungirem ao domínio espúrio de partidões ou, mais ainda, de comités centrais
que todo lo mandam, sem ética e sem vergonha
e que, cúmulo dos cúmulos, chegam a entender
capciosamente as alegadas razões de grupos
islâmicos criminais.
É preciso, pois,
erguermo-nos com dignidade surreal e libertária ante essa gente e dizermos sem medo
e sem sombreados que não existe marxismo libertário,
assim como não há tigres vegetarianos…
A vida de Cruzeiro
Seixas, tal como a de Mário Cesariny ou de António Maria Lisboa, antecessores de
outros que continuam a viver o surrealismo com a sua aura mágica e libertadora,
foi a afirmação sincera e criadora de que a liberdade
é da cor do Homem, como um dia afirmou Breton já despojado de falsas virtualidades
que durante certo tempo o feriram, pois se não podemos esquecer a altura em que
ele punha a Poesia com tudo o que lhe era inerente, não podemos pôr de lado, por
conveniência ou cinismo, as fases em que se deixou enredar pelo aparente brilho
da estrela falsa a que os alquimistas
bem aludiram!
Finalmente,
é imprescindível referir que, hoje como ontem, certas gentes deliberadamente orientadas
– por incapacidade, cegeira ou mesmo imbecilidade ideológica, tentam fazer crer
ao geral das gentes e ao particular de escritores sem grandes rasgos que o surrealismo
já foi, apesar das muitas dezenas que
continuam a vivenciá-lo e frequentemente com grande qualidade. Como exemplo mínimo,
verifiquei na Net que um mestre-escola de más mestranças (e num trabalho destinado
a alunos!) caracterizava Cruzeiro Seixas como o último surrealista. Isto sem a face lhe corar, por pudor mínimo ou
vergonha intelectual… Não, o poeta-pintor que vai em breve cumprir 100 anos não
é o último surrealista. Será o último
duma dada geração, pois nem se acantonava em grupos. Mas o Surrealismo existiu sempre
(tendo sido posto a correr duma forma acentuada – na Europa e, a seguir ou paralelamente,
no resto do mundo – dando de barato que o instinto surreal claramente se manifestara
nos tempos imediatamente anteriores em povos primitivos ou desenquadrados da chamada civilização) e sempre existirá – enquanto no Homem permanecer o desejo
infrene e imparável de mais luz.
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Agulha Revista de Cultura
UMA
AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 152 |
Abril de 2020
Artista convidado:
Cruzeiro Seixas (Portugal, 1920)
editor geral
| FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente
| MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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| FLORIANO MARTINS
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2020
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