segunda-feira, 8 de junho de 2020

NICOLAU SAIÃO | Artur do Cruzeiro Seixas ou a travessia do deserto


É preciso ver a poesia e a pintura muito ao longe. Ou antes: é necessário, por vezes, vê-las como se estivéssemos muito longe, do lado de cá dos montes com desertos misteriosos pelo meio. Muito longe do poeta/pintor, das suas palavras, das suas razões ou desrazões, muito distantes da sua figura, dos seus secretos motivos, dos seus motivos quotidianos e reais – das suas quimeras ou das realidades que lhe crestam a face, dos segredos todavia muito próprios, dos seus pavores e dos seus encantamentos. Como se, magoadamente, serenamente, o encarássemos como o aventureiro legítimo, cuja imaginação clara e concreta nos vai talvez salvar, nos vai talvez fornecer a pista inquestionável para a viagem mais rara. Para a viagem que iremos fazer, cruzando as lonjuras que frente aos nossos olhos se patenteiam.
Mas será isto possível? Será mesmo efectivável, por maioria de razão se com ele convivemos durante décadas, se lhe conhecemos muitos dos mitos e dos quotidianos em que se envolveu ou se deixou envolver, dos sonhos que lhe permeiam o espírito, daquilo que viu e que o suscita para que se permita escrever e pintar sem desdouro e sem desfalecimento? Se o estimamos, se vemos nele um companheiro de jornada, um confrade na rota que é própria de quem vive, que é única mas também nos seduziu?
Pode, pelo menos, tentar-se. Efectuar essa distanciação que é como uma boa regra vital, que é assim como que um olhar lançado na direcção de algo que já vimos mas não esgotámos, como acontece nos grandes passeios que não planeamos ao pormenor mas que ficam em nós para sempre tal qual as memórias de ritmos imarcescíveis.
E, afinal, não pode esquecer-se que há no artista, como em qualquer outra pessoa, sempre uma parte velada, uma espécie de continente desconhecido que nunca chegaremos a descriptar perfeitamente.
Perene regra que deverá ser observada, mesmo escutada quando iniciamos uma demanda. Para além dos horizontes, em pleno território da escrita e da pintura que doravante não nos será alheia.
Mesmo estando em Lisboa, no continente divisado seja em Loulé, Caminha ou Alpalhão, ou no Norte onde ele agora vive, há qualquer coisa na poesia de Cruzeiro Seixas – incomplacente, inventiva e com um perceptível halo de mistério (não de exotismo!) – que me comunica um cheiro, um sabor, uma ambiência que me faz sentir a presença da África onde residiu e viveu durante anos que, se foram decerto de encantamento, também foram de inquietação e mesmo de amargura devido a condições muito próprias.
Creio que qualquer um que ali tenha vivido ou excursionado por um considerável lapso de tempo sente esta sensação ao defrontar-se com o acervo de poemas de sua lavra. Com efeito, se o seu percurso nos mostra um autor absolutamente lusitano e surrealista de várias têmperas, não é menos verdade que, tal como me sucede por exemplo na leitura de Leal de Zêzere, sinto o poderoso apelo de África disseminado no que escreve, ora aqui ora ali, expressa ou impressamente: o cheiro da terra e o sabor dos frutos e dos produtos de quitanda, o ritmo das emoções e dos pensamentos que rodeiam os que, estando em África, tendo conhecido nela como num encantamento jornadas e vilegiaturas, acabam por se ligar a esse continente da forma muito pessoal e peculiar que cifra o seu discurso literário e artístico.
E, com efeito, Cruzeiro Seixas põe em equação, diria em confrontação, figuras originárias – mitológicas umas, intensamente realistas ou fazendo parte dum imaginário retintamente europeu outras – do continente lugar de partida como lhe chamava G. A. Henty e onde cristalizaram muitos ritmos que depois se iriam difundir, mercê dos fados da História, pelas terras de Mashona, ou de Chiqwelembo, de Shaka ou de Barotse… Ou dos plainos desérticos de Namanga.
Ou seja: por todos os locais onde se cimentou a imagem que, com alguma dose de magoada ironia, Aimé Césaire, Frantz Fanon ou Fred Blanchod qualificaram de negritude greco-latina.
O apelo da terra, europeia ou africana, é contudo certificado pelo apelo da escrita: dono de uma límpida erudição a que prefiro chamar conhecimento, cultura viva e profundamente humanizada, Artur do Cruzeiro Seixas faz reflectir nos seus poemas uma qualidade de discurso poético absolutamente salubre, cortada por um humor e agilidade de estilo que só aos zoilos aparecerá como agilidade extrínseca. Discretamente dramática, quando não mesmo trágica, na sua poesia percebe-se uma fundura de pensamento que toca os grandes temas universais e a forma que eles tomam ao organizarem-se num determinado espírito, num determinado autor.
Numa determinada demanda, de cariz muito próprio, complexo mas conseguido e inteiramente fundacional.
Colho, de um espaço interactivo, estas palavras: De acordo com Isabel Meyrelles acerca da poesia, Seixas encontrou em África o espaço que, homem esponja, sonhava, estando sempre pronto a absorver o que o cerca, e a transformá-lo. Já Alfredo Margarido considera que [a] África foi um continente que nunca nos deu sistemas filosóficos e nunca conheceu as peias de um cartesianismo mal entendido. Daí que sintamos estar Cruzeiro Seixas no continente que é realmente o seu, com uma imaginação elástica e lançando cabos em direcção a todos os seres e todas as coisas.
E é, foi e continua a ser em África – como noutros lugares primitivos do mundo – que um dado (que a pintura deste pesquisador de Universos, tão visionado (de vidente) na sua pintura que se plasma em figurações quase reconhecíveis mas que vivem noutra dimensão) se consubstancia: refiro-me à máscara, às máscaras, que os seus personagens incorporam.
Escrevi eu algures: Sendo uma clara face de substituição, mesmo de transfiguração como ficou sugerido, a máscara é igualmente uma projecção dos nossos continentes submersos, das partes demasiado sugestivas e reveladoras do duplo que se acoita nos nossos compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado para as actuações que doutra forma não teriam ensejo de se manifestar. Através da máscara que nos vela e nos esconde, paradoxalmente mostramos então a parte oculta da nossa Lua pessoal. Ao mesmo tempo que nos disfarça, a máscara revela/desvela: o que somos intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca patentearíamos à realidade circundante e colectiva. E é precisamente mediante esses corpos contorcidos de manequins, de mascarados compósitos que apontam para uma humanidade sofrendo as agruras de algo que as deforma, que a pintura e os desenhos de Cruzeiro Seixas constroíem um mundo que grita o seu desespero mas que, contudo, aponta para um desejado permanecer de esperança e de redenção, não mística mas realizável num continente, em continentes, deste lado da vida.
Dum lado a África, doutro lado o mundo, todos os mundos que o pintor-poeta percorreu, cifrando-se finalmente no país que foi o do seu começo, esse início que, presumimo-lo, será o do final da sua viagem bem real e concreta de homem entre os homens.
Cruzeiro Seixas-pintor, dobrado de poeta, é um organismo mais que vivo. Criador, mas que cria a partir do objecto obscuro dos philosophos, do elemento primordial desorganizado e portanto que carece de um trabalho de limpeza, de decantação, de desconstrução das matérias desordenadas que só nos são oferecidas porque necessitam, para brilharem, que a mão – mesmo inábil ou gauche – as
projecte, se projecte, num cenário de contínuo esforço ao longo do tempo. Contra os monstros, mas também contra as seduções de um reino aparentemente acolhedor e luminoso que, no entanto, traz em si os alçapões da falsa tranquilidade para nos amordaçar, para nos retirar de nós mesmos com os pretextos de uma razão que não é mais que estreiteza de vistas e de tentar exaurir o conhecimento transgressor contra fábulas velhacas.
A arte, antes de ser um conceito é sempre um impulso. Nenhum artista de qualidade faz arte reflectindo simplesmente sobre o que a arte é. Isso sucede a posteriori. Só os pintores medíocres – como se lhes chama na gíria do meio, pintamonos – é que para se darem ares ou porque são de facto mentecaptos afivelam um certo ar empafiado e bolsam por vezes frases empoladas sobre a intenção, o trabalho, como dizia Borges el acto de hacer. O verdadeiro artista é mais modesto e, por isso, faz arte para aprender sobre o mistério da existência e do mundo. Assim sendo, a arte (seja ela qual for) é sempre uma negação da morte, do vazio, do desaparecimento. Só os filisteus, os de duvidosa mentalidade, propõem a arte como uma coisa bela, algo que serve para tornar os dias e as horas do vulgo ou dos poderosos um pouco mais suportável ou luxuosa. 
Pelo contrário, a arte autêntica é sempre desinquietante, transtorna e só depois é que nos apazigua.
Antes de transmitir, mediante as suas realizações materiais, algo ao público, o verdadeiro artista procura esclarecer-se a si mesmo. Se um artista tentar fazer arte para transmitir uma mensagem ou um conteúdo, provavelmente não é um artista mas um propagandista. (Há propagandistas, em geral ligados a partidos políticos ou áreas religiosas, que sem pudor se atribuem - ou deixam que lhes atribuam - o nome de artistas. Mas são apenas falsários, como muito bem disse André Gide, por muita habilidade técnica que tenham. Podem enganar pessoas ignorantes ou tão desonestas como eles, mas não enganam o tempo, que é como se sabe o maior dos críticos. Indo agora à verdadeira questão, o artista propõe – para empregar a expressão de André Malraux – ao público as suas concepções e sonhos particulares. No caso da pintura, através dos quadros. O que ele deseja é partilhar com os outros as suas descobertas, uma vez que como o referiu João Garção num ensaio sobre a estrutura da arte, esta é a respiração da mente.
Dizia Péret, com a autoridade moral que lhe assistia por ter sido, nos sítios onde deu o corpo ao manifesto, um dos protagonistas do bom combate: O poeta luta contra toda a espécie de opressão: em primeiro lugar a do homem pelo homem e a opressão do seu pensamento pelos dogmas religiosos, filosóficos ou sociais. Ele luta para que o homem atinja definitivamente um conhecimento perfectível de si próprio e do Universo. Não se conclua disto que o poeta deseja pôr a sua poesia ao serviço de uma acção política, mesmo revolucionária. Mas a sua qualidade de poeta faz dele um revolucionário que deve combater em todos os terrenos: no da poesia pelos meios que a esta são idóneos e no terreno da acção social sem jamais confundir os dois campos de acção, sob pena de estabelecer a confusão que importa dissipar e, por conseguinte, de deixar de ser poeta, isto é, revolucionário.
Nesta conformidade, é necessário que – sem nos deixarmos intimidar pelos que tentam utilizar o Surrealismo como excipiente para engolirmos melhor a pílula do totalitarismo – seja na Europa das pátrias, no oriente ou nas américas, do norte, do sul ou da central, e que hoje compreendem e apoiam, impressa ou expressamente, delinquentes políticos como Lula, Maduro, turiferários cubanos ou chineses tal como dantes o faziam com os fidéis, os maos ou os stalins – é necessário, dizia, que os mostremos como de facto são: surrealistas de aviário, entes apostados em nos jungirem ao domínio espúrio de partidões ou, mais ainda, de comités centrais que todo lo mandam, sem ética e sem vergonha e que, cúmulo dos cúmulos, chegam a entender capciosamente as alegadas razões de grupos islâmicos criminais.
É preciso, pois, erguermo-nos com dignidade surreal e libertária ante essa gente e dizermos sem medo e sem sombreados que não existe marxismo libertário, assim como não há tigres vegetarianos…
A vida de Cruzeiro Seixas, tal como a de Mário Cesariny ou de António Maria Lisboa, antecessores de outros que continuam a viver o surrealismo com a sua aura mágica e libertadora, foi a afirmação sincera e criadora de que a liberdade é da cor do Homem, como um dia afirmou Breton já despojado de falsas virtualidades que durante certo tempo o feriram, pois se não podemos esquecer a altura em que ele punha a Poesia com tudo o que lhe era inerente, não podemos pôr de lado, por conveniência ou cinismo, as fases em que se deixou enredar pelo aparente brilho da estrela falsa a que os alquimistas bem aludiram!
Finalmente, é imprescindível referir que, hoje como ontem, certas gentes deliberadamente orientadas – por incapacidade, cegeira ou mesmo imbecilidade ideológica, tentam fazer crer ao geral das gentes e ao particular de escritores sem grandes rasgos que o surrealismo já foi, apesar das muitas dezenas que continuam a vivenciá-lo e frequentemente com grande qualidade. Como exemplo mínimo, verifiquei na Net que um mestre-escola de más mestranças (e num trabalho destinado a alunos!) caracterizava Cruzeiro Seixas como o último surrealista. Isto sem a face lhe corar, por pudor mínimo ou vergonha intelectual… Não, o poeta-pintor que vai em breve cumprir 100 anos não é o último surrealista. Será o último duma dada geração, pois nem se acantonava em grupos. Mas o Surrealismo existiu sempre (tendo sido posto a correr duma forma acentuada – na Europa e, a seguir ou paralelamente, no resto do mundo – dando de barato que o instinto surreal claramente se manifestara nos tempos imediatamente anteriores em povos primitivos ou desenquadrados da chamada civilização) e sempre existirá – enquanto no Homem permanecer o desejo infrene e imparável de mais luz.

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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 152 | Abril de 2020
Artista convidado: Cruzeiro Seixas (Portugal, 1920)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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