Pintor-poeta, ou poeta-pintor:
Artur Manuel Rodrigues do Cruzeiro Seixas, nascido na Amadora, Portugal, em 1920,
já afirmou publicamente que poesia é a fundação de sua arte, mesmo quando está pintando.
No lugar de se considerar um pintor, modo pelo o qual o público mais frequentemente
o reconhece, ele prefere ser visto como homem
que pinta, afastando a ideia de ser um académico ou um artista profissional
que conhece sua artesania e que ganha dinheiro com ela. Esta é sua postura ética.
Muitos críticos tendem a referir a sua arte visual como lírica, poética. De facto,
quando Cruzeiro Seixas não insere mesmo versos em seu trabalho, é frequente em suas
pinturas e colagens o título que é um verso ou o poema, como se a palavra escrita
fosse sinónimo da pincelada em sua arte.
Cruzeiro
Seixas foi um participante activo no movimento surrealista português por via do
anti-grupo Os Surrealistas em fins de
1940 e princípios de 1950. Além de ser um representante activo do movimento em seu
país hoje, Seixas pode também ser considerado responsável por levar esta arte de
vanguarda a Angola. Em 1951, querendo viajar pelo mundo, mas financeiramente incapaz
de fazê-lo, alistou-se na marinha mercante. Isto deu-lhe oportunidade de viajar,
como ele queria, e eventualmente viver na África, especialmente em Luanda, Angola,
que era uma colónia de Portugal na época.
Em 1953
preparou sua primeira exposição individual com 48 desenhos no Salão do Restauração
em Luanda. A exposição foi um escândalo tanto para o público como para a crítica,
mas provou ser bem sucedida considerando que, como artista surrealista, não esperaria
nada menos que o choque da burguesia e o confronto com o gosto artístico conservador
e mal informado. Na sua primeira exibição africana, parece que Cruzeiro Seixas não
somente mostrou sua arte, como trouxe à luz fontes de inspiração que delinearam
sua obra. Na contra-capa do programa da exibição aparecia uma lista de citações
de Aimé Césaire, Lautréamont, Pascal, Breton, Heráclito de Éfesos, Henry Miller,
Platão, Rimbaud e Mário Cesariny. Em 1954, um ano mais tarde, organizou outra exposição
em Luanda com objectos, colagens e poesia visual. Seu trabalho e presença em Angola
foi essencial para o estabelecimento de uma secção permanente de pintura modernista
no museu nacional (Museu de Angola), onde foi também consultor artístico.
Ainda
que estivesse residindo em África, Cruzeiro Seixas manteve contacto com artistas
portugueses, especialmente com seus colegas de movimento surrealista – sobretudo
com Mário Cesariny. Por meio de colaborações, o artista enviava ilustrações para
a publicação junto com poemas de Cesariny e outras edições em Portugal. Sua experiência
no exterior e sua coleção de arte africana certamente influenciaram seu trabalho,
que mescla poesia e pintura com o que a crítica chama de força primitiva.
Depois
de retornar a Portugal em 1966, Cruzeiro Seixas continuou a praticar seu trabalho
de curador com a organização de uma série de exibições até os anos de 1970. Nas
décadas seguintes, sua arte continuou a alcançar a cena global. Além de organizar
exibições em seu país natal, colaborou em revistas internacionais tais como Brumes Blondes, Phases e Le Magazine Littéraire
– fundada em 1966 –, ao passo que contribuía com obras em exibições colectivas em
Paris, São Paulo, Bruxelas, Chicago, Londres, Madrid, Amsterdão, Cidade do México
e Berlim, para nomear apenas algumas.
Mesmo
assim, apesar de sua popularidade internacional, Cruzeiro Seixas não nega que se
não fosse pelo movimento de libertação nacional angolana contra Portugal, ele teria
vivido permanentemente em Angola. Ele se refere ao continente como sua Paris: África foi a minha Paris, aludindo ao facto
de os artistas quererem viver na capital francesa de modo a se aproximarem de seus
ídolos vanguardistas. Tal empreendimento, contudo, exigia dinheiro, e Cruzeiro Seixas
escreveu em carta, a lembrar sua juventude, sua falta de dinheiro como sua aprendizagem:
A falta de dinheiro foi a minha universidade.
Sua situação financeira não era diferente da de seus colegas surrealistas em Portugal.
O traço
artístico de Cruzeiro Seixas é facilmente reconhecível. Ele tem preferência por
usar tinta-da-china e sombra, contrastando pares de aguarelas como branco e negro,
azul escuro e amarelo, ou verde e vermelho, em papel ou cartão. Seus trabalhos são
normalmente em formato pequeno, de técnicas mistas sendo as mais frequentes desenho,
pintura e colagem. Formas esféricas, côncavas e convexas criam a ilusão de movimento
e figuras híbridas que são ao mesmo tempo suaves e fortes, delicadas e violentas,
são sua marca registada. Cruzeiro Seixas também se manifestou em esculturas, focando-se
em objectos surrealistas e ready-mades
ao estilo de Why not sneeze, Rose Sélavy?
de Duchamp. Por este meio, Seixas usa do humor negro para elucidar sua visão da
realidade e sociedade com peças como o famoso objecto Mar Português, que consiste de uma concha dentro de uma gaiola, ou o
cabide que serve para representar a cruz em que Cristo foi pregado. Também trabalhou
com tapeçaria, e foi cenógrafo do Ballet Gulbenkian para o bailado de O Cisne Negro em 1990.
Os versos
de Cruzeiro Seixas, Por toda a parte há sonhos/a
empurrar outros sonhos/para o abismo, descrevem muito bem a orientação de sua
arte. As formas humanas oníricas em metamorfose, junto de animais ou outros elementos
como uma meia-lua descendo à Terra, ou fogo emergindo da cabeça de alguém, são compostas
com pinceladas circulares que parecem criar um movimento de ascensão para o céu
escuro – ou para o infinito. Os fundos de suas pinturas e colagens situam uma cena
nocturna, como se o sonho, ou a imagem onírica, emergisse da borda de um abismo
galáctico, ou como se a Terra fosse lugar deserto de um holocausto pós-nuclear,
populado somente por criaturas híbridas. A perspectiva usualmente é de um ponto
de vista de baixo para cima, deixando o espectador com a impressão de grandiosidade,
mesmo nas peças de formato pequeno feitas de papel comum ou cartão. As imagens,
que se sobrepõem como em processo de metamorfose, parecem seguir um movimento para
cima, o que cria a sensação de uma paisagem colossal, como se suas criaturas estivessem
no espaço, além da Terra. Ademais desses enquadramentos celestiais, a obra de Cruzeiro
Seixas frequentemente inclui asas, olhos, cavalos, esfinges, torsos nus, cabeças
com longos cabelos flutuantes, pés e dedos desconectados e formas fálicas que contribuem
com um ar de homoerotismo. As pinturas e desenhos de Cruzeiro Seixas constantemente
nos lembram do corpo humano sensual (e sensorial). A impressão de desejo está fortemente
relacionada com o fetiche homoerótico.
Os títulos
das peças estimulam a contemplação uma vez que se aproximam de versos de poemas,
como é o caso de uma colagem não datada, Nunca
sabemos ao certo nunca nunca / o que ganhamos ou perdemos / nunca nunca nunca. Seus títulos podem também sugerir um
conceito, como na aguarela e tinta-da-china sobre papel de 1995: A arte sublime de inventar o que nunca existiu.
De acordo com o crítico português Rui-Mário Gonçalves, os títulos dos trabalhos
de Cruzeiro Seixas estabelecem um diálogo
infinito entre os discursos verbal e visual, ao passo que colocam nossa realidade
em cheque. Um último exemplo de sua contemplação pode ser visto na criação do objecto-arte
Mar Português. O mítico poder de Portugal
sobre o mar é retratado, mas com a crítica mordaz do artista: o mar, representado
por uma concha, no lugar de levar à liberdade, traz a prisão. Como Gonçalves argumenta,
a obra mostra o sonho encarcerado. O objecto criticamente reproduz não só uma imagem
dramática, mas também a memória colectiva do país, em que a expansão e a riqueza
falharam.
A poesia
de Cruzeiro Seixas, como mencionado anteriormente, tem um papel central na criação
de um género híbrido quando combinada com objectos-arte e pinturas – uma rede que
pode até ser vista como uma vontade de dissolver as barreiras entre os dois modos
de criação. Seus poemas que seguem o formato tradicional de versos e estrofas costumam
ser publicados junto com sua pintura, como se fossem ekfrásicos. Porém, ao passo
que vai se tornando mais familiarizado com a obra de Cruzeiro Seixas, torna-se aparente
que as ilustrações não são simplesmente representações da mensagem dos poemas (ou
vice-versa), mas que o aparato escrito e o visual são duas faces da mesma moeda
artística.
Os poemas
do artista foram coligidos em uma publicação de três volumes por Isabel Meyrelles
(2002), e, assim como no caso da arte visual, por modo de interacção com o título,
os leitores são presenteados com uma poesia imagística. É dado ao leitor o exercício
de visualizar as imagens apresentadas e construir uma conexão lógica entre aquilo
que aparentemente está ausente. Por exemplo, os versos Era a sombra de uma mão sozinha / num espaço impossivelmente vasto / perdido
na sua própria extensão, de um poema datado de 1950 e localizado geograficamente
em “Áfricas”, pode servir como exemplo do processo do exercício de visualização
imaginária requerida ao leitor. A necessidade de tal visualização é ainda mais aparente
na leitura da seguinte estrofa: Era a chegada
de uma muito longa viagem / diante de uma porta de sal / dentro de um pequeno diamante.
O crítico Fernando J. B. Martinho propõe que sua poesia seja
idealmente lida por leitores dedicados, apaixonados por poesia, uma vez que o imaginário acabaria por se perder no leitor com uma mentalidade mais analítica. O que quer dizer com isso é que a poesia de Cruzeiro Seixas apela àqueles que não só estão interessados no aspecto literário de seu trabalho, mas também no resultado visual, ou mais precisamente, nas suas pinturas. Cruzeiro Seixas efectivamente apresenta a seus leitores pinturas na forma escrita.
idealmente lida por leitores dedicados, apaixonados por poesia, uma vez que o imaginário acabaria por se perder no leitor com uma mentalidade mais analítica. O que quer dizer com isso é que a poesia de Cruzeiro Seixas apela àqueles que não só estão interessados no aspecto literário de seu trabalho, mas também no resultado visual, ou mais precisamente, nas suas pinturas. Cruzeiro Seixas efectivamente apresenta a seus leitores pinturas na forma escrita.
A paixão
e vida que ele traz a seu trabalho é também reflexo de sua decisão de incluir pontos
geográficos em seus poemas. Dando tanto a data como o local, Cruzeiro Seixas transporta
seus leitores para os lugares onde os poemas foram escritos. O facto de a maioria
deles ter sido composta em Áfricas, como
os versos citados acima, enfatiza ao leitor a importância da África na vida do artista.
É o continente de sua devoção nos poemas que aparecem em Eu Falo em Chamas, e ainda que em alguns casos seus versos não tenham
sido compostos presencialmente ali, sua decisão de listar Áfricas como lugar de composição prova que Cruzeiro Seixas estava ali
em espírito.
Para o
artista, A poesia é talvez a única chave possível
para uma fechadura que não há, cujo significado é que tal como em suas pinturas,
os poemas retratam a realidade não como ela é, mas como se transforma no papel por
via do processo criativo. Como o poeta-pintor já explicou no passado, [o]s desenhos, as pinturas, as colagens e os
objectos que fiz, não estiveram nunca ligados a um qualquer tema; o que tinha presente
no acto de desenhar ou pintar (como quando não desenho ou não pinto), é a totalidade
do mundo que posso imaginar. Sua ideologia é tal que sua contribuição ao Surrealismo
através da poesia e da arte visual ainda vive com ele, e dentro dele.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 152 | Abril de 2020
Artista convidado: Cruzeiro Seixas (Portugal, 1920)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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