Fernando
Arrabal entra na Praça da Sé na manhã úmida de novembro passado. Havia chovido,
mas o sol brilhava. O escritor espanhol, naturalizado francês, olhou as pessoas,
os cartazes e grafites, os prédios em volta e diz: Estamos em um lugar vivo. Andando em direção à catedral, explica que
na França existem 54 templos góticos obedecendo a disposição das estrelas da constelação
Virgem e voltados para Jerusalém.
Ao
entrar na Sé, pergunta razão da cúpula, contrária ao gótico puro. Fica sabendo que
o autor do projeto pensou em um espaço maior no interior para reunir os fiéis. Lembra
de outra construção parecida, em Florença. Observa as esculturas, o altar e as ogivas
sustentadas por colunas. Na saida, visita o jardim das esculturas da praça. Senta-se
em um banco entre obras de Marcelo Nietzsche, Amílcar de Castro, Franz Weissmann,
Domenico Calabrone, olhando o céu. Um homem pequeno, sólido como um pescador, olhos
azuis claros que dizem muito. O olhar filtra-se por meio de óculos de aros redondos
de metal.
São
Paulo deve a esse visitante momentos teatrais superiores com O Cemitério de Automóveis, em 1968, com Stênio
Garcia entre outros, e encenação do argentino Victor Garcia, emblemática de uma
década de rupturas e confrontos estéticos e ideológicos; O Arquiteto e o imperador da Assíria, em 1970, com Rubens Corrêa e José
Wilker, e Torre de Babel, em 1977, com
Ruth Escobar. Espetáculos provocadores alternando temas bíblicos com imagens grotescas.
Quando o romancista e dramaturgo quando surgiu na década de 1950 e foi considerado
um herege na sua terra. Censores viram em suas peças vilipêndio dos valores católicos.
No auge da ditadura de Franco, um jornal pediu sua castração para livrar o mundo
da descendência de um degenerado.
O
ataque apenas confirmou o artista. É exatamente esse universo de culpas, martírios
e castigos que sua ficção faz soar de forma implacável. Tanta religiosidade repressiva,
filha da Inquisição e do sistema franquista, refletiu-se ao longo do tempo em na
pintura Goya, na literatura de Valle Inclán, no cinema de Louis Buñuel e Carlos
Saura, e nesse cidadão pacífico que visita a Sé de São Paulo. Arrabal está ao lado
dos melhores espanhóis. E ainda ama as igrejas, conhece suas origens citando estudos
específicos como Os Construtores das Catedrais,
de Guy Dubuy e Os Mistérios das Catedrais,
do alquimista francês Fulcanelli.
No
Brasil, Arrabal evitou o circuito das celebridades em trânsito. Preferiu o centro
velho. Veio como homenageado da Feira do Livro de Porto Alegre e, em São Paulo,
para duas palestras na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Afora o jantar de com
o pessoal do teatro, oferecido por sua amiga Ruth Escobar, dedicou-se a passeios
pela capital, munido de uma Rolleiflex. Segui-lo numa dessas andanças valeu conversas
sobre artes, história, filosofia ou curiosidades a respeito dos amigos Pablo Picasso,
Tristan Tzara, André Breton, Samuel Beckett, Eugene Ionesco, Salvador Dalí e até
digressões sobre enxadrismo, sua paixão.
Terminada
a visita à Sé, Arrabal quer ver o prédio Matarazzo.
Como? Lembra-se? Pois a antiga sede de grupo empresarial da Praça do Patriarca,
hoje, depois Banespa (hoje Prefeitura) ficou-lhe na memória. Uma olhada no Anhangabaú
e se deu por satisfeito. Enveredou pela Rua Libero Badaró. Perguntado se a massa
humana – a paisagem social penosamente desigual o faz lembrar de outra cidade, das
muitas que conhece, contesta imediatamente: Não,
não. Isto aqui é única, a mistura de gente, de cores de pele. Esse comercio que,
bem sei, abrigará nas suas portas mendigos quando a noite cair.
O
andarilho curioso enfrenta o calor, os apertos, o trânsito, fotografando pedaços
da Babel: placas de Restaurante a Quilo,
Engraxa sapatos. De repente, um pedido:
comer em um lugar tranquilo.
Levado
ao tradicional restaurante Itamarati, no largo de S. Francisco, frequentado por
advogados, achou boa a coincidência: Sou formado
em Direito. Nota que o prato do dia é cozido com grão-de-bico. Um voo de
memória que despertou o espanhol: la comida
de los pobres y campesinos en España.
Na
saída, Arrabal quer mais: Vamos ao Museu do
Ipiranga? – sem ter ideia do que é a Avenida do Estado no meio da semana. Mas
por que o prédio Matarazzo ou o Ipiranga? Porque Arrabal guia-se por razões subjetivas
(Matarazzo é o nome de uma editora europeia de livros de arte); discorre sobre meandros
palacianos de Carlos de Espanha e de Eleonor de Equitânia. Logo, tem interesse pelo
lugar onde o príncipe português proclamou
a independência.
Logo,
em marcha. Na rua Tabatinguera, descobre a capela de Santa Luzia, na paisagem degradada.
Faz questão das fotos enquadrando a banca de flores na calçada e uma faixa de pano
anunciando o nome da santa. No grito do Ipiranga.
Ficou sinceramente impressionado com o colosso de granito e bronze perpetuando o
7 de setembro de 1822. Elogiou os jardins versalhescos
e bem cuidados. Quase não se encontram parques
assim em Madri.
Terminado
um rápido contato tropical com um pé de jaca carregado e pilhas de coco verde, indica
a próxima etapa: avenida Paulista, o Trianon e Alameda Santos. Sempre mapeando fragmentos
arquitetônicos, inventos linguísticos dos anúncios e tipos populares. Arrabal, que
vive em Paris nas imediações do Arco do Triunfo, absorve e fotografa o dia a dia
as cidades imensas. Foi assim que, em 1973, produziu o livro A Nova York de Arrabal, com fotos em preto
e branco acompanhadas de anotações. Em uma delas, com uma jovem mulata olhando a
câmera, escreveu: Gostaria de saber por que
esta desconhecida fixa a objetiva. Isso me interessa infinitamente mais do que o
mistério da criação.
O
Brasil, Arrabal voltou para casa com muitos filmes na bagagem. Não prometeu nada,
mas a sucesso de lugares comuns paulistanos que captou poderão reaparecer um dia
em imagens e poesia.
*****
Fernando Arrabal
nasceu em 1932, em Mellila, possessão espanhola encravada em Marrocos. Aos seis
anos, a Guerra Civil (1936-1939), que derrubou a República Espanhola instaurando
a ditadura do General Franco, provocou uma tragédia em sua família. O pai, militar
republicano dedicado à pintura nas horas vagas, recusou-se a apoiar o golpe. Condenado
à morte, teve a perna comutada para prisão perpétua. Fugiu só de pijama em uma noite
de inverno com um metro de neve nos campos. Jamais foi encontrado. Sua mãe, favorável
ao franquismo, tentou banir a imagem paterna da vida do filho, chegando a recortar
à tesoura sua imagem nas fotos caseiras. A dor desta perda está no romance Baal-Babilônia (ou Viva la Muerte, o sinistro brado dos falangistas espanhóis) e em Carta ao General Franco. O tema está de volta
em seu novo livro, Cerimonia por um tenente abandonado e narra, as primeiras oito
horas do golpe franquista e a prisão do seu pai também chamando Fernando.
Hoje
– passadas as polêmicas que o cercaram – Arrabal é visto como um dos grandes poetas
da cena contemporânea e tem suas obras completas editas em vários países, o que
inclui, por supuesto, sua Estanha democratizada
que, enfim, o reconhece como um dos seus grandes.
Arrabal
constata que há um componente de sorte em sua vida atribulada. Se vou aos Estados Unidos, logo faço amizade
com Allan Ginsberg; vou a Tóquio e conheço Yukio Mishima, diz. Chegando a Paris
em 1955, bolsista de teatro e, em seguida, auto exilado, e desconhecido, incorporou-se
rapidamente ao grupo surrealista de André Breton (pouco depois permitiu-se uma dissidência
sob o nome de Movimento Pânico, que não
era muito mais que uma blague contra o
mandonismo de Breton). Aos poucos, esse homem gentil, casa com Luce, namorada de
juventude, dois filhos, vida razoavelmente metódica, foi criando vínculos estreitos
com alguns dos maiores criadores do século. Mas ele não os descreve como seres intangíveis.
São amigos de copo e xadrez.
Tristan
Tzara –Era pequeno, gordo e feio, mas encantador.
Como eu (risos). Mas roubava no xadrez, o que é inadmissível nesse jogo. Quando
criou o Movimento Dadaísta, no Café Voltaire de Zurique, Lenin frequentava o local
e demonstrava simpatia pelo movimento. O que teria sido o mundo se, em vez do marxismo-leninismo,
tivesse surgido o dadaísmo-leninismo?
Jean
Genet – Ele se irritava por não conseguir
me vencer no xadrez, e também roubava no jogo. Dizia que, se tivesse o poder divino,
jogaria com as pedras brancas e venceria Deus.
Luis
Buñuel – Estávamos no Festival de Cannes e
sugeri uma visita a Picasso, que vivia na região. Buñuel respondeu (imitando a voz
grave e arrastada do cineasta): Ah, não vamos não! Ele vai ficar mostrando quadros
sem parar e pedindo nossa opinião.
Pablo
Picasso – Teve muitas mulheres, mas acho que
nunca foi amado exatamente pela sua exuberância sexual. Somente a última delas,
a viúva, o amou, sobretudo quando ele estava envelhecido e frágil.
Samuel
Beckett – Passou dificuldades antes de ser
reconhecido. A mulher dele lecionava piano. Ele sempre falou francês com muito sotaque
e, quando lecionava inglês, os alunos riam do seu sotaque irlandês. Depois de viver
anos em uma espécie de água-furtada, mudou-se para um apartamentozinho de três peças
no Boulevard Saint Jacques. Era incapaz de deixar de responder uma carta.
Salvador
Dalí – Todos nós fazemos pose de vez em quando,
um pouco de gênero, mas só por minutos. Dalí, não. Ele era capaz de fazer um tipo
e sustentar o clima seis, oito horas, uma noite inteira. Um dia ligou para minha
casa e disse para minha mulher: Aqui fala o divino Dalí convocando Arrabal para
estar à meia-noite no meu hotel quando, então, iremos iniciar uma obra teatral.
Victor
García – Tinha um modo peculiar de explicar
suas ideias como diretor teatral. Uma vez disse que, para ele, os dois maiores dramaturgos
eram Calderón de La Barca e eu. Perguntado por quê, respondeu: Porque a obra
de Calderón é horizontal e a de Arrabal, vertical.
Bobby
Fisher (gênio do xadrez, ex-campeão etc.) – Vive
sempre na defensiva com a imprensa. O pior é que se tornou racista, embora seja
judeu. Suas últimas declarações são horríveis.
Luce
Moreau Arrabal (sua mulher) – Ela tem doutorada
na Sorbonne em letras espanholas. É uma pessoa tímida de bom-senso. Sempre que penso
em tomar uma atitude quixotesca, ela me adverte: Cuidado, Fernando, não queira
imitar seu pai.
Teatro
– Sonho com um teatro em que humor e poesia,
pânico e amor sejam uma coisa só. O rito teatral se transformaria então em uma opera
mundi com os fantasmas de Dom Quixote, os
pesadelos de Alice, o delírio de K. e os sonhos humanoides que frequentariam as
noites de uma máquina IBM.
*****
A perda do
pai, adversário dos franquistas, marcou vida e obra do espanhol. Abaixo, o tema
como é tratado no romance Baal-Babilônia.
Um homem enterrava os meus pés
na areia. Era uma praia de Melilla, tinha eu três anos. Recordo-me das mãos dele
nas minhas pernas. Enquanto o sol brilhava, o coração e o diamante explodiam em
enumeráveis gotas de água.
Muitas vezes me perguntam o que
teve mais influência sobre mim, o que eu admiro mais, e, então, esquecendo Kafka
e Lewis Carrol, a terrível paisagem e o palácio infinito, esquecendo Gracian e Dostoiévsky,
os confins do universo e o sonho maldito, eu respondo que é uma criatura da qual
só consigo recordar as mãos nos meus pés de criança: meu pai.
SUGESTÃO
DE VÍDEO
Entrevista a Fernando Arrabal https://www.youtube.com/watch?v=QdXSiXIxw2M&t=380s
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 154 | Junho de 2020
Artista convidado: Fernando Arrabal (Espanha, 1932)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS |
MÁRCIO SIMÕES
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