A nação ganha-se não com o ouro ou a prata
mas
com o sangue do povo.
Ditado Mambae
Na
sequência da Operação SKYLIGHT, os aparelhos de rádio-emissores-recetores da Resistência
Timorense caíram nas mãos das forças de ocupação. Vários sectores das FALINTIL ficaram
separados uns dos outros por um muro de silêncio e debatendo-se com a falta de informação
do que se passava no resto do território. A 31 de Dezembro de 1978, na sua tentativa
de contacto com os núcleos de guerrilheiros das FALINTIL, morreu em combate o presidente
da FRETILIN e presidente da República Democrática de Timor-Leste, Nicolau Lobato.
Em Março de 1979, estando a maior parte dos membros da Direção da Luta morta em
combate ou assassinada nas prisões, a ofensiva das ABRI* dirigiu-se contra as grandes
concentrações de população que continuavam a resistir nas chamadas Bases Vermelhas.
A guerra, dizia a propaganda
indonésia, acabara, o que significava que começara para o povo timorense o extermínio
programado. Sem contacto algum com o mundo exterior, o território de Timor-Leste
estava transformado numa prisão. Isolada do resto do mundo, sem apoios vindos do
exterior, a Resistência timorense armava-se com as armas que conquistava ao inimigo.
O facto de se acharem dispersos, isolados ou em pequenos grupos, acossados pela
fome, pelas doenças, pela solidão, pela desconfiança e pelo clima de suspeição que
se ia insidiosamente instalando, sem uma direção, os timorenses estavam particularmente
vulneráveis. A guerra, mudando radicalmente cada homem, mulher ou criança, tornava
feroz a luta pela sobrevivência. Naqueles horizontes circunscritos, acossados, cada
patriota trazia uma faca no lugar do coração.
Reorganizada a Direção da
Luta em 1980 sob a liderança de Kay Rala Xanana Gusmão, este, para criar um comando
unificado prosseguiu a estratégia de Nicolau Lobato, lançando a ideia de um grupo
de voluntários capaz de ir em missão de reagrupamento aos centros onde estariam
estacionados os guerrilheiros sobreviventes. Poucos foram os voluntários tão assustadora
se apresentava a situação nesses lugares devastados. Xanana Gusmão partiu para essa
missão com um quadro e uma companhia. Foi no contacto com alguns focos de resistência
encontrados que foi constituído o Destacamento de Ligação Nacional, uma força militar
de 60 guerrilheiros comandado pelo 1º Comandante José Rojas Henriques (Ko´o Susu)
e pelo 2º comandante Johny Metan. Os 60
homens do Destacamento de Ligação Nacional eram na sua maioria jovens camponeses
oriundos de algumas raras aldeias que sobreviviam a oeste do
monte Matebian, onde ainda havia muito que comer devido às hortas feitas no tempo
das Bases Vermelhas. Os jovens camponeses analfabetos que integravam o Destacamento
de Ligação Nacional entre
os quais se achava um grupo de fatalucos tinham vindo do seio
de populações que se achavam ainda escondidas no mato e, embora estivessem afeitos aos rudes trabalhos da sobrevivência,
não estavam preparados para suportar a fome e a fadiga, marchando por caminhos tortuosos
da montanha, galgando rochedos, atravessando arrozais, plantações de tabaco, hortas
onde se abasteciam de feijões, abóboras, pepinos, repolhos e passando, fardados,
por homens, mulheres e crianças com o cabelo cheio de pó, a face e as pernas cheias
de lama e que trabalhavam até a noite chegar. Não raro despiam a farda e iam, uns,aqui
cortavam erva, outros, ali, ajeitavam os galhos para alimentarem o lume, mais à
frente, nos terreiros, o odor do grão de arroz soltando-se das espigas, enchia-os
de alegria porque era o odor da colheita. As moças gostavam de ouvir os rapazes
rir entre a folhagem. Pela noite dentro cantavam até ao alvorecer. Ao romper do
sol, enchendo o peito, vestiam a farda e seguiam caminho, cantando, muitos levando
debaixo do braço galos da cor do fogo que treinavam nas horas de descanso.
Com o objetivo de capturar
Xanana Gusmão e o que restava das FALINTIL, as ABRI iniciam, dentro da Operasi Keamanan
(Operação Segurança) a Operasi Kikis* cujo método era o Pagar Betis (barreira humana de pernas), método destinado a tirar partido
das etnias existentes afim de transformarem as pequenas diferenças em grandes diferenças
e assim provocarem um choque fratricida. Para evitarem um levantamento ao mesmo
tempo rural e urbano recrutaram para a barreira de pernas a população das cidades
e das comunidades rurais. Por outro lado, com este método, a hierarquia militar
poupava os seus soldados que estavam habituados no seu país a aprisionar homens
desarmados, enquanto em Timor-Leste eram obrigados a escalar montanhas e cercar
de perto homens ligeiros como o vento, sempre em fuga e de suportar como eles a
fome, o relento e o comer frio.
Estas operações militares estavam organizadas
por anéis constituídos pelas ABRI, por civis timorenses recrutados à força e por
Hansip*. As ABRI contavam com 8 Batalhões de fuzileiros com cerca de 12 mil efetivos
vindos de fora de Timor-Leste, com 120 mil milícias integrados e 7 Batalhões com
25 mil membros de milícias e um número desconhecido de tropas suplementares em funções
de combate, mais de 10 000 soldados indonésios dos Batalhões 321,744 e 745 e membros
da Hansip*, Wanra*, Ratih*, além de 60 000 civis timorenses que foram mobilizados
à força como TBO.* Servindo ao mesmo tempo de engodo e de escudo, os civis ficavam
enquadrados no segundo anel, marchando aos gritos e seguindo atrás deles os militares
indonésios a uma distância de cem ou duzentos metros para capturar e executar todas
as pessoas que encontrassem. Os civis ficavam apanhados entre dois fogos, o dos
guerrilheiros cercados e o dos militares à sua retaguarda. O esquema do cerco por
anéis era deste teor:
1º anel - constituído por
civis organizados militarmente,
2º anel - constituído pelos
hansips
3º anel - constituído por forças Indonésias.
Estes
muros de pernas eram um suplício tenebroso usado pelo exército indonésio que usava
essa barreira humana como escudo para passarem a ilha a pente fino e em corrida
acelerada, obrigando homens, velhos, velhas, jovens e até crianças a morrerem de
exaustão. O sentimento de medo é o mais profundo dos sentimentos. O terror ocupa
totalmente uma mente a ponto de se tornar mais forte que o próprio amor. Os indonésios
queriam tê-los paralisados pelo terror, queriam ser temidos.
Durante a fase da formação
dos arrastões foram levadas populações de várias regiões. As escolas foram fechadas
para que professores e monitores pudessem participar. Os civis, homens e mulheres
foram autorizados a levarem apenas facas, lanças, flechas e tambores de bambu. Todos
tinham de atar uma fita preta à cabeça para que pudessem ser identificados. Tinham
de levar consigo as suas rações de alimentos. Cada suco* tinha um chefe a conduzi-los.
Depois de selecionados foi-lhes dito que iam em busca das FALINTIL e também de gente
que ainda se achasse no mato. Quando encontrassem uns e outros tinham de os matar
se queriam que a guerra terminasse rapidamente. Cerca de 80 000 timorenses
desde jovens de 15 anos a homens até aos 55, assim como panas que eram mulheres que a troco de comida estavam encarregadas de
procurar nas matas vestígios da passagem dos guerrilheiros, foram mobilizados para
serem utilizados na continuação da campanha de cerco e aniquilamento.
O
Destacamento de Ligação Nacional achava-se na Região Nakroma.As regras de conduta
impostas a camponeses tornavam-nos primeiro franco atiradores e só depois soldados
disciplinados. A homens treinados para a guerra são-lhes exigidas várias virtudes
sendo duas delas a obediência e a coragem. Para o Destacamento de Ligação Nacional
encarregado da missão de unir o povo, era-lhe exigido ainda mais: o heroísmo. Para
o Destacamento de Ligação Nacional encarregado da missão de unir o povo, a língua,
tendo sido considerada a mais infalível fórmula de uma nação, o responsável desta
região administrativa, Filipe dos Santos (Sakin Nere), fiel à linha de massas da
FRETILIN, de partir do povo para regressar ao povo, tinha-se empenhado em politizar
as suas diversas tribos aprendendo os seus dialetos e ensinando ou aperfeiçoando
o Tétum. A concentração das bases de apoio nos campos de concentração isolava o
povo revolucionário do resto das populações pela diferença de línguas e de costumes
como se os não ligassem os mesmos interesses. Muitos deles, em contacto com estas
populações sentiam que viviam em mundos opostos, alguns estavam assimilados por
redes de comércio ou de troca aos povos do outro lado da fronteira sem que se tivessem
integrado na nação e os que tinham vivido sob administração portuguesa assemelhavam-se
a um pequeno grupo privado de uma tradição e de uma história. Os habitantes de Timor-Leste
que estavam fora dos campos de concentração e os que estavam nos campos de concentração
e os que pertenciam a etnias e que estavam livres, entre todos estes grupos, incluindo
os guerrilheiros que estavam no mato, viviam entre várias impossibilidades de linguagem.
A Linguagem pressupõe o ter comum por excelência e representa a verdade incluída
em toda a comunidade humana. A identidade étnica tem, como todo o grupo humano,
uma espacialidade e uma temporalidade. As etnias tinham escapado ao poder e à dominação,
fechando-se sobre a sua autonomia e o seu devir minoritário. Devir minoritário que
partilhavam apenas com os guerrilheiros armados. A diferença entre estes dois grupos
estava no facto da etnia ser um lugar de não poder, de anti discurso e anti história.
O nosso mundo está estruturado em função da ideia de que o passado é diferente do
presente e que o futuro será também diferente. A população das etnias iletradas
pressupunha que o presente é apenas a repetição do passado e que o futuro continuará
segundo o mesmo modelo circular. Para quebrar esta impossibilidade, havia que se
encontrar um poder de comunicação esquecido. Alguns tentavam uma comunicação pela
dança, pelo gesto e pela música. Cuidou-se sobretudo de dar uma escola às crianças.
Pesava sobre as etnias minoritárias a ameaça da política de transmigração levada a cabo pelo ocupante. Os camponeses da região que até então agiam quase por instinto, embora com dificuldades de comunicação, estes homens e mulheres foram percebendo que o inimigo que os estava usando nos cercos à guerrilha,estava atrás e não à sua frente. Entre as etnias e a maioria da população de língua Tétum crescia o sentimento de que aquele pedaço de terra que haviam herdado dos seus ancestrais eram pertença deles. Nos seus «estilos*», o povo evocava através dos anciãos todo um passado de gerações sucessivas assim como os vínculos de sangue entre os diversos reinos. À identidade tribal e étnica sucedeu e alicerçou-se a identidade histórica maubere a que se somou a consciência de que são um povo que está a fazer a sua própria história. As ABRI, no cerco aos combatentes, usavam-nas com o objetivo de eliminarem de um só golpe, os guerrilheiros e o povo destas etnias e facilitar assim a entrada dos transmigrantes indonésios.
Não
ousando internar-se naquele mato cheio de cavernas, onde talvez se acoitassem as
FALINTIL, as ABRI puseram em movimento o arrastão que começou a marcha rufando tambores
enquanto os populares, empurrados pelos hansips se internavam no mato, dando sinal
de encontrar aqui e ali nas encostas do Monte Aitana e do Monte Santo António, gente
do mato. Os guerrilheiros deslocados do leste não conseguiram compreender os avisos
dos habitantes locais que falavam uma língua diferente da sua e muitos foram logo
no início apanhados e mortos.
As
FALINTIL que evitavam a todo o custo o enfrentamento, perante os massacres perpetrados
na ribeira Uaidada de mulheres e crianças, um grupo de guerrilheiros, sentindo revolta
e indignação e, mais temível ainda e implacável, o amor próprio excitado e ferido,
vendo que havia militares indonésios ainda no local do crime, desceu a encosta do
Monte Aitana até à ribeira de Uaidada. Os guerrilheiros desceram mata abaixo abrigando-se nas árvores
e nas rochas, e uma vez no descampado avançaram curvados para não serem alvejados
e tentando alvejar o inimigo o mais próximo possível para não desperdiçarem munições.
O confronto armado prolongou-se durante vários dias. Logo no dia 1 de Setembro de
1981, o Batalhão de Infantaria 744 defrontou-se com a Resistência Armada. Aos primeiros
tiros foi dada ordem aos civis da barreira de pernas que ficassem com os hansip
atrás. Os tentara do Batalhão 744, como cães, metiam-se pelo mato para cortarem
as cabeças dos guerrilheiros abatidos e receberem por elas um prémio em arroz, um
maço de cigarros ou centenas de rupias consoante a importância do troféu.
Na barreira de pernas, Paulo, que ia
ao lado do hansip Sebastião da Cunha, percebeu que este hesitava, agindo como um
autómato, o seu corpo avançava enquanto o seu coração sentia que estava do outro
lado, que estava com os cercados. Combatia-se em todo o lado e na ribeira de Uaidada
as ABRI e as FALINTIL confrontaram-se num combate feroz que durou das 8 da manhã
até ao fim da tarde. Iniciado o combate tudo se passou em segundos depois de longos
dias de espera. Em dez segundos de tiroteio as ABRI racharam uma secção das FALINTIL.
Enquanto alguns guerrilheiros tentaram cobrir alguns camaradas para que se escapassem,
outros saltavam as pedras metendo-se na corrente do rio e, caindo em vãos e remoinhos,
tentavam retardar o avanço da tropa indonésia, mudando de posição para não atraírem
a resposta do inimigo e para retomarem o fôlego. Ao longo do combate, os que ficaram
numa posição recuada, perderam-se uns dos outros e, agachados nas pedras negras
atiravam para os soldados até que sem balas tombaram deixando o cadáver encalhado
numa margem.
Anacleto
Ximenes, então com dez anos de idade, achava-se com as centenas de civis que se
encontravam com a FRETILIN/FALINTIL no Monte Aitana, numa área sob o comando do
comandante José Gusmão (Mau Kalo). Anacleto Ximenes e um amigo da sua idade que
acompanhavam um soldado das FALINTIL, ao ouvirem os tiros perceberam que estavam
cercados por uma barreira de populares que mal avistou aquele pequeno grupo desgarrado,
indicou-lhes uma rota de fuga que eles não entenderam. A confusão de línguas foi
enorme pois responderam-lhes por sinais que por sua vez os populares da barreira
de pernas não entenderam o que provocou um atraso na busca de uma saída do cerco.
Correram
tentando chegar à ribeira para descerem por ela abaixo mas abrigaram-se pois deram-se
conta que as ABRI concentravam ali o seu ataque disparando contra os soldados das
FALINTIL que guardavam as pessoas que lá estavam para buscar água, lavar roupa ou
lavarem-se. O combate prosseguiu durante toda a manhã até à chegada do Batalhão
de Infantaria 744 e de unidades de fuzileiros que romperam as linhas das FALINTIL
que tentavam vencer a superioridade do inimigo pelo heroísmo, coragem e astúcia,
num combate que durou até ao fim da tarde com grandes perdas de guerrilheiros e
civis. As ABRI tinham também algumas vulnerabilidades pois os comandantes davam
poucas munições aos seus soldados com medo que eles se revoltassem o que obrigava
os soldados a recorrer às armas brancas. Lutava-se faca contra faca e as facas brilhavam
de suor e sangue com muita cólera, raiva, vingança e desejo de ambos os lados de
vencer a qualquer preço.No corpo a corpo de nada servia aos soldados a artilharia
e a aviação porque para avançarem mata adentro as bombas atingi-los-iam ou mesmo
o reforço de muitas unidades especializadas que teriam que investir também um terreno
que desconheciam. Ao servirem-se de batedores timorenses nenhum deles regressou
das missões que lhe haviam sido cometidas. O guerrilheiro que ia acompanhado por
Anacleto Ximenes e o seu amigo, vendo que a sua posição tinha sido descoberta pela
tropa indonésia e que Anacleto se aproximava da sua posição, gritou para ele:—Corre,
corre, esquece-te de nós e leva a notícia lá acima.
Mal
acabara de pronunciar estas palavras, foram alvejados pelas ABRI tendo sido atingidos
e mortos o amigo de Anacleto e o soldado das FALINTIL. Anacleto Ximenes correu para
eles e, dando-se conta de que estavam mortos, pegou nas caixas de balas e na faca
do guerrilheiro, e, perseguido pelos soldados que tentavam alvejá-lo, tendo–se escondido
no capim alto perderam-lhe o rasto assim como a muita gente que fugia. Anacleto
segurava bem as caixas e a faca pois eram o passaporte para a sua sobrevivência
pois com elas adquiriria o estatuto de auxiliar das FALINTIL. Do seu esconderijo,
Anacleto seguia atentamente o que se passava em redor, as pessoas fugindo para tentarem
proteger-se e viu a mulher do comandante Mau Kalo que estava grávida a correr na
sua direção para buscar um refúgio e cair debaixo de um eucalipto atingida a tiro
no ventre.
Dando-se conta que a correria parara, o major Iswanto, o comandante indonésio do Batalhão 745 de Infantaria mandou atear fogo ao capim para obrigar as pessoas escondidas a sair dos seus esconderijos, gritando:—Esconderam-se no capim. Fogo no capim!
Estava-se
na estação seca e o fogo, de imediato, em labaredas alterosas galgou a planície
e subiu as encostas devorando tudo à sua passagem. O fogo lançado ao capim nas zonas
em que as multidões de forçados tinham sido obrigados a manter-se, esfomeadas e
exaustas, muitas pessoas não conseguiram fugir e defender-se a tempo morrendo queimadas.
Muitos populares do mato, homens, mulheres, jovens e crianças que estavam escondidos
no capim preferiram sair e levar um tiro a morrerem queimados como cobras. Anacleto
lembrou que sempre lhe tinham dito que mal entrassem em combate que se escondesse
mas naquela ocasião cada um tinha que se salvar a si mesmo. Nos seus dez anos de
idade,Anacleto desenvolvera uma grande capacidade de resistência que passava aos
olhos de muita gente por insensível, por ter uma verdadeira pedra no lugar do coração.
Apesar do medo que aprendera a controlar e a tornar vigilante, em lágrimas invisíveis
Anacleto sentia que o seu corpo albergava uma promessa de vida e a violência de
quem lhe iria fazer mal devia ser suportada não apenas para medir a sua resistência
como para torná-la num exercício de laço com a humanidade que acaso existisse no
inimigo, fosse ela a da cupidez. Anacleto, carregando as caixas de balas e a faca
saiu do esconderijo para se salvar das chamas e vendo-se descoberto, para não ser
alvejado ficou quieto e agachado, colocou as caixas que segurou à sua frente e quando
o soldado indonésio atraído pelo despojo e pela avidez de munições, deixou de disparar
e se aproximou da sua posição, Anacleto estendeu as mãos dizendo:— Rendo-me, senhor.
Anacleto
Ximenes que sempre se tinha recusado a sair do mato para frequentar a escola como
queria a FRETILIN, foi incorporado aos TBO do 745 e ficou sob o controlo do major
Iswanto, o comandante do Batalhão 745. Nada sabia do inimigo e longe estava a infância,
que infância, um instante breve em que não pensava em nada, vivendo apenas brincando
na margem de um rio. Toda a sua vida mental de menino velho consistia, naquele momento,
em espreitar a oportunidade de fugir assim que a situação o permitisse.E, se fosse
favorecido pela sorte levaria uma espingarda, a espingarda tão cobiçada porque a
espingarda era todo o seu mundo, o mundo que não estava ao seu alcance porque sem
ela não tinha sequer mundo e muito menos comida. Nas FALINTIL onde estava praticamente
desde a invasão indonésia, nunca lhe tinham querido dar uma espingarda embora sempre
constantemente a pedisse. Porque achava que o ajudaria quando sentia medo passou
a ser o seu sonho ter uma. Não a tendo, limitava-se durante os combates a ficar
na retaguarda apoiando os guerrilheiros com gritos e berros. Com a espingarda deixava
de ser escravo. Sabia de ciência certa que nem os espíritos, nem os santos decidiriam
dos factos e dos acontecimentos porque factos e acontecimentos tinham a sua origem
na espingarda.
No
Monte Aitana o combate prosseguia. Alguns jovens combatentes, aventurando-se mato
adentro até às linhas inimigas chegavam junto do povo da barreira de pernas, face
a face e sentiam o coração deles bater forte no silêncio atroz em que toda a natureza
se calava suspensa do abismo de silêncio de vozes humanas. De arbusto em arbusto
um movimento começa a murmurar, e o povo sitiante sentia o avançar dos corpos e
os ruídos quase impercetíveis da respiração e o tambor do coração batendo de medo
e de susto, e o deles batendo igualmente do susto da morte que podia vir pelas costas
e também pela frente. E assim permaneciam sem se verem na escuridão da noite, respiração
contra respiração, até que um deles, homem ou mulher experimentados, tateando, conheciam,
pelo odor, se quem vinha no escuro da mata e quem deles se aproximava, se era amigo
ou inimigo. E durante o dia entre os sitiantes, aqueles jovens de coração puro e
espírito de verdade mostraram-lhes que estavam armados e que eram as armas que assustavam
a tropa indonésia e que por isso os estavam a utilizar como escudos e ensinaram
o povo a separar-se dos soldados indonésios que estavam nas linhas detrás, comunicando-lhes
que não lhes queriam fazer mal, que se afastassem pois eles estavam ali para erguerem
o edifício da pátria construindo a sua independência. Apesar dos esforços de ambas
as partes, o povo mostrava-lhes que lhes era impossível afastarem-se pois seriam
mortos envolvidos como estavam por vários círculos de tropas indonésias e sem poderem
atacá-los pois iam desarmados assim como os hansips. Mas abriam brechas por onde
passaram civis e estafetas com a missão de alcançarem os timorenses integrados nas
forças inimigas. Os guerrilheiros assumiram a sua nudez como uma perda, sentindo-se
como os define a Escritura: «eles conheceram que estavam nus».
O dia abriu a pálpebra
de chama da madrugada. Insetos e abelhas vindas de longe em busca da flor, lagartos
furtivos corriam sobre as pedras e cobras invisíveis removiam montículos de folhas
secas. Tudo vivia e a vida poisava, graciosa e livre numa borboleta. Era o sorriso
da natureza. Para os homens cercados, aquele morro era para eles o derradeiro jardim
e, quem o saberia se não viria a ser o seu cemitério. O pipilar dos passarinhos assemelhava-se aos suspiros de uma alma
morrendo.
Iniciado o ataque,
o pelotão, de armas aperradas avançava com toda a cautela e num silêncio profundo.
O capitão tinha pela frente um monte rodeado de bosques e, com um gesto de mão ordenou
que se parasse, no que foi prontamente obedecido pois todos sentiam como que várias
ameaças vindas da profundidade da floresta. Limpando o suor da testa, o capitão
olhou em redor com uma atenção inquieta buscando sinais de passos no chão do estreito
caminho e nas ervas que o orlavam. Nada tendo percebido que denunciasse a presença
do inimigo, de ouvido atento pôs-se à cata do menor som humano, fosse o pigarrear
de uma garganta ou o gesto apertado de quem tomado de súbita rigidez muda de uma
posição de atalaia ou ainda o ruído de armas. Indeciso, não arriscava iniciar a
marcha e, embora os seus soldados e oficiais soubessem quanto a sua experiência
constituía uma salvaguarda para todos, no entanto a preocupação denotada e a indecisão
anunciavam um perigo. Os civis timorenses requisitados para fazerem parte do muro
de pernas foram mandados para a frente, para servirem ao mesmo tempo de engodo e
de escudo. Incapazes de imaginarem a que ponto a situação seria grave, entreolhando-se
numa rápida consulta sem que transpirasse num único rosto algo com que colhessem
uma informação ou sinal, por instinto os soldados indonésios mantiveram-se quietos
e calados, mal ousando respirar. O capitão, designando com o dedo 12 dos seus recrutas
timorenses que julgava com mais sangue frio e audaciosos, chamou-os a si por um
sinal da mão num movimento rápido e repetido dos dedos, e logo os 12 se destacaram
do conjunto. Os restantes soldados ficaram a ver o que se iria passar, na convicção
de que estes timorenses iriam servir de isco à guerrilha para que esta, atacando,
denunciasse as posições que ocupava. Não lhes invejavam a preferência pois iam a
caminho de uma morte certa. Os soldados destacados dividiram-se em dois grupos de
seis homens cada.E cada um dos grupos tomou uma direção diferente mas para dentro
da mata. As forças indonésias se avançassem mata adentro arriscavam-se a perderem-se
na inextrincável rede de sarças densas, de ravinas abruptas, de caminhos fundos
e dos labirintos pedregosos das veredas. Reunidos como uma matilha de cães selvagens,
o povo das barreiras de pernas receberam ordens de avançar ficando assim apanhados
entre dois fogos.
Os
comandantes gritavam para esta gente que suplicava às pedras, às árvores e aos espíritos
da terra para se tornar invisível.: ― Haveis de morrer por uns ou por outros, por
nós ou por eles.
Tambores
tocaram à carga. A barreira de pernas marchou à aventura com inquietação e receando
encontrar o que procuravam, mas acossada pelas costas, a barreira de pernas vasculhou os bosques em todos os sentidos e com varapaus furou
a espessura do matagal, torneou as árvores com que se deparava no caminho, afastou
com os braços as ervas altas onde poderiam estar escondidos os guerrilheiros. As
colunas infernais iam em frente esquadrinhando, perseguindo, encurralando.
—São
o nosso povo, maltratado e à espera que os matemos,disse o comandante Siku para
os seus homens.
E
os seus homens baixaram as armas. Sob a luz doce do sol, os guerrilheiros viram
uma barreira de pernas subir a encosta. Sala Bill, da Resistência Armada de Home
gritou para os seus homens:—Vamos ter que perecer sem lutar. É o nosso povo que
aqui está.
Paulo, que ali estava na multidão, moveu-se e como muitos outros homens mobilizados para este fim, Paulo que não se podia embriagar, além da angústia que sentia pela estranha função que lhe era exigida, via morrer de fome e exaustão muitos dos seus companheiros de infortúnio. A cerca humana de que ele fazia parte parou paralisada pelos gritos das primeiras vítimas mas foi obrigada a avançar a golpes de chicote. Naquele momento um cartucho, uma arma ou uma qualquer munição ou mesmo faca de mato ou prego ou canivete ou chifre, tudo o que ferisse, cortasse, arranhasse, matasse, tudo isso valia mais que todo o dinheiro do mundo ou mesmo o ouro ou a prata. Metidos no mato como cães farejando a presa, parando numa moita, Paulo ouviu este desabafo do seu companheiro mais próximo: ― Estou por eles obrigado a matar por não ter tido a coragem de morrer.
E
a barreira voltou as costas aos guerrilheiros. Logo depois chegaram os soldados
e de todos os lados surgiram metralhadoras, baionetas e a fuzilaria começou. Apanhados
de surpresa, alguns soldados perderam as armas e a vida. Outros se lhe seguiram
e a ordem era a de acabar com os feridos, fuzilar os prisioneiros e todos os civis
que ali se achassem. Uma vez rompida a barreira seguiu-se a fuga desordenada de
uma multidão e nessa multidão ia Paulo. Sala Bill, apressadamente, aproveitando
a confusão, entregou as armas a alguns dos seus homens mandando-lhes que retirassem
por essa brecha.
Holy
Natxa ouviu um ruído difuso e profundo e uma confusão de palavras, algumas de gente
de uma etnia tão minoritária que poucas pessoas as percebiam e que eram pronunciadas
no meio de clamores em tom de cólera ou de triunfo. Eram gente cujo pensamento habitava
o túmulo de uma língua morta e que uma vez junto deles, notaram, nos olhos de alguns,
lágrimas, enquanto noutros que avançavam armados de paus e facas, as suas pupilas
faiscavam ardentes de vitória perante a morte eminente dos cercados pela tropa indonésia
que avançava sentindo-se protegida atrás dos civis. Sakin Nere, notando-o cercado,
aproximou-se da posição de Holy Natxa mas pouco depois, as primeiras colunas de
indonésios chegaram lentamente, fazendo um rumor estranho, como se uma inundação
subisse a colina, gritando como feras e descarregando as armas sobre eles. Os primeiros
guerrilheiros tombaram. Logo após, os soldados que vinham atrás substituíram-se
aos primeiros e carregaram sobre eles numa fúria de extermínio.
Um
pouco mais adiante, junto das forças de Hari Nere e Nelo Kadomi Timur chegou uma
população que depois de terem atravessado densas sarças, franqueado torrentes, saltado
vales espinhosos onde as árvores despenhadas no abismo se prendiam à rocha por uma
raiz, uma vez aberto o caminho vendo-se perante homens armados que não dispararam
sobre eles, tentaram comunicar. O jogo de linguagem entre os militares indonésios
e essas etnias consistia num jogo de linguagem em que o uso de signos era exclusivamente
o da ação de executar: avançar, fogo, matar. Os jogos de linguagem como os jogos
são práticas sociais, formas reguladas de interação. Depois de simultaneamente se
medirem, esses homens e mulheres levados para executarem o trabalho do cerco e matança
dos guerrilheiros perceberam que os únicos vocábulos apreendidos eram para lhes
serem dadas ordens e não para uma comunicação autêntica e viram no esforço de comunicarem
dos guerrilheiros uma aproximação entre iguais. Embora entendessem o que se estava
a passar como um jogo de caça ao homem e sentindo que aqueles homens sofriam um
ataque de um povo estranho a todos eles, fizeram o possível para se afastarem, ajudando
a saírem através dos caminhos por onde eles tinham ali chegado. Foi tudo muito rápido
pois o lugar ficou coberto de soldados que romperam num vivo tiroteio contra os
combatentes que não ripostaram. Para não atingirem a população ergueram os braços
e fecharam os olhos e alimentando os seus derradeiros momentos com as próprias convicções
e o amor do seu povo morreram como se fossem estrelas cadentes destinadas ao abismo.
Ao
fim de séculos de se estranharem uns aos outros, de disputas e lutas, reencontravam-se
com as tribos perdidas no seu isolamento, com o corpo sofredor da nação e que o
sacrifício dos guerrilheiros selava com o seu sangue essa aliança.
NOTA
Este episódio consta do capítulo V da 1ª
Parte do IV volume da tetralogia A PEDRA E A FOLHA intitulado RESISTIR É VENCER: OS
TIMORENSES (1980-2002). Os personagens desta narrativa são reais e os factos descritos
verdadeiros.
SIGLAS
ABRI — Angkatan Bersenjata Republik Indonesia
(Forças Armadas da República da Indonésia).
CATUAS — A pessoa de mais idade numa comunidade
rural.
ESTILOS — Cerimónias rituais que acompanham
os eventos da vida em comunidade.
FALINTIL — Forças Armadas de Libertação e
Independência de Timor-Leste.
FRETILIN — Frente Revolucionária de Timor-Leste
Independente.
HANSIP — Timorense integrado à força nos quadros
da Defesa Civil indonésia.
KIKIS — Operação de lascar, raspar.
RATIH —
População treinada para a defesa civil.
SUCO — Aldeia.
TBO —
pessoal operacional auxiliar.
TENTARA — Soldado
indonésio.
WANRA — Timorense
oriundo das etnias e integrado na força de Resistência Popular indonésia.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 159 | outubro de 2020
Artista convidada: Mariana Palova (México, 1990)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS |
MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2020
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