quinta-feira, 15 de outubro de 2020

LUIZA NILO NUNES | Uma rosa edificada: sobre erotismo e espiritualidade em Eunice Odio

 


D
urante a década em que manteve correspondência com o editor Juan Liscano, Eunice Odio (Costa Rica, 1919 – México, 1974) desenvolveu um extenso trabalho epistolar, documentos que constituem verdadeiras peças literárias. Nestes foram revelados o carácter meta-crítico da sua obra e reflexões sobre o seu processo de escrita, bem como a sua concepção de poesia, a Gran Balada, e de poeta, ser prolífero e plural que então mesclado com as forças dinâmicas da Humanidade é a súmula universal de todos os ânimos, o alquimista ou a profetisa, cuja palavra tem o dom de convocar e transmutar a realidade. A sua poética apresenta-se, nestas cartas, com um pendor de iniciação estético-ascética [1] em que o labor do poema se traduz por um caminho à plenitude existencial e ao apuramento do espírito. Esta lenta e aturada afinação – que passará pelo desvendar do potencial, ainda insondado, de uma voz tão vasta e clara como um feixe de lâmpadas – só é possível no esplendor do isolamento e da clausura, no retiro de silêncio onde se funda o ar da graça e o assombro. O lugar onde o poeta desenterra do estéril – da pobreza, da calúnia, do desgosto, do enjoo – a pura rosa edificada.

Anos mais tarde, dirá a crítica que Eunice Odio pode integrar-se na família dos poetas metafísicos, aqueles que não procuram somente o exterior e a frivolidade do mundo, mas o seu cerne imperscrutável, o seu alento mais profundo. Isto é, para Eunice Odio, diferentemente dos poetas da sua geração que vão talhando carreiras, publicando exaustivamente, promovendo sem pudor os próprios livros, movendo-se, afinal, como engrenagens da grande máquina do mundo, o poema não constitui um meio de deixar um nome para a posteridade, é antes uma ascese espiritual, um processo evolutivo de solidão e aperfeiçoamento que em muito se assemelha ao experimento de uma sensibilidade religiosa.

Com efeito, se desde jovem, tempo em que a família do seu pai doa um terreno para a Sociedade Teosófica da Costa Rica, a poeta é cercada no ambiente familiar pela percepção de um universo intangível, ou se ingressa, em 1967, na Ordem Rosa-cruz, alcançando o 2º Grau Superior do Templo, o que verdadeiramente a distingue dos seus colegas de ofício e a põe à margem do discurso literário dominante é a elegância de uma língua ornitológica, aprumada – a arcaica língua dos pássaros – em que os versos, como aves, executam ou perfazem itinerários imprevisíveis, sob um ritmo veloz e acidentado, sem por isso abdicarem do exercício do rigor. Esta rígida exigência estrutural que não a deixa aventurar-se nas rupturas sintáticas características da literatura do século XX, não a impedem, porém, de integrar-se nas vanguardas e de conciliar uma poesia tradicional, em alguns poemas notoriamente herdada dos Cancioneiros galego-portugueses, com o surrealismo e o criacionismo. [2]

Outros aspetos que distinguem a sua obra poética – e novamente incidimos na ideia de linguagem enquanto fruto da experiência do sagrado ou do êxtase místico, sem descurarmos que a linguagem da poesia, por exemplo na perspectiva de Bataille, [3] é ela própria êxtase, erotismo e transgressão, sendo por isso insubmissa às leis da razoabilidade – é a abordagem original e surpreendente de temas bíblicos, bem como a utilização de vários elementos da liturgia cristã, então reinventados e transgredidos pelo fenómeno poético, aquando da exploração de tópicos como a feminilidade, a liberdade sexual e a paixão. Se os seus primeiros poemas tocam ainda em alguns temas circunstanciais – como a maternidade frustrada, a morte de um amigo, a visita de outros – ou apresentam um carácter político esquerdista, uma elevada consciência dos problemas sociais, mais concretamente da Guerra Civil Espanhola, plasmada no poema “Nube y ciel mayor”, Los elementos terrestres (1948) constituem uma segunda e extraordinária etapa evolutiva.

Reunião de oito poemas consideravelmente extensos e em verso livre, com uma sólida unidade orgânica, mas de tal forma independentes entre si que se separados conservam a sua identidade temática e integridade lírica, este livro de um insólito lirismo erótico-mítico, apresenta uma visão cósmica da realidade que poderá plausivelmente comparar-se ao Cântico Espiritual de São João da Cruz. Porém, a fonte de onde afluem os versos, com rigor de cirurgião e alegria de demiurgo, será o Cântico dos Cânticos salomónico. Metáforas, palavras-chaves e recursos rítmicos expõem as marcas de exaustivas leituras da Bíblia, dando origem à formação de um brilhante e lascivo imaginário amoroso, de um arsenal poético inaudito que, se por um lado, vem a beber dos odres milenares da sede do deserto, se apresenta renovado, renomeado. De frisar que o seu caráter inovador, ou a sua forte virtualidade criativa, concretizar-se-á pela suplantação [4] das Escrituras Sagradas, por uma aproximação de tal forma arrojada ao Cântico dos Cânticos que ao mesmo tempo que deste se acerca, habilmente inverte os seus códigos de significação, suplantando o amor à Igreja – inscrito em forma de alegoria no livro de Salomão – pela presença da mulher terrena. A mulher de cuja costela sinuosa nasce o «amigo formoso» (p.) e cujo âmago angustiado solicita o mesmo amigo para o enlace e o êxtase:


 

Vem

Amado

 

Provar-te-ei com alegria.

Tu sonharás comigo esta noite.

 

Esta inversão do texto primário ocorre ainda e enfaticamente, em Los elementos terrestres, ao nível do enunciador. Onde havia maior enfoque a uma perspectiva tradicional masculina [5] há agora a presença irreprimível de um olhar matrifocal, de uma voz que patenteia enfaticamente a autoridade feminina, tanto no âmbito da libido, como no espetro metafísico. Enleada à habilidade da paixão e ao fascínio pelos júbilos da Terra, a clamorosa voz de um emissor feminino permitirá, assim, entrever nestes poemas aquilo a que poderemos nomear como pulsão erótico-mística: um impulso que ao partir da exploração erógena conduz à alacridade e à fruição de um êxtase divino, em muito similar ao êxtase tântrico dos hindus ou à ascensão de Santa Teresa de Ávila. É desta forma que o corpo enquanto objeto de prazer, e o amor elementar entre mulher e amante, ou mulher e Cristo, além de abrirem espaço à construção de uma metalinguagem cujo hermetismo é voluptuosamente ultrapassado pela dimensão sensorial dos vocábulos, conduzem a um estado orgástico-ascético, a um orgasmo feminino que potencia a aparição espiritual, a revelação:

 

Depois,

desliza o meu amor sob a tua voz,

 

O meu sexo como o mundo

é um dilúvio e tem pássaros,

 

E no peito estalam-me pombas e revelações.

 


Também o carácter transitório do amor, outro tema recorrente em Los elementos terrestres, é sublimado pela capacidade do espírito e da poesia de transcender limites temporais e espaciais, preenchendo a vida e atingindo a abundância, então vertida para um estado líquido de proliferação das águas doces – o rio mítico da infância de Odio tornado símbolo na poesia? – ou transformada em opulência solar, em alumbramento, em profusão e exultação de luz. Esta luz, da tarde, do meio-dia, da manhã, não raras vezes aberta, a incidir calorosamente sobre a paisagem e os edifícios, ou a ministrar vinhedos de ouro, é outro dos elementos-chave do universo poético de Eunice Odio, constituindo uma das suas grandes obsessões lírico-ontológicas. Irmanada à sombra, ou à mundividência da sombra – da ausência, da pobreza – a claridade prefigura a magnitude do espírito e o anseio de uma realização suprema do criador enquanto poeta:

 

E a alegria puríssima,

a funda graça presente e maturada,

que irrompe até ao fundo do sangue,

que faz correr e madrugar com os pássaros,

e trocar de peito e ser,

como certas flores,

um coração de veludo na manhã.

 

A par de experiências de solidão e esterilidade, a completude é alcançada através da luz, do feminino e da nudez, do ser despido dos invólucros sociais e em estado de fruição de uma feminilidade arquetípica e total, revelada nos seus aspetos corpóreos – sexuais, carnais – e metafísicos. Mesmo o tópico da angústia, muito distinto do


tom feliz e tropical cristalizado nos discursos literários costa-riquenses durante o Modernismo, é mote para o gozo da carne e para a ascese passional do espírito, isto é, para a enlevada mas terrena experiência de uma religiosidade orgástica. É que carne e espírito, em Eunice Odio, são a mesma força humana despudorada, intransigente e amoral, o núcleo vivo e resplendente da poesia. Ou da palavra proferida pela língua dos nascidos.

 

NOTAS

Texto cedido pela autora, prefácio de Os elementos terrestres e outros poemas de Eunice Odio (trad. Luiza Nilo Nunes, Anjo Terrível edições, Portugal, 2020).

1. Para Eunice Odio, «Escribir un nombre, equivale a convocar» (Vallbona, 1980, p.14).

2. Odio, 2018, p. 13.

3. Bataille, 1988, p. 160.

4. Sobre o labor criativo em Los elementos terrestres, refere Spina (Chen Cham, J., Vallbona, R., 2001, p. 45) que este caracteriza-se por um processo de suplantação do grande coletivo da Igreja Católica pela materialidade do amor sensual, um amor que embora terreno é veículo para a ascese do espírito.

5. Como o lírio no meio dos cardos,/ assim é a minha amada entre as outras raparigas. (Helder, 2015, p. 30). 

 

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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO

Número 159 | outubro de 2020

Artista convidada: Mariana Palova (México, 1990)

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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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