terça-feira, 1 de dezembro de 2020

JORGE RODRÍGUEZ PADRÓN | Leitura de José Lezama Lima



Penetramos em uma selva; enfrentamos um labirinto que nos conduz, onde? Esta trama (e seus caprichos) origina-se na voz, na palavra primordial que, de imediato, surge no branco da página e – semente fecundante – germina, com feracidade tropical, em um contínuo incessante, fluente, flamejante, que a inunda toda, que acaba por possui-la. Não é o final, o rotundo contorno das imagens obtidas o que nos satisfaz; é sempre o princípio, um nascer constante e plural de dissimilitudes, de alumbramentos, de atrações e rejeições: uma expansiva (e explosiva) polissemia. O que fazer então? Para onde nos orientarmos em nossa navegação? Aqui está a chave de tudo: não no poeta doador, mas sim no leitor que se afana por receber tais dons. Afana-se, como? Porque esta escritura se aproxima de nós, rompe violentamente nossos imaginários diques de contenção e se instala (organismo ela mesma; corpo, forma que respira asmática, ofegante) em nosso espaço. Movimento constante, revoltas de um barroquismo carnoso, corporal, que – nos damos conta quando já não há opção para o arrependimento – se detém e se alça, inquestionável firmeza, em uma perplexidade – sua, nossa – que anula todo percurso.

 

Saímos ou entramos? Te aperto as mãos

e ficamos adormecidos com saltos e sobressaltos.

Saímos? Uma praia com uma rena

ouve na altura vozeirão de uma nuvem.

Entramos? O bosque se retira, a decoração

se aproxima de uma festa campestre filandesa.

Entramos? Desgasto teus braços.

Saímos? Saltam os olhos mortais de um mineral.

 

Olhos mortais de um mineral. Porque aqui a operação do leitor consiste em ver; mas fazê-lo não é manter uma distância prudente, ou a superioridade de quem vê sobre o visto; não é interpretar: ver com displicência. É ver (e ouvir) na medida em que os fios invisíveis do olhar aproximam o texto até o eu, e este se deixa conduzir, e possuir; sem acudir à ortopedia com que aborrecidamente queremos ser sujeitos pacientes de não sei quantas fidelidades perigosas: um ato copulativo no qual, por último, o leitor se abandona, e é livre. Mas livre para introduzir-se pelos intrincados despenhadeiros do mistério; para descobrir, absorto, qual é o sentido único do poético. “A grande plenitude da poesia correspondente ao período católico, com seus dois grandes temas, onde está a raiz de toda grande poesia: a gravitação metafórica da substância do inexistente, e a maior imagem que talvez possa existir, a ressurreição.”

Reconhecimento e confissão (“Adormeço, que a sombra fleche / o que é meu ser e o que está flechado, / golpe ou bocejo, luz ou sombra queimadura”), não é somente um leitor perplexo o que – possuído – se abandona ao irresistível encantamento dessa forma na qual artifício e naturalidade, sem perder sua condição de contrários, tornam-se um na identidade misteriosa da palavra. Também ali o poeta, encantador dos signos, encontra-se só diante de seu limite, espelho ou porta do vazio que habita no absolutamente cheio; espelho onde Narciso se contempla, no embelezamento da morte; porta onde São João de Patmos aguarda o martírio:

 

Não é seu banho o do corpo afetado que vacila

Entre a tepidez da água e da fidelidade miserável do espelho.

Glória! A água converteu-se em rumor bem-aventurado.

Não é que João tenha vencido o azeite fervendo:

Esse pensamento não o assedia, não o desonra.

Amigou-se com a água, transfundiu-se na amizade onicompreensiva.

 

Não se acha diante de ti – avisado leitor – este poeta altaneiro e confirmador da verdade a que estás acostumado, e que te obriga a fechar os olhos à atrativa cintilação da vida, ao dinamismo cambiante do mundo, das coisas, de ti mesmo, débil porém gozoso mortal. Quem dali te fala, fala a si; seu rumor inimigo, sua sigilosa aventura cresce desde a evidência corporal do texto e sacodem sua intimidade com tão estranha força que seu volumoso corpo quase não se agita em seu sutil, quase invisível, calafrio. Com tal crueza se ergue esse novo mundo de imagens insuspeitadas e terríveis que seu rosto avultado penosamente se contrai no lírio oval dos lábios; que seus olhos sonolentos, de pálpebras inchadas, não pestanejam (acaso, o arco da sobrancelha, tenso, nos avisa que viu algo): a epopeia interior, a aventura emocional e mental, já não pode contar-se; precipita-se no borbotão incontido da afirmação fundacional. O espanhol (a língua) é o corpo desejado e nunca rejeitado; o corpo discutido, possuído, violado uma e outra vez por Lezama Lima. Esse espanhol que aprendera, já em suas leituras infantis, dos escritores peninsulares que com mais gulosa avidez tomaram de assalto o castelo (corpo) de sua língua, desde Cervantes a Gracián, passando pelo “Quevedo de Los Sueños e dos sonetos à morte, o prodígio das Soledades… e logo os clássicos menores… Bocángel… Polo de Medina…” E já não houve defesa possível de ordem alguma. “Escritores espanhóis um pouco demoníacos”, deles dirá Lezama. Por isso, foram admirados mas temidos; foram lidos, porém apressadamente interpretados (sequestrados), para que aquela dissidência radical surgisse – inútil esforço – temperada.


Como no poeta, também em ti – leitor – se produz o deslumbramento, o desejo de explorar tão generosa imaginária; esse oferecido corpo de palavras onde o relâmpago instantâneo do poema te diz que é tua própria imagem o que exploras. E quando o prazer começa, o tempo da luz se esgota: o instante torna nada aquela sucessiva teoria de formas e de brilhos. Somente assim – abandonado ao deslumbramento, com a ignorância do iniciado e com sua própria e religiosa fidelidade – teu assombro será justificado (“A sombra da nuvem rapidamente caía. / O corpo enrolado em seu manto e sua sombra avidamente bebia.”). Entre a abundância e o nada, o drama do barroco; entre a abundância e o nada, a existência do crente: a encarnação e o mistério. “E assim onde o estoico acreditava que saltava de sua pele ao vazio, o católico situa a procissão para despertar no corpo como limite, a aventura de uma substância igual, real e ricamente possível para despertar Nele”. O vazio não é o nada diante da abundância, mas sim a misteriosa conjunção de ambas: a abundância do nada. Como muito bem aponta Cintio Vitier, “a poesia de Lezama Lima expressa a realidade como um fato carnal no idioma, e através de um olhar que não interpreta nem agoniza em linhas lógicas ou sentimentais seu objeto, mas sim que prefere deixá-lo em seu místico exterior e reduzi-lo a substância degustável do desconhecido”. Por isso, como eu apontava no começo, avançamos decididos, ou nos perdemos surpreendidos, para chegar à revelação, ao instante supremo em que tudo se ilumina. E então acontece que o iluminado é um corpo, uma “substância degustável” que resulta ser o próprio mistério: a mentira da evidência e a evidência da mentira. Foi inútil esta procissão? Nunca o será, posto que saímos dali reconfortados ao haver conhecido o fundo da verdadeira existência; a vertigem da vida e da morte (“A ausência vinha a ser substituída / pela perpetuidade leve do rocio, / nutridor impalpável da invisível melancolia”).

Espelho, cinza, fumaça, ar, neve…, elementos fugitivos e enganosos onde se vê a vigorosa feracidade, úmida e cálida, da América; e vã transparência da Europa que – desde o poema – vê com desconsolo, ciente de sua fugacidade, a imagem transbordada e sucessiva em que encarna, por obra e graça do milagre realizado, em sua entrega absoluta à palavra, pelo poeta Lezama Lima. Escritor como leitor; escritor que lê a si mesmo nos contornos da imagem que o texto precisa e confunde, ramifica e restringe, acumula e subtrai violentamente. Leitor como escritor; leitor que se escreve, predisposto ao encontro virgem e primordial com o logos. Não há prazer mas sim feitiço; obrigatória comunhão na rota ziguezagueante da linha e do poema; perda e ganância sucessivas no assombro sem final das formas. Não há beleza mas sim inquietude: o que arrasta desse não saber até onde, mas com a certeza indubitável de tocar e gozar, de degustar sempre, essa superfície ao mesmo tempo rotunda e misteriosa do corpo em que consolamos, e que nos consola. Fragmentação e síntese: unidades e unidade. O poema se alarga, se prolonga em seu esbanjamento verbal, em sua selva que é sua vida; flui e “propende à visão aquática, ao ritmo caudaloso e à representação por envolventes ondas concêntricas”; porém é compacto e sólido (madeira ou mármore, os outros elementos da imaginária lezamiana); origem e forma nascendo e crescendo sucessivas.

 

O verbo sobre o germe se aclara na substância,

que não só recobra a unidade do centro com a pele,

mas que igualmente retorna à fumarada dos troncos navegando.

Depois que o verbo e a substância atravessaram o germe,

o sentido se ergueu na estátua penetrando o olhar.

 


Voz original e germinante (“Depois das estridentes canções báquicas, / sua voz lhe foi arrancada […] Uma segunda voz, / desconhecida como a noite que se afasta, / foi brotando da mesma raiz”); poema como constelação de imagens, não como teoria lógica nem como coerência do previamente sabido: surpresa de suas atrações e repulsões. E não nos devemos subtrair dele, ou negaremos a virtude cardinal dessa operação em que nos aventuramos. O poema de Lezama Lima, já desde seus inícios, se concebe como um escape: não se ordena a partir de uma rotina invariável, mas sim que se encontra sacudido sempre pelo “desacato da ordem do realismo utilitário”. Arranque, sucessão e conclusão nada têm que ver com as propostas habituais em nossa poesia; têm que ver, e muito, com uma dissidência onde leitores e críticos não costumam indagar, escudando-se em uma presumida artificialidade, no temido hermetismo ou na desassossegante escuridão que impedem – dizem – toda possível compreensão; toda redutora interpretação, acrescentaríamos nós. Porém Lezama diz: “A poesia é como o ar, toca o homem e o define, lhe dá figura e contorno, porém o ar é irrepresável. Um dos milagres da poesia é que toca o fogo e é ao mesmo tempo o fogo transfigurado. Isso não deve nunca esquecer o poeta.” Nem tampouco o leitor. Se quer saber, em todo momento, qual é a justa posição que lhe corresponde no jogo; se quer alcançar a claridade suficiente para ver e para participar em tal peculiar revelação.

Por ignorá-lo (ou por considerá-lo um esforço vão; por claudicar diante do egoísmo, com absoluto desprezo pelo outro que nos fala em nossa própria língua) seguimos sem saber ler adequadamente os poetas hispano-americanos. Seguimos sem entender onde reside o caráter fundacional de seus achados, até agora inquestionáveis (e não parece que as coisas venham a mudar por muito tempo) na história literária de nosso século. A poesia de Lezama Lima nos mostra – uma vez mais – o caminho: desliza, consciente de seu anacronismo, de sua paradoxal e abolida temporalidade, até o tempo anterior do mito, onde tudo se congela em uma imagem que se estabelece fora do tempo e fora do espaço contingentes:

 

Escultura da hora busco

 

a palavra no ar quieta

até escavar o alvacento

perfil do sal canoro.

 


Até o outro lado, inascível e inexplicável, onde a proximidade sensual do maravilhoso estala em visão original, em imagem e em palavra novas. Ali, “a imaginação e a realidade se entrelaçam, os confins entre a fabulação e o imediato se apagam”. Até o outro lado, porém desde o outro lado onde o mito se instaura como origem, uma origem também dramática e urgente; não é recriação reconhecível e metafórica, mas sim “verbo nascente, brasa, epifania”; não é o encontro de uma imagem para dizer a realidade, mas sim a busca ofegante e desesperada de um rosto onde – de maneira simultânea: em reveladora síntese – se possa ler o ancestral e o novo: a madureza e o apenas iniciado. Não um enfrentamento, mas sim a difícil conciliação que somente se dá na “comunhão unitiva de todo o existente real ou ideal (mental) na suprema instância”, na sobrenatureza que, segundo Lezama, situa-se em um espaço delimitado pelo ar, o fogo, a água. Um rosto que é imagem e linguagem; uma linguagem que é imagem e corpo: “um contraponto infinito onde convergem o forno entranhável do homem e sua imagem do estelar e isso é tão terrífico como prazenteiro”.

Sou o primeiro a reconhecer (e a padecer) a dificuldade que nos assiste para participar, de modo pleno, em tão complexo exercício. Porém, aqui é válida uma ligeira insinuação que nos permita ser – também nós – mais generosos, como o é – em extremo – o poeta. O assombro a que temos que nos abandonar não deriva somente da extraordinária teoria de imagens com que Lezama nos arrasta até esse espaço e esse tempo elementares, mas sim do rastro – de perplexidade também – que vai deixando a linguagem, à medida que seu corpo se espreguiça e se dilata, se retorce e se agita com um dinamismo inacreditável, criando surpreendentes relações sinestésicas em sintagmas e frases, insistindo na função ativa de gerúndios e particípios de presente, levando a métrica até os extremos da emoção subjetiva, onde o ritmo instaurado pelas preceptivas se desata ou se contradiz ironicamente, deixa em evidência o rigor e a ordem de determinadas estrofes muito fechadas ou se desdobra nessa violenta gargalhada, entre satisfeita e sarcástica, que é o verso livre e fecundante da poesia lezamiana. Porém é um assombro que – em justiça – não deveria sê-lo, logo que tomemos em conta que a obra de Lezama Lima é um final e um princípio igualmente vigorosos: ali confluem, em um precipitado seminal, a voz esplendorosa dos modernistas, a presença, trágica em sua indigência, de César Vallejo, a decidida ascensão e a irreprimível queda que, como vertigem existencial, nos deixaram as atrevidas visões de Vicente Huidobro. E está a desmesura e o transbordamento telúrico e carnal que tornou grande Neruda, que tornou sem par Alejo Carpentier… Porém tudo isto, a partir de Lezama, é outra voz, outro princípio insólito, insular, traspassado pela erudição e pelo pensamento que, como em Borges, escapam por todos os poros da fabulosa criação do poeta cubano; e, agitado na sensualidade insólita que desde aquele outro lado o alimenta sem cessar, encarna, uma e outra vez, em seu novo corpo. Poesia que é revelação que é poesia. Daí, seu mistério, que nunca devemos desvelar, porque fazê-lo seria reduzi-lo, sequestrá-lo, aboli-lo; daí, sua maravilha, diante da qual não nos resta outra opção que capitular sem resistência, e sentirmo-nos – a um só tempo – sacerdotes e fiéis desse rito singular: corpo fecundador e corpo fecundado, em uma cerimônia erótica sem final.

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Tradução de Floriano Martins. 

 

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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO

Número 161 | dezembro de 2020

Artista convidado: Zdzisław Beksiński (Polônia, 1929-2005)

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