sexta-feira, 14 de maio de 2021

FLORIANO MARTINS | Olhos bem postos no Surrealismo – Uma conversa com Nicolau Saião

 


O português Nicolau Saião (1946) é poeta e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Carlos Martins, organizou a exposição O Fantástico e o Maravilhoso. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado. Quando em 2006 organizei volume Olhares perdidos, disse a respeito de seu autor: o olho posto sobre a obra de Nicolau Saião, o convívio com ela, ir tomando seu pulso a cada desdobramento de imagens, sondando como as presenças evocadas saltam do plano poético para a plástica, como ele rabisca imagens que depois transitam com exímia vertigem de um ponto a outro, essa intimidade de figuras que saem e entram a todo instante em salas aparentemente distintas, exuberância serena com que o poeta se mostra e ao mesmo tempo oculta partes de si, dá-nos uma prazerosa sensação de entrar no espelho como se tratasse de um mergulho na memória. Este é o poema central de sua obra: trazer de volta da transfixação da linguagem o que cada um de nós considera único em sua experiência. Dentre seus livros: Os objetos inquietantes (1992) e Flauta de Pan (1998). Em nossas conversas virtuais, o Surrealismo está sempre na pauta, particularizando ações e realizando algumas boas cumplicidades, incluindo suas valiosas colaborações para a Agulha Revista de Cultura. Em uma dessas conversas, Nicolau Saião me disse: No que me diz parte, a viagem pessoal dentro do surrealismo tem sempre sido uma heterodoxa maneira de encarar o mundo e os seus prestígios ou apoquentações dum ponto de vista filho da curiosidade, da indagação visando as possíveis descobertas, da ligação aos segredos da existência a que podemos ter algum acesso se mantivermos a mente aberta e atenta ao que se vai passando e que vem a seguir ao que se passou em anos de que a nossa vida esteve repleta – não só os factos da história social, quotidiana, mas tudo o que se pôde imaginar de fecundo ou mesmo possível: a magia que parte da escrita ou a ela conduz, a pintura e tudo o resto que nestas duas se consubstanciam.

 

FM | Simbolismo, Modernismo, Futurismo – com quais desses momentos melhor se identifica o Surrealismo em Portugal? O crítico brasileiro, de origem austríaca, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em sua História da literatura ocidental, aponta a ausência de um verdadeiro Simbolismo em Portugal, ao mesmo tempo em que situa Mario de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa como dois poetas de formação esteticista, mas de ambições que já antecipam o Surrealismo. Por onde começamos? Gostaria aqui de fazer menção a um termo valioso do António Cândido Franco, o de afinidade involuntária.

 

NS | O nó do problema creio que assenta nas condições de antidemocracia que sempre – sublinho, sempre – existiram em Portugal, não só propiciadas por uma classe dominante extremamente cínica e autoritária mas, ainda, pelo seu tipo de cultura primarizada e pela sua mentalidade inculta, plebeia no sentido exato e o seu reacionarismo incrementado e sustentado por um tipo de fideísmo profundamente limitado e preconceituoso que tentava eliminar, espingardear ou suster tudo o que lhe cheirasse a modernidade ou trouxesse o selo de algo menos academizado. Sempre dominaram os estabelecimentos de ensino a alto nível, que em Portugal são os órgãos que controlam apertadamente os sectores intelectuais que fazem entre nós a chuva e o bom tempo por razões óbvias. Era assim dantes e continua a ser assim hoje, agora pelos adeptos do maldosamente orientado marxismo cultural e do repelente e castrador politicamente correcto. Daí que as afinidades entre os autores/criadores tenham de ser involuntárias ou, dizendo de outra maneira, conforme se pode…

Isso faz com que, ainda neste tempo em que vivemos, ou sobrevivemos, a arte moderna em geral e o surrealismo em especial sejam olhados como excrescências carnosas, produtos de quase marginais, de gente que não se deve deixar entrar, preferentemente, nos salões onde os donos da sociedade exercem a sua música e a sua dança contra tudo o que é legítimo em vida sã.

Portugal segue sendo um entreposto claramente de signo cripto-fascista, mau grado a maquiagem arranjada nos primeiros tempos a seguir ao 25 de Abril – maquiagem essa que, por já não lhes fazer falta, têm estado a abandonar com decisão. Só têm algum respeito pela chamada arte moderna em sentido lato porque esta, nos lugares onde o ambiente é mais salubre, vale muito dinheiro! Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, como se sabe, foram sempre corpos estranhos no tempo em que estavam inseridos. E o panorama continua a ser assim… exceto se o autor/artista se alcandorou por companheirismos ou afeições, geralmente, aos lugares de topo da árvore dos níveis

 

FM | O que evidencia a revolução surrealista em Portugal e como ela se insere em um mapa da Península Ibérica? Penso aqui nas relações entre Cesariny e Buñuel, que bem poderiam ter sido ampliadas, considerando afinidades históricas. Cesariny chega a comentar tangencialmente acerca de Juan Larrea, J. V. Foix, José María de Hinojosa… Porém nunca houve entendimento entre as duas vertentes surrealistas. Algum motivo determinante?

 

NS | O que a revolução surrealista, encarada a nível europeu ou mesmo ibérico, evidencia, é a meu ver as enormes dificuldades de se existir autonomamente, livremente. O poder político-social, precisamente pelas razões históricas nos dois países, tentou sempre impedir que fosse fácil existirem relações entre os criadores daqui e dali. Por isso o cardo foi sempre enorme, parafraseando uma expressão de Cesariny…

 

FM | As cartas de António Maria Lisboa constituem uma fonte de iluminação sobre inúmeros aspectos referentes ao Surrealismo em Portugal. Poucos anos antes de sua morte, já descrente da perspectiva de reestruturação grupal do movimento, lemos em uma carta destinada a Cesariny ali imprimir seu desejo de ver seus amigos uma vez mais a seu lado, desta vez não com a sombra de um Breton. E em uma de suas últimas cartas, já no Sanatório da Quinta dos Vales Covões, em Coimbra, 1952, comenta com Mário Henrique Leiria acerca de uma fundamental dificuldade dos surrealistas: sair da fácil expressão, do hábito a que dialeticamente se deram e onde anti-dialeticamente permanecem, finalizando: Breton será mil vezes culpado. Até onde acerta António Maria Lisboa, não propriamente acerca de uma culpa de Breton, mas antes de uma falta de identidade no tocante ao Surrealismo em Portugal?

 

NS | A culpa de Breton, digamos assim simbolicamente, assentou no fato de que ele vivia numa França aberta e os surrealistas portugueses, ou que tentavam sê-lo aqui, viviam num Portugal do antigo regime, ultraconservador e muitas vezes ultramontano, no qual a censura (in)discreta do estalinismo & derivados também se exercia. Em França era-se hostilizado pela mentalidade academicista da classe dominante, mas em Portugal ia-se parar diretamente, sem paninhos quentes, à prisão, à miséria econômica e à marginalização pura e simples. O que agravava as divergências, as questiúnculas e os destrambelhamentos até, dos autores portugueses, meros sobreviventes de uma nação dominada por gente nefanda.

 

FM | A leitura dessas cartas joga certa luz sobre o que o próprio Lisboa chamava de desarranjo interno em relação ao surrealismo em Portugal.

 

NS | Sem dúvida! Lisboa era um homem muito lúcido, poeta e pensador de cunho libertário e, por isso, notava perspicazmente não só aquilo que ele entendia como limitações dos franceses, com a sua – chamar-lhe-ei ingénua – adesão ao comunismo lá praticado que não podia deixar de acabar mal, como às coordenadas que esse enrugamento colocava na abertura à imaginação do mundo. Basta lerem-se os seus textos (e nem falo nos seus poemas) para se perceber que o pensamento activo de Lisboa e Cesariny ia muito além do que os bretonianos de escola propugnavam, até com certo chauvinismo bem típico dos franceses. E por cá dava-se o mesmo, o mesmíssimo enrugamento!

 

FM | Há um comentário de Adolfo Casais Monteiro ⎼ A palavra essencial, 1972 ⎼ sobre composição e espontaneidade em que recorda que, tal como em toda a literatura, também nas criações surrealistas havia uma diferença abissal entre a poesia espontânea de uns e a espontânea… vacuidade dos restantes. Como lidou o Surrealismo em Portugal com essa aparente ambiguidade?

 

NS | Lidou mal, necessariamente. E o contrário é que seria estranho. Um surrealista autêntico, em Portugal, vive ainda hoje, como vivia dantes, sob a férula de poetinhas que promovem, controlam, selecionam e acatam muitíssimas vezes ilustres mediocratas que exibem como gente de grande gabarito.

Não é pois uma ambiguidade, mas uma consequência de Portugal ter sempre vivido no domínio apertado de aparelhagens de extermínio moral que epigrafa os “surrealistas” que lhes convém epigrafar. Liofilizados ou amansados. Objetos de literatura no pior sentido do termo. E quem se rebela… fica frito por esses cozinheiros de más iguarias.

 

FM | Seria possível imaginar um Surrealismo outro em Portugal sem a figura tutelar de Mário Cesariny de Vasconcelos?

 

NS | A realidade é que foi como foi. Cesariny, da maneira que pôde ou lhe consentiram, foi um resistente. Bem, mal, assim-assim? Sei das dificuldades que teve, que muitas vezes lhe criaram, já pela hostilidade, depois por o querem jungir a um surrealismo que, se fosse como eles determinavam, seria então credor de aplausos e de carinhos…duvidosos. Acresce que Cesariny tinha uma orientação sexual que essa gente tentava fosse a marca da sua totalidade enquanto ser humano/autor. O truque infame é bem conhecido… numa sociedade fideísta e, mais que isso, que se serve do fideísmo, tal qual se serve doutras afins, como arma de repressão e opressão.

 

FM | Quais relações podemos encontrar entre Surrealismo e o happening, como já o propusera Ernesto de Sousa em 1969, ao reunir poemas de Almada Negreiros, Mário Cesariny, Herberto Helder e Luiza Neto Jorge? E quais desdobramentos relevantes podemos comentar?

 

NS | Não o sei exatamente. Só sei que Cesariny, por várias vezes, me referiu que em Portugal o fenômeno happening corria o risco de acabar por ser uma coisa em estilo Parque Mayer. O que eu pude observar deixou-me muitas vezes com a sensação de que ele, que era um fino observador, percebera que numa sociedade como a nossa se corria sempre o risco de se mergulhar num melting pot transversalmente atravessado por um ar eventualmente percorrido por fumos e odores nada salubres.

 

FM | O que o tema Surrealismo significa hoje em Portugal?

 

NS | Algo que foi e continua a ser, da parte dos seus criadores sem jaça, qualquer coisa de muito luminoso, mau-grado as sombras que lhe tentaram sempre criar na figura. Da parte dos observadores que estabelecem os seus figurinos e as suas indumentárias para o baile social, algo que conviria desaparecesse o mais depressa possível. Apesar de o surrealismo praticamente não contar para nada socialmente, neste país, se pudesse ser exterminado deixaria muitíssimo mais felizes os que sentem no sapatinho essa pedra que os magoa ao desmascarar os seus manejos mentirosos e até a sua mediocridade.

 

FM | Vamos a alguns detalhes. Que importância real pode ser creditada ao José-Augusto França no surrealismo em Portugal?

 

NS | Uma importância quase nula ou, pior que isso, confusionista. Vejamos: França, como crítico, scholar ou académico, tem o valor que expandiu em livros onde arrolava, com propósito, pintores e pinturas. Mas, enquanto personagem que em certa altura se avizinhou do surrealismo, tal foi um equívoco paralelo ao de António Pedro. Eles viam a acção surrealista como uma acção meramente artística, ainda que com timbres políticos devido à época e à sociedade lusa nela inserida.

Para França o surrealismo era algo de paralelo, na mesma dimensão, a qualquer escola artística. (Havia os impressionistas, os simbolistas e, ali mesmo ao lado ou noutro andar do prédio, os surrealistas…Creio que me faço entender). A sua camaradagem com outro equivocado, se não equívoco, Jorge de Sena, diz tudo: para eles surrealismo era coisa de estar, mais tarde ou mais cedo, nos manuais universitários, entreacto histórico de respeitabilidade das lentes. (Ainda hoje há gandulos que tentam esta jogada, nauseabunda como se percebe).

 

FM | Até que ponto o António Dacosta teve papel relevante na ponte entre portugueses e franceses?

 

NS | Francamente, desconheço que tenha havido qualquer ponte de relevo. Lembremo-nos que Dacosta, após um forte arranque inicial, abandonou a pintura e a acção correspondente, estando muitos anos afastado da cena. Atente-se nesta citação, que extraí dum textinho biográfico: Após um interregno de mais de 25 anos, Dacosta volta a pintar em 1975, abrindo a sua obra a um universo lírico de matriz matissiana, moldado por suaves valores de composição cromática que assumem uma intensa expressão poética, marcando-a definitivamente até ao final da sua vida. A ponte, digamos, que eventualmente existiu teria sido de cariz pessoal entre pessoas que se interessavam pela pintura e oficiais dela.

Tanto quanto pude investigar e apurar, pois o acervo nacional desses sectores é tradicionalmente escasso.

 

FM | No caso do António Pedro, de que modo ele estabeleceu pontes entre portugueses e ingleses?

 

NS | Como escrevi algures anteriormente, António Pedro foi uma espécie de equívoco, ora dele ora dos outros, no que diz parte ao surrealismo. Para ele o surrealismo devia ser uma espécie protegida, tal como todas as outras correntes artísticas o deveriam ser num mundo em que vigorasse uma respeitabilidade que ele julgava dever vestir as artes e os artistas, que a seu tempo e portando-se bem seriam então provavelmente academizados. Nunca percebeu que o surrealismo é uma aventura interior que não se mede por boas-maneiras ou por falta delas, por respeitabilidades sociais/artísticas ou por destrambelhamentos, mas que está fora e para além desses figurinos sociais de pessoas de bem ou de mal - uma vez que o seu cerne é sim a liberdade de criar sem obrigatoriedade de apresentar cartões, diplomas ou quaisquer certificados.

Nesta conformidade, estou em crer que teria havido, esboçados ou abertos, pontos de rotura com surrealistas britânicos; que, pelo que os tenho vistoriado, não teriam tido mais que um provavelmente olhar educado, mas de esguelha, para com ele. A não ser alguns que tivessem o semelhante perfil e traço que o nosso homem em causa…Mas isso, evidentemente, não o posso saber…

 

FM | O que poderias me dizer do affair entre Alexandre O’Neil e Nora Mitrani?

 


NS | Vinda a Lisboa para efectuar conferências, Mitrani contactou com O’Neill e deambulou com ele por Lisboa. O nessa altura buliçoso e bem apessoado poeta português ficou de pronto embeiçado pela francesinha, dona de uma figura suscitadora de fagulhas entendíveis e maneiras pessoais e interiores de fazer abrir um coração lusitano a fogosos encantamentos…

Talvez um pouco ingenuamente, Alexandre dispôs-se a seguir a francesa (como a família dele a apelidara, opondo-se à fogosidade do enamorado), sem ter levado em conta que a oposição dos parentes - e mesmo das autoridades - impediria a viagem.

E quando, mais tarde, O’Neill se dispôs a ir clandestinamente se preciso fôsse, ultrapassada a ingenuidade de ir naturalmente (mas essa naturalidade não existia no país salazarento), sofreu a dolorosa notícia de que a sua amada tinha falecido. E isso marcou-o para sempre. Contou-me Cesariny, numa tarde de desabafos ocasionais, que O’Neill sempre lamentara profundamente não ter, contra tudo e contra todos, seguido Nora sem passar cartão a familiares e autoridades, cumprindo dessa forma um real amor surrealista que rebentasse com os entraves e ainda que fosse de pouca duração (em vista do falecimento dela). Disto resultou o magnífico poema “Um adeus português”, no qual ele celebra e se despede de Nora de forma comovente.

 

FM | Que importância teve Cândido Costa Pinto para o surrealismo em Portugal?

 

NS | A maior importância, a meu ver, foi ter tornado familiar aos lusos entes a expressão surrealismo, nomeadamente porque ganhou grande notoriedade e apreço pela execução das capas de uma colecção de livros muito famosa e divulgada na altura, a justamente apreciada “Colecção Vampiro” que trouxe ao convívio dos portugueses nomes fundamentais do género como Agatha Christie, Ellery Queen, S. S. Van Dine, John Dickson Carr etc.

Humoristicamente, intelectuais facetos tinham-no crismado como o Salvador Daqui, fazendo trocadilho com o Salvador Dali…

Cito agora: Cândido Costa Pinto foi um dos principais impulsionadores da formação do Grupo Surrealista de Lisboa em 1947, que integrou, entre outros, Vespeira, Fernando Azevedo, Mário Cesariny e José Augusto França, mas a sua permanência nesse grupo foi breve (foi afastado por ter exposto uma pintura nas salas do SNI). Partiu para o Brasil em 1962, arredando-se de manifestações artísticas, e ali morreu em 1976.

Compreende-se, assim, que para os posteriores cultores da surrealidade, principalmente os mais jovens, a sua importância tenha sido menos marcada que a de outros autores, poéticos ou plásticos.

 

FM | Tocando na realidade brasileira, pela proximidade idiomática – e falo em proximidade porque são muitas as variantes que separam o mesmo idioma falado em ambos países –, também as relações surrealistas foram minguadas, de modo que culturalmente o Atlântico foi mais um muro do que uma ponte entre nós. Como se vê esse abismo pela lente de Portugal?

 

NS | Posso falar em mim, do meu ponto de vista. Assim, a distância com tudo o que ela arrasta (dificuldades de contactos, impossibilidade de se adquirirem as obras no Brasil dadas a lume, desconhecimento de autores por isso mesmo) cria um afastamento manifesto. Durante anos, por exemplo, eu desconhecia o que entre vós se vai fazendo de muito válido, bem como no imenso resto do Novo Mundo. Felizmente, devido ao magnífico acaso de nos termos conhecido, tive acesso à extraordinária Agulha Revista de Cultura, esse veículo luminoso. Isso me permitiu ultrapassar o problema muito marcado de não haver, por não as editarem cá, obras significativas nesse novo mundo dadas à estampa. Isso me permitiu, ainda – muito importante! – dar a lume textos meus, avulsos ou em livro, que aqui devido à marginalização clara que sobre mim tem sido efectivada, não me permitia ter voz pública.

 

FM | Acho que a arqueologia não acadêmica talvez tenha mais luz a lançar sobre o Surrealismo do que a psicologia freudiana. Penso que o automatismo defendido como método destoa da origem natural da criação. O estado natural de criação não se submete a nenhum cânone ou regra, e possui sua própria disciplina. Por isto que os grandes criadores no Surrealismo são tão distintos esteticamente entre si e neles observamos uma força irrepresável, como em Antonin Artaud, Enrique Molina, Aimé Césaire ou Joyce Mansour, dentre inúmeros outros. O Surrealismo se enfraquece justamente quando nos deparamos com o método, quando vemos tantos seguidores de uma cartilha, aquela que quer encontrar obsessivamente o nonsense, o maravilhoso, a estranheza a todo fio. Ora, não buscamos essas coisas, ao contrário, nós somos tocados naturalmente por elas. Graças a este equívoco, o Surrealismo acabou por criar um "modo de ser" que desterritorializa o que há de essencial nele, que é o estado natural de criação. O que pensas a respeito disto, querido?

 

NS | Concordo inteiramente contigo. Os que vêem o surrealismo como uma cartilha, ou são ignorantes ou burlões deliberados. O valor, a força, o fulgor do surrealismo assenta precisamente na ultrapassagem do já feito, do já visto, numa palavra: na originalidade irreprimível, que conquista novos mundos e novos caminhos, que são o sinal da sua permanência, nesse mais além que é a garantia da liberdade surreal. Dito de outro modo: o verdadeiro surrealista não procura sê-lo, é-o naturalmente. É uma vivência autêntica, se assim me exprimo uma forma de vida que lhe é intrínseca, não parte dum esforço em ser. Por isso, certos zoilos que se buscam dizer surrealistas por arrolarem tagarelices, por acumularem palavras ou imagens à imitação de autores que vieram antes, não passam de falsários em busca de notoriedade ou de poder ilegítimo sobre os outros, seja por motivos de ordem política, social ou mesmo pessoal.

 

FM | A um século de depuração do Surrealismo, registrada sua rejeição a ser confundido com uma escola ou apenas mais um ismo, é impossível descartar a propriedade estética de qualquer obra de criação. Qual o teu entendimento de um ideal estético do Surrealismo?

 

NS | Em primeiro lugar quero referir que as tuas perguntas são muito suscitadoras de uma excitante reflexão sobre o Surrealismo e a sua presença actual, que se sucede a uma anterior, no mundo e na sociedade que nele se contém.

Dito isto, vamos a el grano, como dizem os nuestros hermanos.

Claro que é impossível descartar o que referes. Em certas circunstâncias porque isso, a propriedade estética, se impõe como uma das defesas possíveis do autor contra as miseráveis condições que a sociedade – no caso português dominada por políticos hipócritas, corruptos medularmente dum ponto de vista ético e autoritários, por espantalhos letrados e por operadores sem espinha dorsal da cena artística (críticos sem estatura ou estipendiados pelo poder mas dispondo de possibilidades com que descriminam quem bem querem) – lhes coloca em cima da cabeça civil ou artística. No caso do Surrealismo isso é mais do que evidente. Em Portugal, onde o desejo de extinguir a proposta surrealista (a real, não a protagonizada por imitadores ou oportunistas que vêem no seu duvidoso e peculiar surrealismo a possibilidade de irem singrando nas suas pequenas jogadas) é uma constante, a alta qualidade das obras surreais limita a possibilidade de essa gente defenestrar os seus cultivadores. Ou de lançarem a confusão sobre eles. O ideal estético do Surrealismo está pois intimamente ligado à sua condição de grande aventura, é o penhor de que vale não só pelo que propõe mas também pelo que produz ou produziu. É um fruto salubre que coloca no lugar mais alto e põe no sítio mais luminoso as vivências que o certificam e configuram.

Por outras palavras, é o que leva ao ponto supremo a mensagem surreal sem possibilidades de equívoco.

 

FM | As clássicas expulsões de surrealistas levadas a termo na formação original parisiense foram de natureza comportamental. A má qualidade de uma obra jamais foi aspecto que chegou a julgamento. Mesmo hoje, embora as expulsões não sejam mais um fato corrente, surrealistas quando comentam seus pares, o fazem considerando simpatias e adesões, o que acentua a existência de uma confraria. Até que ponto esse clube de amigos distorce o entendimento que se poderia ter da mais relevante revolução cultural do século XX?

 

NS | Parece-me que a resposta óbvia será esta: nos seus tempos iniciais (que alguns, senão muitos, os que sobre eles se debruçam ou peroram, tentam situar como primeiros e únicos para lhe extinguirem o futuro) a arrancada surrealista viveu numa sociedade dominada por dois eixos: o reaccionário ou mesmo ultramontano e o comunista de timbre estalinista, ainda mais violento do que o outro pela impostura que lhe estava intimamente ligada. Foi natural que os membros do Movimento se confrontassem entre si, pois se dum lado estava a agremiação burguesa com todas as suas seduções (carreira, tiques místico-metafísicos, temores e tentações classistas) do outro estava, orientado pela agit-prop, o activismo totalitário, a hipocrisia militante, a brutalidade dos fascismos de Estado que era próprio – e nunca deixou de ser – desse marxismo-leninismo que se encenava como amigo da humanidade quando apenas visava dominá-la. Isso criou um ambiente de quase suspeição entre os operadores surreais, o que levava a que o aspecto qualitativo das obras fosse frequentemente ladeado. Mas, importante, porque os que viviam a surreal aventura de viver eram em geral autores de qualidade, o que permitia o festejo da maior parte das obras postas sobre a mesa.


Dito isto, importa referir que havia nessa altura uma razão válida para se agir assim. Bem diferente do que veio a seguir, em que certos indivíduos, ou colectivos, agem apenas motivados por simpatias espúrias, geralmente, de coleguismo profissional ou compadrio político. Para melhor me fazer entender, ponhamos o meu caso pessoal, para exemplificar: certos indivíduos, ligados a certos colectivos, que num contacto inicial tinham para mim atitudes de forte deferência ou apreço pelas minhas obras, quando pelo andar dos tempos verificaram que eu era libertário, com rejeição do post-estalinismo e do politicamente correcto que eles vivenciam (apoio ao islamismo tout court e compreensão do terrorismo corânico, propaganda intensa do fascismo vermelho, desculpabilização de corruptos de esquerda etc.) ou passaram a evitar-me, quando não o deixarem de me falar ou, mesmo, caluniam-me discretamente junto de certos sectores ou certos órgãos. Mesmo que alguns, mais cínicos ou descaradamente espantalhos, se pretendam acratas – e que eu caracterizo como acratas de aviário, na verdade reais compagnons de route de trosquistas aprés la lettre obscenamente tipificados.

Como não ficar, assim, o jogo falseado por essas formaçõezinhas, verdadeiras confrarias de interesses sordidamente oportunistas, geralmente medíocres por razões de formatação ora universitariante ora de ignorância pedante?

 

FM | Revistas surrealistas – antes apenas impressas, hoje também virtuais e com extensa recuperação dos primórdios dessa atividade em edições fac-similadas e em formato pdf – formam um acervo incomparável frente a qualquer outro movimento, escola ou vanguarda ao longo dos séculos. Defendo que as mais valiosas são aquelas que jamais refutaram outras perspectivas de vida e obra, alheias e/ou complementares do Surrealismo. Tais revistas são, a meu ver, o espaço entranhável de uma contra ortodoxia, pleno exercício de generosidade e compartilhamento de mundos dispersos. No entanto, temos ainda, declarada ou não, imensa rejeição do Surrealismo justamente por seu princípio ortodoxo. Como separar aqui joio & trigo?

 

NS | Muita água – e nem sempre límpida e potável – passou sob as pontes, desde que em França e depois pelo mundo em geral, o sentir surreal se cifrou em grupos mais ou menos organizados para lançarem nas ruas o clarão terreno que o surrealismo é. Pelos documentos que esses grupos deixaram se verifica sem razão para dúvida que foi sempre muito largo o crédito dado pelos surrealistas a autores que se diriam de fora, mas que tinham neles e nos seus produtos o magma que o surrealismo entendia forjador de maravilhamento e lucidez.

 A rejeição que certos operadores afivelam sobre o surrealismo ou mesmo o contraria acontece porque uns não são capazes, por temperamento ou carácter, de o entender, outros porque o entendem demasiado bem. Ou seja, porque conferem que as propostas surreais se chocam com os seus intentos de dominação intelectual, fideísta ou política.

O trigo e o joio creio que se separam naturalmente. Eu aqui deixaria o velho apólogo: pelos frutos os conhecereis. Não podemos esquecer este dado de base. Em Portugal, por exemplo, o mundo universitário em que se estabelecem as elites e os konzerns de acção intelectual estão na quase totalidade capturados pelos operadores de tendência post-estalinista, gramsciana, maoista e trotskista, ou socialista sedenta de poder, tendo agendas bem definidas de supressão da verdade prática para que o seu domínio se imponha. Do outro lado, bastante mais diminuídos de poder, estão os avatares do fideísmo, cuja actuação nem preciso classificar…

Isto faz com que o politicamente correcto, o fascismo destes tempos pós-modernos, tenha um imperativo enorme e que falseia a realidade-surrealidade que é própria do surrealismo.

 

FM | Duas denominações sempre me chamaram a atenção, dentro do ambiente surrealista, não porque me pareçam inapropriadas, mas antes pela partição que levam entre si de elogio e rejeição: movimento surrealista e civilização surrealista. Até onde tais denominações se distinguem e o que representam a ponto de parecerem antípodas?

 

NS | Isto anda tudo ligado, como diz a frase dum poeta luso. A civilização surrealista está pois gravemente ferida pela cada vez mais difícil acção de exercer a postura surrealista. Muitas vezes publicitam-se autores surrealistas, geralmente mortos, ao mesmo tempo que se entravam ou mesmo se discriminam surrealistas vivos. O truque é entendível: visam transformar o surrealismo em algo de histórico mas sem poder actuante aqui e agora. E isso é feito mesmo por publicações que aparentemente equacionam o surrealismo. Tal dever-se-á à necessidade que os detentores dessas publicações têm de efectivar os seus maiores ou menores percursos universitariantes ou académicos – e por isso necessitarem de não espantar a caça de quem (neles) manda – e, também, de serem agradáveis aos grupos políticos que vêem o surrealismo como potencial inimigo e com quem no fundo eles estão, ainda que disfarçadamente. Como pode pois haver civilização surrealista num mundo dominado pela hipocrisia politicamente correcta e pelo capitalismo selvagem que sobreveio ao capitalismo de Estado?

 

FM | É comum evocar-se no Surrealismo sua potência imaginativa e seu caráter experimental, a rigor aspectos complementares. No entanto, na inquestionável impossibilidade de uma renovação perene no ambiente da criação artística, em muitos casos, o que se verifica no Surrealismo são uma repetição de recursos, modos de ser e truques de linguagem. Como lidar com essas oscilações tão comuns a qualquer território criativo?

 


NS | É preciso saber ver claro e desmascarar sem temor esses copiadores infrenes, na verdade autênticos plagiadores do que outros outrora conquistaram com dificuldade e esforço pessoal. Não se ter timidez de colocar no lugar cimeiro que lhe é próprio todos os autores que se mostrem vivificadores do surrealismo, avatares e irmãos dos que, vindos ao século, antes, por razões naturais, forjaram obras com originalidade. Sendo, como dizia Péret, navegadores sem norte e sem estrela através das tempestades.

 

FM | Aldo Pellegrini é um dos raros estudiosos do Surrealismo que tratou especificamente de seu ambiente poético. Em uma bibliografia surrealista, a tônica reforça a relevância da imagem plástica. Tal adjetivo sempre me pareceu uma falha crítica, porque a essência renovadora, já no princípio do século XX, diz respeito à imagem em si e suas múltiplas perspectivas. Esta é uma das inúmeras adulterações dos princípios surrealistas ou sequer entre eles pouco se percebeu a inexistência de uma distinção – exceto meramente técnica – entre imagem plástica e poética?

 

NS | A poesia é de ordem totalmente diferente da pintura e vice-versa. Fazer uma pintura que tenta ser o reflexo da poesia, ou o seu contrário, é quebrar gravemente e ingloriamente o que é dos foros respectivos da poesia e da pintura.

Cada uma tem o seu continente e o seu terreno de acção. Claro que o autor que é simultaneamente pintor e poeta age duma forma específica, que sabe descortinar o que é dum campo e de outro.

  Não se ter isto em consideração é o que faz a mediocridade de tanto autor surrealista (entre nós temos diversos exemplos desses apepinadores coimbrões), cozinheiros sem fulgor de ruins aperitivos e pitanças…

 

FM | Em seu surgimento, as expectativas sociais do Surrealismo giravam em torno do que então se apresentava como ações revolucionárias, em especial o que tomava por base as proposições de Marx e Freud. Octavio Paz chegou a declarar que o século XX seria lembrado como o século de Freud e do Surrealismo. Ao eliminar Marx de suas profecias esqueceu-se – isto se de fato se trata de esquecimento – que o mercado derrotaria, para dizer o mínimo, todas as pretensões revolucionárias, sem deixar de fora as duas destacadas pelo mexicano. Como avaliar o tema em nossa época? Diante de um virulento absolutismo do mercado, o que houve com as forças deflagradas por Freud, Marx e o Surrealismo?

 

NS | Nos tempos de Breton a chamada revolução não era de todo revolução, essa era uma palavra garatujada para justificar o exercer de uma captura total dos ritmos societários pelo comunismo estalinista e pela ditadura sem freio dos marxianos enfeudados a Moscou. No nosso tempo, em que os post-estalinistas fazem coro, discreto, com os postulados islamitas moderados e compreendem as razões de uma brutalidade jihadista, a outra face do dado é ocupada pelo capitalismo privado, sempre hábil para manipular todos os mercados incluindo o da arte.

As forças deflagradas por essa trindade a que aludes estão pois condicionadas pela actual sociedade e seus meios de manobra, sendo que a lição de Freud foi capturada pelos turiferários da sociedade de consumo, o marxismo ser uma múmia sem salubridade e o surrealismo – quando verdadeiro e força vital – um cavalheiro a vigiar de perto e a palmatoar quando se mostra vicejante e forjador de muitas e variadas iluminações e descobertas para se destroçarem as feras que por aí cirandam com descarada ou camuflada violência.

É pois necessário que sejamos justificadamente ardilosos, visando escapar às armadilhas que todos os dias se abrem aos nossos pés!

 

FM | Não te parece estranho que Breton tenha dado uma atenção quase subserviente a Freud, ao mesmo tempo em que posteriormente viria a deixar de fora as brilhantes investigações de Jung, sendo que era este e não Freud a dar mais atenção a uma psicologia do inconsciente?

 

NS | O que Freud fez foi constatar e depois analisar factos universais. Era e nunca deixou de ser um académico, que como Breton (e médicos contemporâneos) certificou, tinha do surrealismo uma noção académica e que nunca percebeu bem que o Surrealismo ia além do seu olhar de académico. Ou seja, Freud – como Breton entendeu e o disse, e Yves Duplessis confirmou –, não tendo capacidade de poeta ou de artista, via esse mundo vastíssimo apenas como singularidade médica. Hoje percebem-se bem os limites do freudismo, que contemplava o que se passava (constatando-o) mas sem transfigurar o mundo da chamada necessidade (veja-se a utilização que o totalitarismo, de ocidente e oriente, tem dado às teorias de Freud), transfiguração essa que só o surrealismo pode dar.

O que é importante é que o surrealismo continua counting and counting. Digam estes e aqueles o que disserem, só um grupo relapso de gente levará tal em conta sem que isso modifique a Grande Viagem. Pois o que importa é que o Surrealismo Vero, a vivência surreal, siga na rota imarcescível. Aquele que olha e pratica a Grande Rota, não os que, afinal nada tendo a ver com ele e não fazendo nenhuma falta na Navegação, se perdem em metafísicas apenas simuladoras ou, se sinceras, de claro enfoque enganado porque devoto de místicos com, apenas, túnica teatral (Lanza Del Vasto ou Jacques Ellul, por exemplo, que apenas são rebuxos do Catolicismo pernão, que se puseram fora do par simplesmente por dissidência interior - tão inútil e apepinadora como a outra). Que falem, falem à-vontade, pois a livre expressão o consente e nós a defendemos sem favor, mas não nos queiram poluir os ouvidos com monomanias para encavalar gente ingénua ou de boa-fé inerme.

  Vindo do grande mundo do maravilhoso, que inclui desde o humor negro ao universo dos Grandes Transparentes, é desse mundo que o surrealismo brota, onde a liberdade existe verdadeiramente.

Por isso é que pessoas como eu, que poetam ou pintam por intrínseca vivência, têm de ser ostracizadas, diminuídas ou mesmo defenestradas, porque trazem ao conhecimento algo de muito perigoso para os simuladores, os que tentam granjear figura com as suas tagarelices com que encenam as burlas, como muitos académicos, os que capturam as baias universitárias de forma nefanda, tipos sem talento real mas poder como o de políticos cripto-totalitários: a sua própria escrita, a sua vida vivida sem se vender ou render a pseudo-esquerdistas filhos do Papá Zé dos Bigodes, ou esquerdistas de cunho trotsko e lenino, ur-fascista mesmo, como os trotskys e lenines massacradores de gente inocente. É sabido o que fizeram ao Cesariny por anos e anos; nos anos crivados de inveja o que o Luiz Pacheco (que confundiu sempre a Operação do Sol com um broche em Setúbal) maldosamente lhe fez, sempre a ofendê-lo e hostilizá-lo, tipo para quem a Ética era sempre uma barata, o que finalizou ao ser enterrado com, sobre o caixão em que jazia, a torpe bandeira dum torpe PCP acompanhado a discurso sem ponta de vergonha (mas dum oportunismo repelente) dum estalinista e totalitário José Casanova, importante tipo nomeado pelo Comité Central para a enxovalhada cerimónia.

Mesmo, é claro, sem mim, mesmo que me defenestrem (uns mais discretamente, outros menos) mesmo que rasurem e estrafeguem os irmãos que hoje actuam (sem testemunhas falsas ainda que sem poder político, como os que hoje sujam socialistamente o quotidiano e que pessoas falsamente livres e falsamente honestas apoiam mediante o realmente fascistóide politicamente correcto), o Surrealismo viverá sempre e, garanti-o ontem a dois confrades com quem troquei correspondência, o mundo será no Futuro verdadeiramente livre, pois só o surrealismo possui as chaves que a esse mundo dão acesso.

Isto não é uma fé, ou fezada, é apenas fruto adquirido de quem conceptualmente teve ensejo de ver o universo sem engulhos ou ilusionismos. O fazer uma escrita de certa ordem, pintura de certa ordem – não datadas ou à maneira de – é apenas uma consequência vital.

Finalmente, apesar de celebrar os Grandes Transparentes, creio que Breton daria pouca importância ou não conhecia autores da chamada primi-História, por estarem pouco divulgados ou, mesmo, ainda não editados em França. Refiro-me, por exemplo, a Robert Charroux e outros desse campo.

 

FM | Talvez tudo isto tenha a ver com um jocoso ilusionismo, onde a mais realidade não quer ir além de um reflexo de padrões insólitos, o que certamente teria valido a acusação, da parte de Henry Miller, naquela sua carta aberta, de superficialidade, quando observa: Os próprios surrealistas demonstraram as possibilidades do maravilhoso que se esconde no lugar-comum. Eles fizeram isso por justaposição. Mas o efeito dessas estranhas transposições e justaposições das coisas mais diferentes tem se limitado a refrescar a visão. Nada mais. O que dirias a este respeito, e em quais surrealistas acreditas ter havido um comportamento criativo mais singular e menos acidental, mais profundo e renovador dessas descobertas?

 

NS | Miller tem toda a razão no que diz. Creio que a minha resposta anterior responde de forma cabal a essa opinião dele. Quanto aos surrealistas que afixaram um comportamento conforme ao que citas, em Portugal eu sublinharia a demanda de um Cesariny, um Cruzeiro Seixas, Antonio Maria Lisboa, Carlos Eurico da Costa, Isabel Meyreles, Manuel de Castro… Dos de fora, não posso deixar de me referir ao que tu vens fazendo, não o dizer seria pudor excessivo. E Artaud, César Moro, Calandre e Max Ernst, Michel Leiris, Miró, Roland Penrose, André Masson, Buñuel, Dusan Matic, Radovan Ivsic, Victor Brauner, Eileen Agar, Dorothea Tanning, Gerome Kamrowski, Leonora Carrington, William Baziotes, Penelope Rosemont, Eugenio Granell… (Gostaria ainda de citar dois extraordinários descendentes, inspirados pelos artistas surrealistas que foram seus contemporâneos, Antonio Saura e Juan Barjola). E de autores do Novo Mundo também há nomes importantes, como Remedios Varo, Óscar Dominguez, Arshile Gorky, Roberto Matta, Emílio Adolpho Westphalen, Zuca Sardan, Hélio Rola…

 

FM | Mencionaste Robert Charroux, ele que previra com admirável lucidez, em seu Livro dos mundos esquecidos (1971), que em uma sociedade futura os sentidos possivelmente se tornarão mais e mais atrofiados e substituídos por uma organização protetora criada pelo cérebro. Agora, sua percepção do Surrealismo tende a um tipo de simulação, como aqui já observamos, certo temor de mergulhar nas profundezas das coordenadas apontadas pela própria gênese do movimento.

 

NS | Creio que ele, na verdade, antepunha reservas legítimas – tal como fez H. P. Lovecraft, expressas numa carta dele por mim publicada em adenda ao Os fungos de Yugoth, que traduzi e está publicado em Portugal e no Brasil – por, da parte de certos autores surrealistas de escola (que ele teria lido) haver uma repetição nada original de conceitos e textos e imagens limitados. Charroux, fino observador, tinha decerto a consciência de que se podia (e devia…) ir além dessas limitações, com inteligência, pundonor e abertura a novos ritmos e análises de ponta, que ele e outros exerciam com largueza.

 

FM | Uma última pergunta confirma uma espécie de vida dupla do Surrealismo. De um lado os acólitos inconsequentes, repetidores de fórmulas, que acabam por negar as raízes essenciais do movimento; de outro, os vultosos desdobramentos estéticos, por muitas áreas da criação artística, muitos dos quais, por conta da ingerência criminosa dos primeiros, ou trabalham isoladamente ou mesmo refugam sua identificação com o surrealismo, temendo que a recepção de sua obra seja mutilada por essa visão fideísta fossilizada que já mencionados aqui. No tocante a essa dubiedade conflitante, o que ainda terias a nos dizer?

 

NS | Que é muito real o que referes. Pelos tempos, verifiquei que existe uma confusão deliberada por parte de sujeitos duvidosos e duma sociedade, aqui e agora, que nunca cumpriu verdadeiramente as intenções que, no seu sector mais puro, a instauração da Democracia tentava efectivar. Senti eu e sentiram outros que as segundas intenções, os pequenos encontrões, as manobras discretamente intimidatórias ou mesmo expressas, nunca deixaram de existir nesta nação. Ou seja, no que diz parte a um ambiente cultural nunca houve de facto um jogo verdadeiramente limpo. Foi sempre com dificuldade que, no que diz parte aos autores que acho significativos no meu tempo, nestes tempos mais chegados – Palácios da Silva, Lud, Carlos Martins & Ana dos Santos, João Garção, Joaquim Simões, José Carlos Breia, um acompanhante de valor como Raúl Cóias – actuaram nas suas diversas disciplinas.

Tanto no tempo que lhes foi dado viver, aos que já partiram, como aos que felizmente ainda aqui estão. Não devemos esquecer, ainda, que o actuar publicamente também exige boas condições monetárias… para assim o dizer.

Se dantes, já nos tempos imediatamente pós-vinte e cinco de Abril, as coisas iam mal, neste momento (passado um interregno em que os totalitários tinham sido impedidos de agir dolosamente) o ambiente pernicioso está pouco a pouco a voltar: um país devorado pela corrupção, pelo autoritarismo dos governantes capitaneados por um indivíduo político cujo carácter se pode medir pelo nepotismo que grassa, o amiguismo do mais baixo estofo, a demagogia pindérica que tem descambado na incompetência dos seus asseclas na gerência, o politicamente correcto que têm consentido que se vá instalando sem qualquer respeito pelos cidadãos.

   No meu caso, tenho tido possibilidades de actuar nalguns órgãos como sejam o TriploV, esse espaço onde Maria Estela Guedes (ela própria notável poeta de quem tive o gosto de prefaciar um livro, o excelente Chão de Papel) exerce o seu múnus singular; a revista A Ideia, orientada/dirigida por António Cándido Franco e alguns espaços interactivos como por exemplo o Ibn Mucana, fundado pelo saudoso Nuno Rebocho e continuado por Joaquim Saial, ou a Gazeta de Poesia Inédita, que era mantida pelo há um par de dias falecido, o cordial José Pascoal.

   Um detalhe final: as poucas entidades oficiais ou perto de isso, que existem na chamada área cultural, estão praticamente todas capturadas pelos activistas e agentes da ideologia que se especializou nessas tomadas de posicionamento. Nesse particular, o país hoje tem mais semelhanças e comporta-se mais como uma pequena União Soviética ou um dos países do leste, em vez de uma democracia real e a que tínhamos, creio, direito.




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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 170 | maio de 2021

artista convidada: Friedrich Schröder-Sonnenstern (Prússia, 1892-1982)

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