Os fantasmas
A crença em fantasmas
(pessoas que morreram e regressam momentaneamente do Outro Mundo a este ou que não
conseguem sair deste mundo e passar para o outro) é provavelmente uma crença universal.
[1] É pelo menos, sem dúvida, uma crença
atestada em numerosíssimos países de todos os continentes, desde as épocas mais
recuadas até hoje, quer na literatura escrita quer sobretudo na literatura oral.
[2]
Na
verdade, já na epopeia de Gilgamesh encontramos sinais dessa crença, ainda que de
forma apenas implícita. No episódio em que Gilgamesh faz perguntas ao seu amigo
Enkidu, que descera ao Outro Mundo, sobre os mortos que ele lá vira, temos a seguinte
pergunta e respetiva resposta:
―
Did you see the one whose corpse was left lying on the plain?
―
I saw him. His shade is not at rest in the Netherworld. (The Epic of Gilgamesh, 1999. XII)
Ou
seja, os mortos que não foram sepultados não podem descansar no Além, algo que,
como largamente atestam textos e tradições orais posteriores, faz com que esses
mortos regressem ou, então, que eles não possam deixar este mundo e aqui continuem
a existir, como fantasmas. No entanto, a verdade é que em Gilgamesh os fantasmas
não são mencionados.
O
texto mais antigo em que com clareza encontramos atestada a crença em fantasmas
é, provavelmente, a Odisseia, no episódio da partida da ilha de Circe e no que imediatamente
se lhe segue. Na saída dessa ilha, um dos mais jovens companheiros de Ulisses, Elpenor,
tem um acidente e morre. Como estão com pressa de embarcar, Ulisses e os restantes
companheiros não prestam ao jovem as necessárias honras fúnebres (Homero, 2012:
X, 552-560). Ao chegarem à ilha seguinte, Ulisses faz libações e outros sacrifícios
de modo a honrar os mortos, pois deseja que um deles, Tirésias, o adivinho cego,
venha profetizar-lhes como será o regresso a Ítaca.
Na
sequência dessas cerimónias, vão saindo da terra vários mortos. E
Primeiro veio a alma do meu
companheiro Elpenor.
Pois não fora ainda sepultado
sob a terra de amplos caminhos.
O corpo tínhamo-lo deixado
no palácio de Circe,
sem o termos chorado ou sepultado:
outras tarefas premiam.
(Homero,
2012: XI)
E
Elpenor fala a Ulisses:
Aí [na ilha de Eeia, a que
irão aportar em seguida], senhor, te peço que te lembres de mim!
Não me deixes sem ser chorado
e sepultado
quando regressares a casa,
para que não me torne contra ti
uma maldição dos deuses. Queima-me
com a armadura
que me resta e eleva-me um
túmulo junto ao mar cinzento,
para que saibam os vindouros
deste homem infeliz.
Faz isto por mim: e fixa sobre
o túmulo o remo
com que em vida remei junto
dos meus companheiros.”
Assim falou; a ele dei então
a seguinte resposta:
“Estas coisas, ó infeliz,
farei e cumprirei.”
(Homero,
2012: XI)
Além
da questão do sepultamento, que já vimos em Gilgamesh, temos atestados em Homero
dois aspetos novos que voltaremos a encontrar em numerosas lendas de fantasmas de
todos os tempos: em primeiro lugar, quem morreu novo, antes de tempo, tem tendência
a não poder descansar no Outro Mundo, sobretudo se “morreu mal”, ou seja, se morreu
de acidente. Em segundo lugar, esse morto que não consegue descansar permanecerá
no mundo dos vivos, como “uma maldição dos deuses”, aparecendo a quem ele ache ser
responsável pela sua falta de descanso eterno.
A lenda “O fantasma que pede carona”
Na literatura oral da
atualidade, são muitas as lendas que narram histórias de fantasmas, mais precisamente
encontros entre seres vivos e fantasmas. Uma das mais difundidas é aquela que os
estudiosos de língua inglesa denominam “The Vanishing Hitchhiker” (ou seja, a pessoa
que pede carona e depois se desvanece, desaparece), lenda a que proponho que, em
português, se chame de “O fantasma que pede carona”. [3]
Trata-se
de uma lenda muito estudada por autores de vários países e que foi, aliás, a primeira
das lendas chamadas urbanas ou contemporâneas a ser alvo de um estudo monográfico,
publicado em 1942 e 1943, por dois jovens folcloristas estadunidenses, Richard K.
Beardsley e Rosalie Hankey, [4] com base em 79 versões recolhidas no seu país. [5]
Inicialmente,
esta lenda foi considerada um exemplo de criação oral contemporânea (e muitos continuam
a crê-lo), como mostraria o pormenor do automóvel, que (com apenas duas exceções)
aparecia em todas as versões que os referidos autores estadunidenses conheciam (Beardsley
e Hankey, 1943).
No entanto, em breve se descobriu existirem muitas versões dessa lenda
em que o meio de transporte usado era uma carruagem puxada por cavalos ou em que,
pura e simplesmente, não havia meio de transporte, andando as personagens a pé,
pelo que a lenda poderia perfeitamente ser anterior à invenção do automóvel (Jones, 1944).
Mais
recentemente, foi descoberta uma versão desta lenda em que a ação é dada como tendo
acontecido em 1602, na Suécia, estando o texto em causa incluído num manuscrito
escrito por um autor daquele país falecido em 1608 (Rosen, 1994).
Ficou,
assim, provado documentalmente que “O fantasma que pede carona” não é moderno, e,
acrescentarei eu, tendo em conta o modo como vive a tradição oral, deve ser bem
anterior a 1602. A aparência recente que esta lenda apresenta nas versões recolhidas
nos sécs. XX-XXI vem apenas do modo como os informantes a adaptaram às condições
da vida contemporânea. Tal adaptação é reflexo, sem dúvida, do interesse que eles
têm nesta lenda, produto do modo como ela se conecta com a sua visão do mundo.
“O
fantasma que pede carona” é uma lenda muitíssimo difundida, atestada em todos os
continentes, nomeadamente nos seguintes países (cito aqueles de que conheço versões):
Estados Unidos, México, Porto Rico, Panamá, Peru, Brasil, Argentina, Chile; Portugal,
Espanha, França, Itália, Grã-Bretanha, Bélgica, Países Baixos, Alemanha, Áustria,
Polónia, Roménia, Suécia, Finlândia; Egito, Guiné-Bissau, Guiné-Conakry, África
do Sul, Madagáscar; Índia, Mongólia, Coreia, Japão; Austrália, Nova Zelândia.
Do
ponto de vista da ação, esta lenda é complexa e apresenta diferentes subtipos. Baseado
nas muitas versões que dela conheço, quer as publicadas quer as inéditas (estas,
sobretudo, versões portuguesas provenientes de recolhas feitas por alunos meus da
Universidade do Algarve ou por mim), penso poder considerar-se a existência de quatro
subtipos, um deles subdividido em três subsubtipos. Seja dito entre parênteses que,
embora existam quatro subtipos “puros”, várias vezes encontramos na tradição oral
versões que resultam da fusão de dois desses subtipos.
Em
todos os subtipos de “O fantasma que pede carona”, por detrás de diferenças de superfície,
encontramos a mesma base comum, que carateriza esta lenda: o encontro de um ser
vivo com um ser que parece estar vivo, mas que, no fim da história, numa reviravolta
surpreendente, se percebe ser afinal um fantasma.
Normalmente,
as versões implícita ou explicitamente indicam que o fantasma morreu novo e/ou de
desastre, o que se liga à crença antiquíssima, atrás mencionada, de que tais pessoas
não querem (ou não podem) deixar este mundo, numa espécie de reação contra o prematuro
fim da sua vida.
O
subtipo mais comum (atestado em todos os países acima referidos) é aquele que deu
o título à lenda. As versões deste subtipo contam que um motorista (geralmente um
homem) dá carona a uma pessoa (geralmente uma mulher). Durante o trajeto, a mulher
desaparece de dentro do carro em andamento, mostrando, assim, ser um fantasma. Geralmente,
as versões, implícita ou explicitamente, explicam que o fantasma aparece (e desaparece)
no lugar onde, no passado, morreu de acidente, algo que se liga à crença, muito
comum, de que quem “morreu mal” tende a ficar ligado ao lugar do seu falecimento.
Dentro
deste subtipo podemos considerar a existência de três subsubtipos. No primeiro deles,
a acção termina com a simples desaparição do fantasma. Nestas versões, normalmente
fica claro que o lugar da estrada em que esse personagem pede carona está situado
pouco antes daquele em que, no passado, a pessoa morreu (num desastre), e, assim,
o fantasma aparece como se quisesse concluir a viagem para casa durante a qual morreu
A impressão que fica é a de que, nessa tentativa de passar tal ponto, o fantasma
tenta alterar o seu destino: se conseguisse passar daquele ponto, ele voltaria à
vida. Mas, quando o carro chega ao local onde o personagem morreu, o fantasma não
pode passar e desaparece de dentro do veículo (voltará a tentar mais tarde, outra
e outra vez, pedindo carona a diferentes motoristas), algo interpretável como um
sinal de que nada se pode fazer contra a morte.
As
versões do terceiro e último subsubtipo apresentam um fantasma bom, que vem para
avisar os motoristas sobre os perigos da estrada (por exemplo, uma curva muito arriscada)
e evitar um acidente, salvando-os da morte que ele sofreu naquele local. Parecendo
exatamente o contrário do subsubtipo anterior, este terceiro subsubtipo talvez possa
ser visto, na essência, como a mesma coisa, pois, por baixo duma superfície de solidariedade
humana, será possível descobrir a mesma preocupação egoísta do fantasma consigo
próprio. Tal como as pessoas que, por motivos económicos, não puderam frequentar
um curso superior, e, mais tarde, quando têm um filho, tudo fazem para que ele frequente
esse curso (por vezes, mesmo contra a vontade do filho), o fantasma destas versões,
já que não pôde evitar a sua própria morte, evita agora a morte dos outros e como
que vive através deles.
Terminada
a análise do primeiro subtipo (com os seus três subsubtipos), passemos ao segundo
subtipo da lenda, aquele em que o fantasma que pede carona, antes de desaparecer,
profetiza algo (por exemplo, um desastre, boas colheitas, o fim de uma guerra, ou
que o fim do mundo está próximo). Repare-se como, neste caso, o facto de o personagem
ser um fantasma (e ter, portanto, contato com o Além) constitui uma caraterística
fundamental para garantir a veracidade da profecia. Este subtipo é bastante mais
raro na tradição oral do que o anterior, embora esteja atestado nos Estados Unidos
e em certos países europeus, pelo menos. É a este subtipo que pertence a versão
sueca de 1602, que atrás referi.
No
terceiro subtipo, o fantasma (geralmente uma mulher) pede carona a alguém (geralmente
um homem), que o leva a casa. Aí chegada, a mulher convida o homem a entrar e oferece-lhe
uma bebida. Ao sair de casa do fantasma, o homem esquece-se de algum objeto (por
exemplo, um anel ou um relógio que tirou no banheiro, ao lavar as mãos). No dia
seguinte, o homem regressa à dita casa, a fim de reaver o objeto. Para seu espanto,
a casa está abandonada (ou moram lá outras pessoas), e dizem-lhe que a mulher de
quem ele está à procura morreu há anos. Face à sua insistência no facto de, no dia
anterior, ali ter estado, deixam-no entrar na casa. Para espanto dos circunstantes
(e alívio do homem, que assim compreende que não estava doido), o objeto ali tinha
deixado na véspera é encontrado. Ao que parece, este subtipo é bastante raro, estando
atestado, tanto quanto sei, em Portugal, França, Itália, Roménia (sempre com poucas
versões) e (com uma única versão) nos Estados Unidos.
O
quarto e último subtipo da lenda é, pelo contrário, bastante mais corrente, ainda
que menos que o primeiro. Embora com variantes, a história que ali se conta é a
seguinte: um rapaz encontra uma moça (muitas vezes num baile), que depois ele acompanha
a casa. Pelo caminho, a moça queixa-se do frio, e ele empresta-lhe uma peça de roupa
(um paletó, por exemplo). Ao chegarem a casa, ele (subentendendo-se que por estar
interessado em rever a moça) não aceita que ela lhe devolva o paletó, dizendo que
virá buscá-lo no dia seguinte. No dia seguinte, quando lá chega, um familiar da
moça comunica-lhe que a ela morreu há anos.
Os
dois folhetos de cordel que adiante analisaremos baseiam-se em versões que pertencem
ao quarto subtipo desta lenda, aquele que acabo de resumir. Não é possível saber
como eram as versões concretas em que os autores destes folhetos se inspiraram.
Mas não seriam muito diferentes de outras versões que, desse subtipo, se conhecem
no Brasil. Vou exemplificar, transcrevendo algumas.
Versão nº 1
Informante:
Ana Maria Fernandes, 53 anos (no momento da recolha), natural de Jequeri, MG. Com
apenas 2 anos, foi morar para Raul Soares, MG, e desde 1982 vive em Belo Horizonte,
MG. É formada em Biologia e professora do ensino médio. Versão inédita recolhida
em Belo Horizonte por J. J. Dias Marques, em 31-07-2003.
Eu já ouvi
contar isso, mas já não tenho muito a certeza… de que alguém saiu com essa moça
da festa, foi levá-la em casa, deixou-a em casa… (Inclusive [era] um camioneiro,
é… Era alguém que tinha carro, ou pode ser até… Não sei quem…). E saiu com ela da
festa e foi levá-la em casa e deixou-a em casa e emprestou a blusa para ela. E no
dia seguinte ele foi pegar a blusa e… e essa moça não existia. Tinha morrido.
Colector:
E quem é que lhe abria a porta?
Informante:
A família dela, não é? Os pais. Ficaram surpresos… estranharam…
Versão nº 2
Informante: Maria Leda
Oliveira Alves da Silva, 32 anos (no momento da recolha), natural de Belém de Maria,
PE. Com apenas 2 meses, foi viver para Catende, PE, onde viveu até ir estudar para
a universidade, no Recife. Vive em Portugal desde 1997. É mestre em História. Versão
recolhida (apenas por escrito ―ou seja, sem gravador― de acordo com o pedido da
informante) em Faro, Portugal, por J. J. Dias Marques, em julho de 2005.
Um homem ou um rapaz ia num
baile. Acho que ele encontrava uma senhora. Não me lembro se eles dançavam, mas
lembro-me que a levava no fim do baile a casa e emprestava-lhe qualquer coisa, já
não sei se era um casaco… (Estou tentando me lembrar o termo, mas não me vem… Estás-me
a fazer relembrar tanta coisa que eu ouvia quando era pequena…)
E, no dia seguinte, [ele]
volta [a casa da moça] e bate na porta e não sei quê e fala com a senhora que se
diz mãe da moça. E ele dizia:
― Venho buscar o casaco que
emprestei a Fulana.
A mãe dizia:
― Fulana? Essa pessoa já não
existe mais nesta casa.
Na entrada da casa, havia
uma fotografia na parede, da moça. E ele olha para o retrato e diz-lhe que é exatamente
aquela moça que está ali no retrato.
E ela diz:
― É a minha filha, mas já
morreu há não sei quantos anos atrás.
Acho que terminava assim.
Como
vemos, em relação à versão nº 1, a nº 2 acrescenta o pormenor da foto, que ajuda
ao reconhecimento do fantasma e que, como constataremos, surge também nos dois folhetos
de cordel que iremos analisar mais à frente.
Em
certas versões do quarto subtipo, existe, no fim, uma cena adicional, que não encontramos
nas versões nº 1 e nº 2: face à incredulidade do rapaz, o familiar da moça acompanha-o
ao cemitério, para lhe mostrar a sepultura dela. Para espanto de ambos, em cima
da sepultura, está o paletó que o rapaz emprestou à moça na véspera.
Repare-se
que a posição do paletó sobre a sepultura da moça mostra a persistência, ainda hoje,
a nível popular, de uma crença que, embora atestada desde a Antiguidade, é recusada
há muitos séculos pelo Cristianismo: os mortos não moram no Céu ou noutro lugar
do Outro Mundo, mas sim dentro da sepultura onde o seu cadáver foi depositado. E,
no caso desta lenda, eles saem à noite da sepultura, em busca de interação com os
vivos, tentando desfrutar dos prazeres próprios da sua idade, que lhes foram roubados
pela morte prematura.
Vejamos
uma versão brasileira que inclui essa cena da ida do rapaz ao cemitério:
Versão nº 3
Informante:
Paulo Balbino, idade não registada. Rio Formoso (Praia de Tamandaré), PE. Versão
recolhida por Edval Marinho de Araújo, em 01-02-1981.
O homem
todo dia ia dançar… todo o dia. Aí, quando ele foi entrando na porta de dançar e
quando ele pagou, aí levou um corte. Ele saiu e disse logo ao dono da discoteca…
Pessoa
do público: …é discoteca, não é mais forró não…
E ele disse:
― Eu não
venho mais dançar não, porque toda vez que eu venho eu levo corte. Agora mesmo,
quando eu fui entrando, eu levei um corte.
Aí, ele
ficou assim, num banco, e chegou uma moça. Aí, disse assim:
― Por que
é que tá aí?
E ele disse:
― Porque
toda vez que vou dançar levo corte. Hoje, quando fui entrando, levei um corte.
― Nada,
vam’ ’bora dançar!
Aí, dançou
e ficou namorando com ele.
Aí, bateu
uma chuva. Aí, ele tinha uma capa, pegou a capa e deu a ela. E ela disse o dia pra
ele ir pedir ela em casamento e disse que era naquele primeiro andar de lá de cima.
Aí, quando
ele foi lá e bateu, disseram:
― Entre.
E ele entrou
e disse:
― Vim pedir
sua filha em casamento.
― Qual
filha? ― chamou uma e disse: ― É essa?
Ele disse:
― É não,
― aí apontou ― é essa daí do retrato.
― É essa
moça?
― Sim.
― Essa
moça, faz um mês hoje que ela morreu…
― E foi?
― Foi.
E vou lhe mostrar a cova.
Aí, foi
lá. Quando abriu, a capa dele tava em cima da cova.
E ele morreu
doido.
(Benjamin, 1994: 351, versão nº 78)
Para
exemplificar o caráter internacional da difusão desta lenda, vejamos agora uma sua
versão portuguesa.
Versão nº 4
Informante: Sandra Patrícia
Teixeira do Amaral, 27 anos (no momento da recolha). Natural de Angola, foi para
Portugal com 4 meses. Viveu dos 3 anos aos 11 em Vila Nova de Famalicão, no Norte
de Portugal, e, desde então, vive em Faro, no Sul do país. É licenciada em Línguas
e Literaturas Modernas. Versão recolhida em Faro, por J. J. Dias Marques, em 18-12-2002.
Esta ouvi contar em Vila Nova
de Famalicão, a história de um rapaz que vem à noite, não sei se vem dum baile,
e está uma rapariga [6] na
estrada a pedir boleia. [7] E
acho que é inverno e ela está com um vestido de manga curta, ou uma coisa assim,
está com muito frio. Ele empresta-lhe o casaco [8] e leva-a a casa dela. E ela diz-lhe:
― Depois amanhã venha cá,
para vir buscar o seu casaco.
Ele, no dia seguinte, quando
vai lá buscar o casaco, atende-lhe uma senhora mais velha, e ele diz:
― Venho buscar o meu casaco,
que ontem emprestei à sua filha ou uma rapariga que morava aqui.
A mulher ficou muito assustada,
muito nervosa, e foi buscar uma fotografia e perguntou:
― É esta rapariga aqui?
Ele disse:
― É. Mas o que é que se passa
com o meu casaco?
E a mulher disse:
― É que a minha filha já morreu
há sete anos.
E pronto. Entretanto foram
ao cemitério e estava o casaco em cima da campa [9] da rapariga e nunca ninguém o conseguiu
tirar. Ainda hoje lá está, pelo que me dizem.
No
fim da versão, tive a possibilidade de conversar algum tempo com a informante. Embora
tal conversa não se ligue especificamente ao objetivo deste artigo (que é sobretudo
a análise do tratamento de “O fantasma que pede carona” em dois folhetos de cordel),
talvez seja interessante lê-la, porque ajuda a contextualizar essa versão e a entender
como ela vive / vivia na oralidade:
Informante: Sim. E não conseguiu.
E, pelo que me disseram, muitas pessoas foram depois ao cemitério, e toda a gente
tentou tirar o casaco e ninguém conseguiu. Se ainda lá está, deve estar em muito
mau estado. [A informante ri].
Coletor: Patrícia, quanto
tempo viveu em Vila Nova de Famalicão?
Informante: Dos 3 aos 11.
Coletor: E isto contaram-lhe
em Vila Nova de Famalicão? Quem é que lhe contou?
Informante: Foram as vizinhas
da minha avó. E foi giro, [10] porque foi numa noite de tempestade. Acho que é costume lá (porque
isto acontecia sempre em noites de tempestade) juntarem-se todas no patamar e contarem
histórias de fantasmas.
Coletor: No patamar de quê?
Informante: Do prédio, que
é um prédio muito grande, tem um patamar à volta.
Coletor: Que quer dizer um
patamar?
Informante: Um patamar é como
uma varanda,
[11] mas é comum a toda a gente. Aquilo
é um prédio retangular e, dentro, tem um jardim e à volta é tudo patamares. Cada
andar tem um patamar à volta.
Coletor: E é por aí que se
entra para as casas, é isso? As portas dão para aí?
Informante: Sim, sim.
Coletor: E então juntavam-se
os vizinhos aí…
Informante: Juntávamo-nos
à noite no verão a contar essas histórias. E era engraçado (essa noite, fomos todos
a correr para casa, cheios de medo!), porque estava muita gente: miúdos [12] novos, e velhotes e… Homens por acaso
não, eram só mulheres e malta [13]
nova. E toda a gente confirmou que já tinha ido lá [ao cemitério onde estaria o
casaco que o rapaz emprestara à moça] e que tinha visto o casaco e que tinha tentado
tirar e que não conseguiu. Eu nunca fui lá, porque nunca descobri qual era o cemitério,
porque não era o cemitério de Famalicão (o cemitério de Famalicão é mesmo ao lado
[do referido prédio]). Era um cemitério qualquer, já nos arredores, não sei bem
onde.
Coletor: Então aquilo [a ação
da lenda] não se tinha passado em Famalicão…?
Informante: Não, tinha sido
nos arredores de Famalicão. No Norte, aquilo o que mais há é terreolas, [14] muitas terreolas e muitos cemitérios.
Coletor: E não se lembra de
qual a aldeia ou vila em que eles disseram que isso se passava?
Informante: Eu tenho a impressão
que eles falaram da estrada da Trofa. Naquela altura, falava-se sempre na estrada
da Trofa, porque era a estrada que ia para o Porto, de Famalicão para o Porto, mas
a estrada antiga, aquelas estradas muito sinuosas, e que foi para aí. Mas não me
lembro. Eu nessa altura tinha… (eu já estava em Faro, só que estava a passar férias
[em Famalicão])… tinha 13, 14 anos.
Coletor: Lembra-se de se eles
diziam qual era a terra da rapariga, onde ela morava?
Informante: Eles disseram,
eu é que não me lembro. Mas eles diziam sempre o sítio certo: “Isto passou-se aqui”,
“Isto passou-se ali”…
Coletor: E em que cemitério
era também disseram?
Informante: Sim. Eu só não
fui lá porque não era em Famalicão, porque eu queria ir lá, mas naquela altura era
miúda e, se pedisse a alguém para me levar ao cemitério, achavam que eu era maluca.
Mas disseram onde é que era, tanto que eu lembro-me [de que] isto foi um rapaz [que
me contou] (ainda hoje o conheço, depois posso perguntar-lhe, quando for lá), ele
é que me disse: “Eu já fui lá [ao cemitério], eu e o meu amigo já fomos lá e tentámos
tirar o casaco e não conseguimos.” E, como naquela altura eu acreditava em tudo…
(não é que [agora] não acredite, mas…), achei que aquilo era normalíssimo.
Havia montes de histórias
em Famalicão. Eu… lá não é difícil acreditar em fantasmas, porque à noite, quando
está a chover, principalmente no nascer do sol, aquilo parece que há fantasmas por
todo o lado…
O folheto de cordel: A moça que dançou depois de morta
Conheço quatro folhetos
de cordel brasileiros que recontam versões do quarto subtipo de “O fantasma que
pede carona”: A mulher de sete metros que apareceu em Itabuna, de Minelvino
Francisco Silva (1968); A moça que dançou depois de morta (1973), de J. Borges;
A loura do Bonfim (2001), de
Olegário Alfredo;
e O homem que beijou uma alma (2003), de Maria Godelivie.
Neste
artigo, analisarei agora a obra de J. Borges e a de Maria Godelivie, deixando as
restantes para um próximo estudo.
J.
Borges (de seu nome completo José Francisco Borges), nasceu em 1935, em Bezerros,
PE, e ali reside. É autor de inúmeros folhetos e também xilogravador, sendo hoje,
aliás, mais conhecido, até internacionalmente, pelas xilogravuras, que no início
fazia apenas para as capas dos seus folhetos, mas cuja criação depois se autonomizou.
O
folheto A moça que dançou depois de morta, [15] segundo informa o autor, foi publicado pela primeira vez em 1973
(Borges e Coimbra, 1993: 124). Conheço duas edições deste folheto: uma sem data,
de cerca de 1998, [16] e outra datada,
no fim, de 2004, que adquiri em Bezerros, PE, em casa do poeta (Borges, 2004). As variantes entre ambas são muito pequenas.
[17] O folheto é formado por 38 sextilhas,
com rima nos versos pares.
Como
atrás referi, esta obra reconta, em verso, uma versão do quarto subtipo da lenda
de “O fantasma que pede carona” que o autor explica ter conhecido na oralidade:
Eu escrevi o folheto da Moça que Dançou depois de Morta porque eu
sempre ouvia alguém contar esta lenda e as pessoas que ouviam faziam um gesto de
admiração pelo facto. E eu sempre notava que todos acreditavam ter sido certeza
aquele acontecimento. Uma vez numa feira eu aproveitei um espaço de tempo e contei
por alto e todos que estavam ali perguntaram se tinha aquela história em folheto
porque queriam comprar. Aí eu resolvi escrever e depois do folheto publicado foi
um sucesso
(Borges e Coimbra, 1993)
Para
podermos avaliar perfeitamente o modo como o autor usou, na sua obra, a versão oral
que ouviu, seria necessário, claro, saber como era essa versão. Para tal, em setembro
de 2005, durante uma ida ao Brasil para participar num congresso sobre literatura
de cordel organizado pela malograda Neuma Fechine Borges em João Pessoa, PB, aproveitei
e desloquei-me ao vizinho estado de Pernambuco, à pequena cidade de Bezerros, onde
J. Borges vive. Fui a sua casa, mas infelizmente não o encontrei, pois ele estava
ausente na França, devido a uma exposição de gravuras de sua autoria que então ali
se inaugurava, integrada nas celebrações do Ano do Brasil, que se celebrava naquele
país.
Embora
não conhecendo, pois, a versão que J. Borges ouviu, é possível deduzir que, quanto
à ação, seria bastante parecida com a versão que atrás transcrevi com o nº 3, a
qual, aliás, foi recolhida em Pernambuco, o estado do próprio J. Borges. Da leitura
do folheto, pode concluir-se que nele o autor segue a mesma história que lhe veio
da oralidade, embora tenha introduzido algumas transformações, que julgo poder identificar
pelo facto de nunca as ter encontrado em nenhuma das numerosas versões desta lenda
que conheço. É sobretudo a essas invenções de J. Borges que me vou referir nas páginas
que se seguem.
A
primeira das invenções é o prólogo, de tom moralizador, que ocupa 4 estrofes (ou
seja 10,52% do folheto). Ali se aborda o tema da dissolução dos valores tradicionais
no mundo moderno: [18]
Leitores
o nosso mundo
está muito
desmantelado
aumentou
a violência
é morte
pra todo lado
daqui pra
dois mil e dez [19]
temos que
andar com cuidado
Deve dar
graças a Deus
quem está
vivo hoje em dia
com assalto
e malandragem
vingança,
ódio e orgia
e o povo
só dando valor
a palavrão
e bruxaria
As mocinhas
de hoje em dia
vivem dentro
da algazarra
andam quase
todas nuas
só pensam
em rock e farra
[…]
E se os
pais reclamarem
elas dizem
um palavrão
não vão
à missa nem rezam
também
não fazem oração
[…]
O
tema das desgraças da sociedade contemporânea, nomeadamente o comportamento irregular
das moças, não existe em nenhuma das versões da lenda que conheço, tudo levando
a crer que se trata dum acrescento do autor. Este tema, tratado no mesmo tom, surge,
aliás, noutra obra de J. Borges, cujo título fala por si próprio: A moça que virou
jumenta porque falou de top-less com Frei Damião (Borges, s. d.). [20] Os versos iniciais deste folheto lembram,
aliás, o prólogo de A moça que dançou depois de morta:
Esta era
de 80
é de horror
e carestia
sofrimentos
e assalto
moda, escândalo
e orgia
pra se
cumprir as palavras
que Padre
Cícero dizia
Tudo isto
hoje aparece
seca, fome,
peste e guerra
o escândalo
tomou conta
da idade
até na serra
[…]
Voltemos
à Moça que dançou depois de morta. Ao prólogo segue-se uma parte fruto também, com
toda a probabilidade, da inventiva do autor. Esta parte ocupa 7 estrofes (ou seja,
18,42% do total da obra). Aí se contam os antecedentes da história do fantasma:
houve em tempos “uma moça farrista” (que mais tarde saberemos chamar-se Corina),
moradora no estado da Bahia, “muito vaidosa / e [que] pensava que não morria”.
Não gostava
de Igreja
nunca falou
em casar
só vivia
pelos bailes
toda noite
ia dançar
fumando
erva e bebendo
todo dia
sem parar
Era querida
de todos
por ser
nova e muito bela
mas droga
e a bebida
ofenderam
muito a ela
nunca tomou
um conselho
nem do
pai nem da mãe dela.
Seja
dito que a personagem principal do atrás citado A moça que virou jumenta porque
falou de top-less com Frei Damião partilha várias das caraterísticas negativas da
Corina de A moça que dançou depois de morta. Além de ser designada por “uma moça
farrista” (exatamente como Corina), essa personagem também “não gosta[va] de padre
/ e nem de Deus poderoso”, nem ouviu os conselhos dos pais, que, neste caso, a tentavam
dissuadir de, com a sua nudez, ir provocar Frei Damião.
Uns
meses depois, é Carnaval e há um baile na cidade. O filho de um fazendeiro vai ao
baile ― e, a partir daqui, o folheto segue a história usualmente presente nas versões
deste subtipo da lenda (neste caso, os objetos emprestados são uma capa e também
um rádio e um isqueiro).
Depois
dos episódios do baile e do acompanhamento da moça até casa, o folheto volta a afastar-se
da lenda, através da introdução de 5 estrofes sem dúvida da invenção do autor (que
correspondem a 13,15% da obra total). Nessa parte, o rapaz volta para casa e vai
imediatamente deitar-se, pois está muito cansado. Durante a noite, tem um sonho:
está num baile, dançando com uma moça muito bonita. De repente, o belo rosto da
moça transforma-se numa horrível caveira. O espetro ri às gargalhadas, beija-o e
abraça-o. Ele tenta libertar-se, mas sem sucesso.
De
manhã, o rapaz acorda, mas não mostra ter compreendido o sonho, caso de ironia trágica,
que, sob uma transparente alegoria, explicou o que lhe acontecera na véspera.
O
rapaz sai e vai a casa de Corina. A história volta a decorrer como nas versões da
lenda: conversa com a mãe da jovem; revelação da morte desta; pormenor do retrato
da falecida na parede da casa, que o rapaz reconhece; ida ao cemitério; capa do
rapaz em cima do túmulo da moça.
Na
cena do cemitério há um pormenor que deve ser fruto da invenção de J. Borges (ocupa
uma estrofe, correspondendo a 2,53% do poema): o rapaz e a mãe da moça rezam um
pai-nosso e várias ave-marias pelo descanso da alma da jovem e, além disso, o rapaz
jura nunca mais dançar. Embora esta cena não exista nas numerosas versões de “O
fantasma que pede carona” que conheço, parte dela baseia-se numa crença sem dúvida
corrente na comunidade em que J. Borges vive. Como se sabe, um dos aspetos do dogma
católico da “comunhão dos santos” afirma que as orações ou missas que os vivos rezarem
por intenção das almas do Purgatória encurtam a estadia destas almas naquele lugar
de padecimentos e levam-nas mais rapidamente para o Céu. De notar, além disso, que
existem na tradição oral muitas lendas em que se narra a aparição de uma alma penada
que vem a este mundo pedir que rezem ou mandem dizer missas por ela, de forma a
poder entrar no Céu. Cumprido esse pedido, a alma nunca mais volta a aparecer, subentendendo-se
(ou dizendo-se mesmo explicitamente) que ela entrou no Céu. É muito possível que
J. Borges conheça lendas deste género, e que tenha sido por influência delas que
escreveu a cena em que a mãe de Corina e o rapaz rezam por alma da moça.
A
essa luz poderemos, creio, ler a conclusão do folheto, claro fruto da inventiva
de Borges. Ocupando as três estrofes finais (ou seja, 7,89% do poema) esta parte
explica que o rapaz nunca mais esqueceu a história que vivera (a qual foi muito
contada pelo povo) e que a moça nunca mais voltou a aparecer. Embora no poema se
não diga, subentende-se que a alma de Corina está agora em descanso, graças às orações
que por ela foram rezadas.
O
facto de o poema frisar que, por um lado, Corina morreu cheia de pecados contra
os bons costumes (“nunca falou em casar / só vivia pelos bailes / toda noite ia
dançar / fumando erva e bebendo / todo dia sem parar”), os pais (“nunca tomou conselho
/ nem do pai nem da mãe dela”) e a própria religião (“não gostava de Igreja”), e,
por outro, o facto de o poema deixar claro que, depois das orações da mãe e do rapaz,
Corina nunca mais apareceu parecem apontar para algo muito interessante. Na verdade,
talvez se possa entender que o fantasma de Corina apareceu não porque não conseguisse
passar para o Outro Mundo devido a ter morrido prematuramente (crença de raiz pré-cristã
que, como antes disse, se encontra em muitas versões de “O fantasma que pede carona”),
mas sim porque estava neste mundo a purgar os muitos pecados que cometera em vida.
Esta crença não é a católica oficial, sendo anterior à definição do dogma do Purgatório
no séc. XIII e ligando-se à antiga conceção do Purgatório não como um lugar (separado
deste mundo) em que se padece, mas sim como um estado de padecimento, estado esse
que decorre, precisamente, neste mundo, nos lugares onde a alma viveu e pecou. [21]
Terminando
a análise deste folheto, podemos concluir que nele é muito grande o espaço ocupado
por aspetos acrescentados pelo autor à história narrada na lenda. De facto, somadas
todas as partes fruto da inventiva de J. Borges, vemos que constituem 52,51% do
poema.
Nessas
partes inventadas (em que melhor se revela, portanto, a personalidade do autor),
destaca-se a intenção moral de cunho tradicionalista, sobretudo no tratamento negativo
dado à moça, na esteira, aliás, do que se encontra também noutro folheto do autor,
como atrás vimos. Corina é apresentada como cheia de vícios, fruto da sociedade
moderna, fazendo o contrário do que se esperaria de uma mulher. Consequentemente,
morre nova. Além disso, a sua aparição como fantasma parece dever-se a ter sido
condenada a ficar neste mundo para purgar os pecados que cometeu. Só a intervenção
dos outros, através do poder da oração, a consegue libertar.
Embora
um modelo negativo, daquilo que se não deve fazer, a moça é, neste folheto, a personagem
central (é ela aliás a única que tem nome), centralidade bem expressa desde o próprio
título da obra: A moça que dançou depois de morta.
O folheto de cordel: O homem que beijou uma alma
O segundo folheto que
vamos analisar intitula-se O homem que beijou uma alma, é de Maria Godelivie e foi
publicado em 2003. [22] Tal com a obra
de J. Borges, inspira-se numa versão indeterminada pertencente ao quarto subtipo
de “O fantasma que pede carona”.
Maria
Godelivie Cavalcanti de Oliveira nasceu em 1959, em Campina Grande, PB, onde reside,
é professora do ensino médio e autora de vários folhetos de cordel.
O
poema em apreço é formado por 56 sextilhas, com rima nos versos pares, e uma septilha
(a última estrofe do poema), esta com rima ABCBDDB. Como vemos, portanto, trata-se
de uma obra bastante mais longa que a de J. Borges, que tem apenas 38 sextilhas.
O
folheto começa com um prólogo (de uma única estrofe), em que se diz que os fantasmas
voltam a este mundo para fazer aquilo que não puderam fazer em vida. Trata-se de
uma ideia que encontramos, de forma implícita ou mesmo explícita, em certas versões
da lenda de “O fantasma que pede carona”, embora não normalmente em versões do seu
quarto subtipo.
Segue-se
uma parte toda ela fruto, sem dúvida, da invenção de Maria Godelivie, pois nunca
surge nas versões da lenda. Esta parte ocupa nove estrofes (ou seja, 16,07% do total)
e nela se contam os antecedentes do baile. Ali se diz que um rapaz, de nome Óscar,
passa de carro por certa cidade. O carro tem uma avaria e ele vê-se obrigado a interromper
a viagem e a levá-lo a um mecânico.
Óscar era
bonitão
E sabia
conversar,
Andava
sempre arrumado
Gostava
de prosear
Olhava
para as meninas
Já querendo
desfrutar
Apesar
de responsável
Com a família
e o lar
Não perdia
ocasião
Pra das
festas desfrutar
Sem que
a esposa soubesse
Que estava
a farrear
É,
portanto, natural que o conquistador Óscar vá a um bar, de modo a informar-se sobre
como aproveitar a estadia forçada naquela cidade. Fica a saber que nessa noite vai
realizar-se um baile. Arranja então quarto no hotel, onde descansa até às 22h. Depois,
veste-se elegantemente e parte para o baile.
A
cena do baile começa com uma parte inventada pela autora, ocupando 6 estrofes, ou
seja, 10,71% do folheto: no baile há muitas mulheres, cujos traseiros Óscar aprecia
com interesse. No entanto, as mais bonitas já têm companhia, pelo que ele passa
o tempo apenas bebendo. À 1h da manhã, como não conseguiu conquistar ninguém, decide
voltar ao hotel. À saída do baile, vê uma moça muito bonita e sozinha, chorando.
O rapaz pergunta-lhe que tem e ela diz-se que o seu par, com quem tinha combinado
ir ao baile, não apareceu. Óscar, felicíssimo pela oportunidade, convida a moça
(que se chama Margarida) para dançar.
Chegados
a este ponto, o folheto continua do modo habitual nas versões da lenda. Mas, depois
de Óscar deixar Margarida em casa, surge nova parte fruto da imaginação de Maria
Godelivie, que ocupa três estrofes (ou seja, 5,35% do poema). Ali se explica que
Óscar volta muito feliz para o hotel e vai dormir, sem se preocupar com telefonar
à sua própria família, de modo a avisar que ficara retido naquela cidade. No dia
seguinte, arranja-se elegantemente e vai a casa de Margarida.
Em
casa desta, as coisas passam-se como de costume na lenda: a mãe da jovem fica muito
comovida quando o rapaz explica que veio ver a moça com quem dançara na noite passada;
vai buscar uma foto que mostra ao rapaz; ele reconhece a menina da véspera; a mãe
explica-lhe então que ela morrera há vinte anos.
Segue-se
nova parte fruto da criatividade da autora (ocupando 6 estrofes, ou seja 10,71%
do folheto): a mãe de Margarida conta a Óscar que, durante a noite anterior, acordara
com um ruído. Fora ao quarto da filha e ali a encontrara sentada na cama, chorando,
agarrada a um casaco. Depois, a filha desvanecera-se no ar, deixando o casaco dobrado
em cima da cama. Ao ouvir este relato, o rapaz foge horrorizado, e nunca mais ninguém
volta a vê-lo naquela cidade.
Embora
esta parte seja, como disse, invenção da autora, baseia-se muito provavelmente num
aspeto que estaria na versão da lenda que ela ouviu. Na verdade, há algumas versões
(raras, é verdade) em que, de modo a convencer o rapaz de que a moça de facto morrera,
a mãe desta leva-o não ao cemitério mas sim ao quarto vazio da jovem. E aí, sobre
a cama, para espanto da mãe e do rapaz, encontram o casaco que este emprestara ao
fantasma.
Como
não conheço versões brasileiras em que a ação se passe deste modo, exemplificarei
com uma versão portuguesa. Diga-se, entre parênteses, que esta versão ilustra o
modo como “O fantasma que pede carona” tem vivido no Algarve (região do Sul de Portugal)
desde há cerca de 30 anos. Na verdade, muitas versões que possuo (nomeadamente recolhidas
por alunos meus) apresentam esta lenda como tendo acontecido numa curva junto da
danceteria Kadoc (atualmente denominada Lick), a mais famosa do Algarve, situada
não longe de Vilamoura. Nessa curva, segundo a lenda, a moça (agora fantasma) morreu
de desastre e é aí que pede carona. Curiosamente, no norte da Itália dá-se um fenómeno
análogo, e aí a lenda está ligada à discoteca Snoopy, localizada em Serina, na região
de Bérgamo (cf. Fumagalli, 2004).
Vejamos,
então, a versão portuguesa:
Versão nº 4
Informante:
Ricardo Correia Henriques, 23 anos (na época da recolha), natural de Oeiras, Lisboa.
Mora em Loulé, na região do Algarve, Sul de Portugal. Tem o 12º ano. É operador
de exploração. Versão inédita recolhida em Gambelas, município de Faro, Algarve,
por José Henrique Almeida (meu aluno na Universidade do Algarve), em 05-04-2004.
Pelo que
eu sei, era uma rapariga, [23] namorava com um moço, e depois tiveram um acidente ali perto
da Kadoc, numa curva. A moça morreu no acidente. E depois, pelo que dizem (eu pelo
menos nunca assisti, não é?), pelo que dizem, ela costuma a estar sempre nessa curva,
a pedir boleia. [24] Aí há uns
tempos atrás, [ela] andava lá e estava sempre a pedir boleia.
E, por
acaso, houve um rapaz que lhe deu boleia. Ela estava… Aquilo foi de manhã cedo,
ele deu-lhe boleia, já não sei para onde, já não me recordo. E ela estava com frio,
ele deu-lhe o casaco [25] para ela vestir. E, naquela conversa toda, ela ficou onde quis…
disse onde é que morava, quem era o pai etc. (o pai era ali o dono do restaurante
Dallas, em Quarteira). E então, pronto, assim foi. E, ao ir embora, ao despedir-se,
[ela] levou o casaco do rapaz, estás a perceber?
E no dia
a seguir é que ele reparou nisso, lembrou-se que tinha falado com ela, onde é que
era a morada
[26] etc., etc. Lá foi… Lembrou-se
do restaurante do Dallas, em Quarteira, pronto, era fácil. Chegou lá, falou com
o pai dela e disse:
— Passou-se
isto, isto e isto. Estive ontem com a sua filha, dei-lhe boleia e ela ficou com
o meu casaco. Agradecia que me pudesse devolver o casaco.
Claro que
o homem não gostou nada da conversa e levou a mal. E o rapaz, sem perceber:
— Mas porquê?
Porquê? Porquê?
Depois
contaram-lhe o sucedido.
— Então,
mas é impossível, é praticamente impossível, porque eu falei com ela, [ela] não
estava nem mal, nem nada, estava bem, estava consciente. Falei muito bem com ela.
Normal, era uma pessoa normal.
E nesse
dia… Depois, foram lá a casa do homenzinho [o pai da moça] e depois… (o homem sempre
deixou o quarto dela conforme ela o deixou)… e, quando chegaram lá, estava o casaco
dele em cima da cama dela.
No fim de o informante contar esta versão da lenda,
o coletor continuou conversando com ele, fazendo-lhe perguntas. Embora tal não interesse
especificamente para o estudo do folheto de Maria Godelivie, vou transcrever um
extrato dessa conversa, porque ilustra bem o caráter que esta narrativa adquiriu
na região onde se conta.
Como veremos, nessa conversa, o informante afirma ter
conhecido a moça antes de ela ter virado fantasma. Tal conhecimento não deve ser
invenção deste rapaz, pois, segundo eu próprio pude determinar através de outras
fontes (outras versões desta lenda que recolhi), deu-se, na verdade um acidente
na curva da Kadoc em que morreu a filha do dono do restaurante Dallas, da vizinha
cidade de Quarteira.
Sem dúvida “O fantasma que pede carona” já existia na
tradição oral dessa região, e, depois do referido acidente (que deve ter impressionado
a população, por envolver a morte de uma moça jovem e filha de uma família conhecida
na cidade), a lenda localizou-se e adaptou-se às circunstâncias do lugar: passou
a contar-se sobre a curva da danceteria Kadoc, onde a moça efetivamente morreu,
e essa moça real tornou-se a personagem da lenda.
Vejamos então um excerto da conversa entre o coletor
e o informante da versão nº 4:
Coletor: Tu és de Oeiras [nos
arredores de Lisboa], mas tiveste contacto com esta história cá em baixo [= no Algarve]?
Informante: Sim, cá em baixo.
Eu moro cá em baixo há mais tempo [isto é, mais tempo do que três anos. O informante
explicara antes ter ouvido esta lenda pela primeira vez três anos antes].
Coletor: Mas só foi cá em
baixo?
Informante: Só cá em baixo.
Só cá em baixo, claro. Eu cheguei a conhecer a rapariga…
Coletor: A rapariga que…?
Informante:… que morreu
Coletor: Chegaste a conhecer?
Informante: Sim.
Coletor: E como é que ela
se chamava? Sabes?
Informante: Boa pergunta…
Já não me lembro.
Coletor: Sabes a idade?
Informante: Ela era mais velha
que eu, muito mais velha que eu. Devia ter para aí 27, 28. Naquela altura, eu tinha
para aí uns 12 anos… Eu lembro-me que ela já andava no secundário, [27] estás a perceber?
Coletor: Não te lembras do
namorado dela?
Informante: Não.
Coletor: E no acidente ele
também morreu?
Informante: Não, não, o namorado
dela não. Ficou apanhado da cabeça, [28] mas não morreu.
Coletor: Isto é contado nalguma
ocasião especial? Quando surge algum assunto especial?
Informante: Não, só quando
surge este tipo de histórias macabras, etc. O pessoal vai-se lembrando. Claro, naquela
altura, naquela altura que isso surgiu, toda a gente contava, toda a gente falava
nisso, e que era muito frequente estar lá a tal rapariga a pedir boleia. Ouvi várias
pessoas a dizer a mesma coisa, não é?
Coletor: Acreditas nesta lenda?
Informante: Eh pá, [29] isso comigo não funciona muita bem.
Não sou muito crente nessas coisas. [O informante ri].
Coletor: Já contaste [esta
lenda] a mais pessoas?
Informante: Já, já contei
a mais pessoas. Até já falei com uma prima dela, que também a conheço, e ela também
diz a mesma história, já a ouvi falar muitas vezes disso. E é prima. Conheço as
duas. Portanto…
Coletor: Este restaurante
existe ainda?
Informante: Sim, sim, sim,
ainda existe.
Coletor: É do pai dela?
Informante: É. Ainda é do
pai dela. Isso foi muito contado lá por Quarteira.
Voltemos
agora ao folheto de Maria Godelivie, que, depois da cena do casaco do rapaz encontrado
sobre a cama da moça (tal como na versão portuguesa, nº 4), termina com uma conclusão,
de uma estrofe (ou seja, 1,78% do total da obra), fruto da invenção da autora. Embora
de tom bem-humorado, é uma farpa atirada contra os conquistadores:
Portanto
dou um conselho
Aos galinhas
de plantão
– Quando
arranjar um namoro
É bom prestar
atenção
Fazendo
um exame sério
Se catinga
a cemitério
E se bate
o coração.
Para
terminar a análise de O homem que beijou uma alma, podemos referir que as partes
acrescentadas à lenda pela imaginação de Maria Godelivie ocupam 44,62% do folheto.
Nesse aspeto, portanto, esta obra não se diferencia muito do que vimos no folheto
de J. Borges, onde temos uma percentagem de 52,51%.
No
entanto, ao contrário do que se passa no folheto de Borges, a personagem principal
é, aqui, o homem. Repare-se que, aliás, o título do folheto aponta desde logo nessa
direção: O homem que beijou uma alma. A personagem masculina, Óscar, constitui um
modelo pela negativa, pois é apresentado como um conquistador impenitente, que trai
a mulher e se esquece dela e dos filhos. No fim, apanha o maior susto da sua vida,
ao aperceber-se de que esteve com um fantasma e foi uma espécie de caçador caçado.
Trata-se, como vemos, do exato oposto do que se passava no folheto de J. Borges,
onde a personagem criticada era a moça, que só pensava em bailes e droga e não queria
casar.
No
folheto de Maria Godelivie, a jovem Margarida, pelo contrário, desde o momento em
que surge na obra, chorando à entrada do baile, porque o seu par não viera, revela-se
uma personagem simpática. E sobre ela nunca se diz nada desagradável, o que faz
os defeitos de Óscar parecerem ainda maiores.
Outro
aspeto que contrasta com o que encontramos na obra de J. Borges é a explicação dada
para a aparição do fantasma. De facto, na primeira estrofe do folheto de Maria Godelivie,
diz-se que os fantasmas voltam para fazer aquilo que não puderam concretizar em
vida. Portanto, quando, mais tarde, o leitor fica a saber que Margarida é um fantasma,
compreende imediatamente que a sua aparição é uma tentativa (votada desde o início
ao fracasso, o que toca o leitor ainda mais) de encontrar o amor e ser feliz, algo
que não pôde conseguir devido à morte prematura. Estamos, pois, bem longe da presença
do fantasma na terra vista como um modo de purgar os pecados, tal como encontramos
em J. Borges. Neste contexto, a explicação apresentada por Maria Godelivie revela-se,
pois, uma posição feminista, ou pelo menos pró-feminina.
Um
aspeto mais claramente feminista deste folheto está patente na caraterização de
Margarida como uma personagem com sentimentos, que se apaixonou por Óscar (o qual,
mal sabia ela!, apenas queria mais uma conquista), como mostra a cena (inventada
pela autora) em que a moça aparece, durante a noite, chorando e agarrando o casaco
do rapaz, destroçada por não poder levar em frente tal amor, um verdadeiro amor
impossível. Acontece que, nas versões da lenda “O fantasma que pede carona”, quase
sempre quem tem sentimentos (ou pelo menos desejo) em relação à moça é o rapaz,
sendo a moça apresentada apenas como o objeto dos sentimentos do homem. São raríssimas
as versões em que se atribuem sentimentos à moça, e, mesmo nesses casos, os sentimentos
são mais adivinhados do que claramente expressos. [30] Vista a esta luz, a cena criada por Maria Godelivie constitui, portanto,
uma verdadeira reivindicação.
A
defesa da igualdade entre os sexos é, aliás, uma caraterística da obra de Maria
Godelivie que ela própria aponta numa entrevista concedida a um grupo de alunos
da Escola Severino Cabral, da sua cidade natal, Campina Grande:
Alunos: Em seu primeiro cordel, O Gostosão [publicado em 2002], você
inverte a idéia proposta pelo título, fazendo com que o marido traidor se torne
submisso à mulher. Qual o motivo dessa inversão?
Maria Godelivie: Primeiro para ficar divertido, segundo para dar
uma rasteira nos homens. Meu maior objetivo é pegar no pé dos machistas, pois nosso
mundo ainda é muito machista e sabemos que os seres humanos são todos iguais (Farias et al.).
Conclusão
Vimos neste artigo como
a lenda “O fantasma que pede carona” foi aproveitada por dois autores da literatura
de cordel brasileira (J. Borges e Maria Godelivie), de modos ideologicamente diferentes
e, mesmo, opostos.
Será
talvez interessante recordar que a mesma lenda foi posta em verso pela cultura de
massas de outros países. Por exemplo, em Portugal, conheço duas folhas volantes
com adaptações de tal lenda: uma de cerca de 1947 e outra provavelmente da década
de 1960. Além disso, conheço um conjunto de versões recolhidas da tradição oral
portuguesa pertencentes a três canções narrativas diferentes que, pela linguagem,
pelo tipo de versificação e por informações dos próprios informantes, é possível
concluir que foram inicialmente transmitidas em folhas volantes, a partir das quais
foram decoradas e entraram na oralidade (ver Marques, 2008).
Em
Itália, existiram também dois folhetos de cordel com adaptações versificadas de
“O fantasma que pede carona” (ver Bermani, 1991).
Por
outro lado, em vários países, existem músicas das décadas de 1950-80, gravadas em
disco, que contam, à sua maneira, a história de “O fantasma que pede carona”. Conheço
três dos Estados Unidos, uma da Espanha, outra da África do Sul (sobre todas elas
cf. Marques, 2008: 350) e duas no Brasil. [31]
A
enorme difusão oral de “O fantasma que pede carona”, em todos os continentes, e
a sua adaptação, em diferentes pontos do mundo, sob a forma de folheto de cordel,
folha volante ou música, mostra bem o interesse universal da história contada por
esta lenda e sublinha que, para lá de diferenças de países, raças e línguas, as
preocupações dos seres humanos são, afinal, basicamente as mesmas: neste caso, a
interrogação sobre a morte e, portanto, em última análise, sobre a nossa vida.
NOTAS
1. Este artigo é uma versão revista e
aumentada de Marques, 2011.
2. O leitor interessado pelas crenças
em fantasmas e as lendas a elas ligadas na cultura europeia (que é a que está subjacente
aos dois folhetos de cordel objeto deste artigo), desde a Antiguidade Clássica aos
nossos dias, tem à sua disposição uma vasta bibliografia. Sem pretensões de exaustividade,
citarei as seguintes obras: Capdecomme, 1997; Davidson e Russell, 1981; Études rurales,
1987; Felton, 2000; Finucane, 1982; Guzmán, 2017; Jobbé-Duval, 2000; Johnston, 1999;
Le Braz, 1990; Lecouteux, 1996; Lecouteux e Marcq, 1990; Poulin, 1997; Schmitt,
1994.
3. Ou “O fantasma que pede boleia”, na
variante europeia do português.
4. Beardsley e
Hankey, 1942 e 1943.
5. Beardsley e
Hankey, 1942: 305. No entanto, no artigo os autores apenas publicam 40
dessas versões.
6. No português de Portugal, “rapariga”
é apenas o feminino de “rapaz”, ou seja, é sinónimo de “moça”, não tendo o sentido
que a palavra adquiriu no Brasil.
7. Boleia = carona.
8. Casaco (em Portugal) = paletó.
9. Campa = sepultura.
10. Giro = bacana.
11. Varanda = sacada.
12. Miúdos= guris.
13. Malta = gente.
14. Terreola = vilarejo.
15. De cuja existência soube graças à
amabilidade do falecido Roberto Benjamin.
16. Dessa edição possuo cópia em pdf,
oferecida por Roberto Benjamin, que me informou também da sua presumível data.
17. A variante mais substancial é referida
à frente na nota 19.
18. As citações que faço de A moça que
dançou depois de morta são extraídas da ed. de 2004. Nas citações deste folheto
e dos restantes que uso neste artigo, respeito a linguagem e também a grafia e a
pontuação do original, corrigindo (no caso destas duas últimas) apenas alguns erros
que contradizem a norma adotada nos folhetos pelos próprios autores.
19. É assim que este verso está na edição
de 2004. Na edição s. d., de cerca de 1998, a que atrás me referi, este verso diz
“daqui pra chegar 2 mil”.
20. A 1ª ed. deste folheto deve ser da década de 1980
(ver, à frente, o v. 1 do poema).
21. A doutrina sobre o Purgatório foi-se
construindo ao longo da Idade Média e estava já muito generalizada em finais do
séc. XII, embora só em 1254 tenha sido definida, por Inocêncio IV, tal como hoje
a conhecemos (ver Le Goff, 1991: 181-184 e 379-380). Foi então que, a nível oficial,
se fixou quer a existência do Purgatório, quer a sua categoria de lugar extraterreal.
No entanto, no passado, figuras tão importantes como São Gregório Magno (papa de
590 a 604) tinham defendido que o Purgatório era não um lugar mas um estado de penitência,
e que esse estado se passava na terra. São Gregório narra mesmo duas histórias (a
que, do ponto de vista etnográfico, poderíamos chamar duas lendas de fantasmas)
em que pessoas mortas em pecado (não capital) são vistas de novo na Terra, nos lugares
onde antes tinham vivido, passando agora uma vida de dificuldades a fim de se purgarem.
Essas pessoas pedem a quem com elas fala que rezem por elas, de modo a que o seu
tempo de expiação passe mais depressa e possam entrar no Céu. Quem as ouve acede
ao seu pedido e, dentro em breve, os penitentes desaparecem para sempre (Le Goff,
1991: 125-127). Também sobre estas lendas publicadas por São Gregório, ver Mariano
e Marques.
22. Devo o conhecimento deste folheto
à Prof.ª Doralice de Queiroz, a quem muito agradeço. Em Queiroz, 2006: 70-74, esta
pesquisadora analisa o folheto de Maria Godelivie, embora não quanto ao aspeto das
suas relações com a lenda, que abordo no presente artigo.
23. Como atrás expliquei, “rapariga”,
em Portugal, é sinónimo de “moça.
24. Como atrás expliquei, “boleia”, em
Portugal, significa “carona”.
25. Casaco (em Portugal) = paletó.
26. Morada = endereço.
27. “Ensino secundário” é, em Portugal,
o mesmo que “ensino médio” no Brasil. A referência ao “secundário” não pode significar,
claro, que a moça, quando morreu, frequentava tal grau de ensino, isto se o informante
estiver correto ao dizer que (subentende-se que no momento da morte) ela tinha 27
ou 28 anos. Possivelmente, a referência ao ensino secundário significará que o informante
conheceu a moça quando ela frequentava esse grau de ensino.
28. Apanhado da cabeça = com problemas
mentais.
29. “Pá” (de “rapaz”) corresponde a “cara”,
no Brasil.
30. Dos pouquíssimos casos que conheço,
citarei uma versão de Porto Rico (publicada em Pedrosa, 2004: 40), em que, no cemitério,
quando o rapaz introduz a mão no bolso do paletó (que estava em cima da sepultura
da moça), lá dentro encontra uma flor, sem dúvida deixada por ela, talvez como sinal
de amor.
31. São elas “Estranho Retrato”, interpretada
pela dupla Sulino e Marrueiro, 1954, e “A Capa do Viajante”, pela dupla Jacó e Jacozinho,
1964. Devo o conhecimento destas músicas ao folclorista Marco Haurélio, a quem muito
agradeço.
Referências bibliográficas
Beardsley, Richard K.; Hankey,
Rosalie, “The Vanishing Hitchhiker”. California Folklore Quarterly, I, nº 4 (October
1942): 303-335.
___. “A History of ‘The Vanishing
Hitchhiker’”. California Folklore Quarterly, II, nº 1 (January 1943):
13-25.
Benjamin, Roberto. Contos populares brasileiros. Pernambuco,
Recife: Fundação Joaquim Nabuco / Editora Massangana, 1994.
Bermani, Cesare,
Il bambino è servito. Leggende metropolitane in Italia, Bari: Edizioni Dedalo, 1991
Borges, J.; Coimbra, Sílvia Rodrigues, Poesia e gravura de J. Borges: Recife,
s. n., 1993
___. A moça
que dançou depois de morta [Bezerros, Pernambuco: ed. do autor], 2004
___. A moça que virou jumenta
porque falou de top-less com Frei Damião. [Bezerros, PE: ed. do autor], s. d.
Capdecomme,
Marie, La vie des morts. Enquête sur les fantômes d’hier et d’aujourd’hui. Paris : Éditions Imago, 1997
Davidson, H. R. E.; Russell,
W. M. S. (dir.), The Folklore of Ghosts, Cambridge: Published for the Folklore Society
by D. S. Brewer, 1981
Études rurales, nº 105-106 (número monográfico, intitulado
“Le retour des morts”; inclui doze artigos sobre o tema dos fantasmas, por diversos
autores), janvier-juin 1987.
Farias, Alyere Silva et al., O gênero entrevista em
sala de aula: uma sequência didática realizada por professores em formação. Disponível em http://www.uesc.br/eventos/selipeanais/anais/brunoalveseoutros.pdf. Acessado em 25.08.2021
Felton, D., Haunted Greece and
Rome. Ghost stories from Classical Antiquity. Austin, Texas: University of Texas
Press, 2000
Finucane, R. C., The Appearances
of the Dead. A cultural history of ghosts. London:
Junction Books, 1982
Fumagalli, Stefania, La ragazza
dello Snoopy. La leggenda contemporanea dell’ “Autoppista fantasma”: una ricerca
in Valle Brembana. Bergamo: Sistema Bibliotecario Urbano, 2004
Godelivie, Maria, O homem que beijou
uma alma, seguido de Monteiro, Manoel, O trem de 1907. Campina Grande, Paraíba: Cordelaria Poeta Manoel Monteiro, 2003
Guzmán Almagro, Alejandra, Fantasmas,
apariciones y regresados del más allá. De la Antigüedad a la
época moderna. Vitoria-Gasteiz:
Sans Soleil Ediciones, 2017.
Homero, Odisseia. Tradução
de Frederico Lourenço. Lisboa:
Cotovia, 2012.
Jobbé-Duval, Émile, Les morts malfaisants
(larvae, lemures) d’après le droit et les croyances populaires des Romains. Nouvelle
préface de Claude Lecouteux, citations latines et grecques traduites en français
par Oliver Cosma. Chambéry : Éditions Exergue,
2000
Johnston, Sarah Iles, Restless Dead.
Encounters between the living and the dead in Ancient Greece. Berkeley / Los Angeles
/ London: University of California Press, 1999
Jones, Louis C., “Hitchhiking
Ghosts in New York”. California Folklore Quarterly,
III, nº 4 (October 1944): 284-292.
Le Braz, Anatole, La légende de
la mort chez les Bretons Armoricains. 5ª ed., facsimilada. Paris : Champion / Spezed,
Coop. Breizh, 1990
Lecouteux, Claude, Fantômes et
revenants au Moyen-âge. 2ª ed. Paris : Éditions Imago, 1996
Lecouteux, Claude; Marcq, Philippe,
Les esprits et les morts. Textes traduits du latin, présentés et commentés par…
Paris : Librairie Honoré Champion, Éditeur, 1990
Le Goff, Jacques, La naissance
du Purgatoire. Paris : Gallimard, 1991
Mariano, Alexandra de Brito; Marques, J. J. Dias, “Uma
narrativa de fantasmas da Antiguidade Tardia”, artigo inédito, a publicar na revista
Cadmo (FLUL)
Marques, J. J. Dias, “The Vanishing
Hitchhiker” Theme in Portuguese Balladry”. In Dace Bula e Sigrid Rieuwerts (orgs.),
Singing the Nations: Herder’s legacy. Trier: Wissenschaftlicher
Verlag, 2008: 340-350
___. “A lenda de ‘O fantasma que pede boleia’
(‘The Vanishing Hitchhiker’) em dois folhetos de cordel brasileiros”. In Isabel
Morujão e Zulmira Santos (orgs.), Literatura culta e popular em Portugal e no Brasil.
Homenagem a Arnaldo Saraiva. Porto: CITCEM / Edições Afrontamento, 2011: 207-224
Pedrosa, José Manuel, La autoestopista fantasma y otras
leyendas urbanas españolas, Madrid: Editorial Páginas de Espuma, 2004
Poulin, Albert, Sorcellerie, revenants
et croyances en Haute-Bretagne. Rennes : Éditions
Ouest-France, 1997
Queiroz, Doralice Alves de, Mulheres cordelistas. Percepções do universo feminino na literatura de cordel. Dissertação de
mestrado. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais,
2006
Rosen, Sven, “Joan Petri Klint: A Swedish proto-fortean of the 16th Century”.
Fortean
Studies, I (1994): 151-183.
Schmitt,
Jean-Claude, Les revenants. Les vivants et les morts dans la société médiévale.
Paris : Éditions Gallimard, 1994
The Epic of Gilgamesh. The Babylonian
epic poem and other texts in Akkadian and Sumerian. Translated with an introduction
by Andrew George. London: Penguin Books, 1999.
J. J. DIAS
MARQUES. É doutor em Literatura, especialidade
de Literatura Oral, pela Universidade do Algarve, onde é professor auxiliar. Desde
1980, tem-se dedicado à recolha e estudo da literatura oral portuguesa, nomeadamente
do romanceiro. Sobre este género publicou numerosos artigos e a ele dedicou a sua
tese de doutorado. Nos últimos anos, tem-se dedicado também ao estudo de outros
géneros orais, nomeadamente das lendas. É coautor do Catalogue of Portuguese Folktales
(2006), de Romances Tradicionais do Distrito de Bragança (2019) e de O Conto Tradicional
Português no séc. XXI (2019). Coordena o Centro de Estudos Ataíde Oliveira, da Universidade
do Algarve, dedicado ao estudo da literatura oral. E-mail: jjmarq@ualg.pt.
*****
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 190 | dezembro de 2021
Curadoria: Maria de Fátima Novaes Pires (UFBa) e Rogério Soares Brito (UNEB)
Artista convidado: Eduardo Eloy (Brasil, 1955)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2021
Visitem também:
Atlas Lírico da América Hispânica
Nenhum comentário:
Postar um comentário