quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

MIGUEL PEREIRA | Entrevista: Glauber Rocha

 


Meu encontro com Glauber Rocha deu-se na Mapa Filmes, no bairro da Urca, no Rio de Janeiro, na semana que antecedeu o lançamento, no Brasil, de seu filme Cabeças cortadas, em programa duplo com Di Cavalcanti, que acabou sendo retirado de cartaz, por decisão judicial, em função de processo movido por familiares do pintor. A entrevista foi publicada parcialmente, no Globo, em 10 de junho de 1979. A decisão de publicar a versão completa, como um documento, depois de mais de 27 anos, deve-se, exclusivamente, ao desejo de que ela possa contribuir com pesquisadores e interessados no estudo da obra de Glauber Rocha.

Nada quer esclarecer, nem pretende levantar teorias a respeito do universo cinematográfico glauberiano. Suas reflexões, feitas no calor da hora e numa velocidade impressionante, estão sem retoques no texto ora publicado. Pequeníssimas mudanças foram feitas para evitar o excesso de repetições. Procurei respeitar a integridade e o ritmo da sua fala. Omiti apenas alguns nomes, por respeito que todos me merecem e por recomendação do próprio Glauber. Motivou-me apenas o contexto em que se encontrava quando retornou ao Brasil, depois de mais de cinco anos fora do país.

Glauber morreu dois anos, dois meses e alguns dias depois desta entrevista. Fiquei chocado com a sua morte e era um dos que estavam comovidos e abismados, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, no dia 22 de agosto de 1981, ouvindo Darcy Ribeiro e outros consternados com a sua inesperada falta. Contrariando o que me disse no final desta entrevista, Glauber tencionava ficar, no mínimo, dois anos fora do país, mas disposto a se reconciliar com os cineastas e a arregaçar as mangas pelo cinema brasileiro, e sempre fiel ao Brasil, disse-me ele. No entanto, não foi exatamente isso que aconteceu. Ficou fora algum tempo, mas não conseguiu produzir nada do que havia planejado. Chegou para morrer em solo brasileiro.

 

MP | Que relação tem Cabeças cortadas com os seus filmes anteriores?

 

GR | Eu quero informar o público que realizei O dragão da maldade contra O santo guerreiro aqui, em 1968. Foi lançado no Festival de Cannes de 1969, onde ganhou o prêmio de melhor direção. Por causa do seu sucesso crítico e comercial, foi vendido para quase todos os países do mundo, e eu recebi duas propostas ainda no Festival de Cannes. Propostas excepcionais, diga-se de passagem, que só eram oferecidas para diretores como Pasolini, Godard, Fellini ou Buñuel, ou seja, fazer dois filmes em branco. Quer dizer, dois filmes em que os produtores estão pagando pra ver. Não estavam pedindo roteiro, nem queriam saber do que se tratava. Apenas jogando nas minhas possibilidades de vir a criar filmes fora do contexto habitual do cinema europeu. A proposta dos produtores italianos resultou em O leão de sete cabeças e a dos espanhóis, os mesmos que produziram com os mexicanos Viridiana, o filme espanhol de Buñuel, deu em Cabeças cortadas. Não que os produtores italianos e espanhóis tivessem me proposto os temas. Eu já tinha pretensões de filmar fora do Brasil o Leão, porque, a partir de 1968, com o ato 5 e a dureza da censura, eu vi que não tinha muito espaço criativo, perderia muito tempo aqui e envelheceria no Brasil esperando as aberturas que duraram 15 anos para chegar. Tivemos que esperar 15 anos, para que o país respirasse politicamente. Então eu disse para mim mesmo: não vou retroceder no meu processo de especulação expressiva e de criação artística. Tenho que fugir daqui para continuar filmando dentro dos espaços possíveis. Já saído com O dragão da maldade, em 1968, levando, embrionariamente, a ideia de filmar o Leão de sete cabeças. Ainda não o tinha com esse título. Era o embrião de uma história que se passava na África sobre os problemas das lutas anti-colonialistas na África e na Itália. Uma produção em que a televisão alemã, da Baviera, também interveio, porque Antonio das mortes, que é o título internacional de O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro, título, aliás, que pouca gente sabe direito no Brasil, foi também coproduzido pela organização da televisão francesa e pela Rádio-Televisão da Baviera. De forma que O dragão da maldade foi produzido pela televisão europeia, mas sem que houvesse essa coisa de fazer o filme em close porque é para a televisão. Isso é uma bobagem. Foi o mesmo programa que produziu L’histoire immortel de Orson Welles, Mouchette do Bresson, Louis XIV do Rosselini, uma série de filmes de autores e me distinguiu com essa produção livre de Antonio das mortes. De forma que a televisão alemã que tinha ficado entusiasmada com Dragão e por isso coproduziu o Leão. A televisão francesa não entrou no Leão porque o produtor que tinha produzido esses filmes foi demitido por ter sido participante do movimento do maio francês. Então a linha dura entrou na televisão francesa, mas a alemã continuou na sua tradição liberal. Daí o melhor cinema europeu ser o alemão, porque a televisão alemã é que financia o cinema revolucionário da Alemanha, sem nenhum compromisso. Herzog, Fassbinder, ou seja, a fina flor do cinema alemão é produzida pela televisão alemã. E os filmes são passados na televisão e no mercado.

Eu então fui para a Itália, logo em seguida ao Festival de Cannes. Era em maio de 1969 e já em setembro eu estava no Congo Brazzaville, filmando o Leão de sete cabeças. Voltei, montei e terminei o filme, em fevereiro de 1970. Em março de 1970, já estava começando a filmar o Cabeças cortadas, na Espanha. No dia que saiu em Roma a cópia de O leão de sete cabeças, voei para a Espanha para começar o Cabeças cortadas. Terminei de filmar o Cabeças cortadas, em julho de 1970. Quer dizer, eu fui levar o Antonio das mortes para Cannes, em maio de 1969, e, em julho de 1970, tinha feito dois filmes: um na África e outro na Espanha. Uma operação que demandou de mim um esforço físico e intelectual enorme. Mas eu vi que era uma oportunidade de transar em duas áreas que me interessavam muito: a África e a Espanha. Ou seja, as raízes brasileiras e latino-americanas. Foi como um diretor brasileiro que terminei fazendo esses dois filmes. Essas condições e esse contexto é que me permitiram fazer um só discurso: “O leão das sete cabeças cortadas“, ou seja, um discurso afro-hispânico, sobre as mitologias formadoras da nossa nacionalidade, do nosso continente, quer dizer, desse campo antropológico novo que é chamado a raça latino-americana. E eu fui exatamente investigar as origens desses dois campos.

 

MP | Os personagens de Cabeças cortadas têm alguma relação com seus filmes anteriores ou eles são essa busca da raça brasileira. O Diaz é Franco ou o Diaz é um brasileiro?

 

GR | O negócio é o seguinte. A cultura própria das Américas é a cultura chamada índia, indígena. Os povos viviam aqui num estágio de civilização específico. Os africanos vieram da África e os europeus vieram da Europa. De forma que a sociedade brasileira e a sociedade latino-americana foram estruturadas e construídas segundo moldes europeus. A contribuição dos negros era de origem escrava e, portanto, dirigida. De forma que a contribuição negra e índia era o tempero, um tempero altamente positivo, segundo o Gilberto Freyre e segundo qualquer brasileiro que conhece hoje o problema. Há um modelo civilizatório europeu. No caso latino-americano, ibérico, quer dizer Espanha e Portugal. Portugal nasceu de um feudo espanhol. Portugal é descendente da Espanha. O poeta Ezra Pound, que aprendeu o português para ler Os lusíadas, diz que a língua portuguesa é um apêndice ou um dialeto do espanhol. Não diz isto para desmerecer, porque ele valoriza extremamente Os lusíadas, diz, inclusive, que Os lusíadas é um poema superior. Não superior no sentido competitivo. Mas superior no sentido moderno em relação à Divina comédia e à Odisseia e Ilíada, porque é uma grande reportagem contemporânea em que o Camões jornalistiza a linguagem poética: “cesse tudo que a antiga musa canta porque outra mais alta se levanta”. Quer dizer, ele faz uma reportagem sobre a grande aventura portuguesa que transcende geográfica e espiritualmente a Divina comédia, ou a Homero, que é uma coisa que se passa naquela pequena idade média Florentina e a epopeia no pequeno arquipélago grego, enquanto a portuguesa já é África e o novo mundo.

Eu fiz o seguinte trabalho cinematográfico. Aliás, os meus filmes deveriam ser revistos e discutidos da seguinte forma. Eu tratei da temática negra, afro-brasileira em dois filmes: Barravento, filmado na Bahia, em 1961, e em O leão de sete cabeças, filmado na África, em 1969. Esses dois filmes deviam ser exibidos juntos. Depois eu tratei da problemática camponesa no Brasil, a vida agrária no Brasil, no Nordeste, em Deus e o diabo na terra do sol, em 1964, e, depois em O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro, em 1968. E tratei a problemática política da América Latina em Terra em transe e Cabeças cortadas. E completando esse quadro, eu fiz uma série de filmes marginais como Câncer, Claro e vários curtas-metragens, que compõem uma atividade marginal a esse discurso central. Tem até uma tese publicada na coleção Cinéma D’aujourd’hui, da editora Seghers, do crítico francês René Gardies, onde ele defende que esses seis filmes completam um texto plurifílmico e que encerram uma mitologia, recontada sobre diversas formas e cada vez mais ampliada sobre uma coisa que ele chama de o grande combate entre São Jorge e o Dragão e que seria traduzido assim de uma forma mais imediata no mito eterno da luta do povo e do poder. Então, evidentemente, sendo o Brasil e a América Latina sociedades reproduzidas da Europa, fundamentalmente, do modelo ibérico, recuando para as origens, para as matrizes, geográficas, sociais, históricas e psíquicas, para as matrizes globais, cósmicas do problema, eu vou encontrar na Espanha, no caso da minha experiência, o modelo básico, por exemplo, do Nordeste, o sertão. O Villa Lobos deu uma entrevista, numa ocasião, na Espanha, dizendo que a música espanhola era a música que mais tinha influenciado a música brasileira.

O problema é que a cultura portuguesa não existe. A cultura portuguesa existe assim na literatura apenas, Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz e poucos escritores, só. A cultura espanhola é muito forte. Portugal não tem uma tradição arquitetônica, pictórica. Portugal não tem um Velasquez, um Gaudí. Mesmo na literatura, tem um Camões, mas não tem um Lope de Vega, tem um Gil Vicente, mas não tem um Quevedo, não tem Antonio Machado, não tem um Lorca, não tem filósofos como Ortega y Gasset, como Miguel Unamuno, não tem Goya, não tem Buñuel, não tem Picasso, Juan Miró, não tem Pablo Casals, você entende? Realmente a cultura espanhola é fantástica. A cultura portuguesa é uma cultura além-mar. A cultura portuguesa, na verdade é o Brasil, que é um negócio novo ou aquelas miseráveis colonizações portuguesas que são a anti-cultura, uma raspa de cultura, que se pode chamar o colonialismo português. E a Espanha é uma cultura profundamente impregnada de mouros, da Arábia, do mulçumanismo. Então a Espanha é essa maravilha que é fusão do catolicismo com mulçumanismo. Na Espanha, Cristo e Maomé se abraçam. Na Espanha Jeová e Maomé se abraçam. A Espanha é a fusão do mundo árabe com o mundo católico.

Daí o surrealismo. Daí a teoria da loucura espanhola. Daí o anarquismo. Daí o humor negro. Daí a intimidade da fantasia e da morte. Daí Arrabal, Salvador Dalí. O surrealismo, quer dizer, uma visão além do real. Essa tremenda incapacidade tecnológica da Espanha e essa tremenda capacidade imaginativa da Espanha. A Espanha é a cultura mais velha da Europa. Com a queda do Franco, com a monarquia para-socialista que se estabeleceu na Espanha logo que passar essa primeira fase de terrorismo que caracteriza a recuperação histórica de um país que viveu quase 40 anos numa tenebrosa ditadura, superada essa fase a Espanha tende a ser o grande celeiro cultural da Europa e do mundo. Isso eu afirmo porque conheço. Realizei lá uma experiência concreta. Eu tive a sensação de que estava inaugurando alguma coisa ainda dentro da ditadura de Franco, mas alguma coisa que tinha a ver com uma cultura vital que é cultura espanhola. Então a Espanha tende a ser a única sociedade possível na Europa. E, consequentemente, Portugal está à deriva. Na Espanha eu encontrei o modelo gerador da política que caracteriza a cultura latino-americana e a brasileira por decorrência. Então a estrutura do latifúndio, a estrutura do patriarcalismo divinista que gera as ditaduras, as caudilhagens, a estrutura do catolicismo deformado até chegar à loucura do sado-masoquismo. Uma série de temas vistos não pela sua escabrosidade sensacionalista, mas dentro de uma ótica que eu diria científica, de caráter psicanalítico e poético, devido ao manancial imagético e sonoro que toda misteriosa mistura hispânica possui. E eu fui um homem marcado, muito influenciado por Frederico Garcia Lorca, profundamente traumatizado pelo fuzilamento de Lorca. Aprendi a odiar o Franco cedo, jovem. Foi o primeiro ditador que eu aprendi a odiar. E fui sempre um apaixonado por Picasso e por Luis Buñuel que marcaram profundamente a minha vida de homem e de artista, que eu tive o prazer de conviver alguns meses na intimidade desse mestre, dessa pessoa. E eu sempre disse a todo o mundo que a única pessoa no mundo que me impressionou pelo olhar e pelos gestos, quer dizer, pela moral, foi o Luis Buñuel. Nenhum homem me impressionou pelo olhar pelo contato, só o Buñuel. Eu tinha a impressão que eu estava vendo um Deus. Isto não quer dizer que eu estava sendo influenciado pelo Buñuel, como os críticos falam ligeiramente, porque eu fiz a minha obra cinematográfica conhecendo mal o Buñuel. Só depois que tinha feito meus filmes é que eu fiquei conhecendo Buñuel. Quer dizer, eu não sou, inclusive, esse filme que eu fiz na Espanha não tem nada a ver com Buñuel, segundo disseram os críticos. Mas isso é um outro assunto.


Então, na verdade, Terra em transe que trata da política no mítico Eldorado, porque Eldorado sempre foi a fantasia de Isabel, a Católica, de Fernando e Isabel, a Católica que financiaram Colombo, era o Eldorado, o paraíso, os paraísos dourados, os paraísos de ouro, que eles descobriram na América Latina. Então isso é produto da fantasia espanhola, da loucura católica e terminaram massacrando milhões de índios, destruindo várias civilizações e o Eldorado não existe. O Eldorado é a lenda. Essa loucura que é a América Latina. Uma sociedade que tem 100 anos de atraso cultural em relação aos Estados Unidos ou à Europa. Porque o problema aqui no Brasil não é discutir se o regime é capitalista ou socialista. Para mim, o problema fundamental é ver o nosso fracasso tecnológico e econômico.

O Brasil não se desenvolve facilmente nem no capitalismo nem no socialismo. É que nós somos profundamente herdeiros dessa loucura, dessa irresponsabilidade. Como essa colonização foi feita, baseada no extrativismo imediato, no acúmulo de capital imediato, na concentração de riquezas, na política exportativista, na ideologia da escravidão, na desumanização das relações, perdoada por um catolicismo adaptado aos interesses da coroa portuguesa. Quer, dizer, uma coisa inteiramente doentia e perigosa para a nossa cultura.

Então, ao fazer Cabeças cortadas eu queria entrar no âmago dessas questões, que é um território terrível, porque não é um território palpável, não um território sociológico, economicista, não é um território da Maria da Conceição Tavares que poderia fazer uma estatística, uma discussão dialética sobre as variantes econômicas. É um território que não tem lugar para a sociologia de Florestan Fernandes. Realmente é um território que não tem lugar para a especulação linguística, crítico-linguística, crítico-psicanalista. É um território da aventura sensorial, quer dizer, é um território do sonho através do qual você pode penetrar naquilo, como diria Antonin Artaud, que está além de um real palpável. E eu cheguei navegando como Colombo, às avessas, 470 e tantos anos depois, num castelo do alto de uma montanha, no interior da Catalunha, num lugar chamado São Pedro de Roda, nos desertos da Costa Brava, cenários ancestrais. É lá nesse castelo que tinha um porteiro que aparece no filme, louco, cantando coisas, com um vento que soprava quase 100 quilômetros por hora, eu tive assim uma espécie de visão e materializei um teatro com aqueles atores ali dentro em 14 dias, num ritmo muito febril, com pré-notações. Como a censura espanhola era prévia, e estávamos em pleno franquismo, eu apresentei um roteiro de Macbeth de Shakespeare e foi aprovado pela censura e eu imediatamente passei a fazer Cabeças cortadas. E lá se materializou isso que chamo de viagem às origens do nosso modelo colonizador.

Porque o que você vê no filme é um castelo em ruínas de pessoas frustradas de Fernando e Isabel, entendeu, um castelo, capital de um feudo povoado por camponeses miseráveis, como naquelas arcaicas idades médias e o surgimento de um pastor, de um Cristo, de um libertador, ou seja, um intérprete da justiça e da liberdade, do progresso, do avanço, ou seja, da revolução, que destrói, mata a patriarca divinista e coroa uma rainha. É um filme que faz uma transmissão do poder patriarcal ao poder matriarcal. Isso é um detalhe muito importante dentro do filme, devolvendo assim à virgem Maria o poder. Essa devolução do poder à Virgem é uma metáfora de caráter surrealista típica deste plano. Surrealista eu quero dizer o discurso, que vai além da ótica academicista, realista ou naturalista. O naturalismo pertence à ótica do jornalismo. Telejornal, o Jornal Nacional faz o realismo. Agora, tudo que é ficção já é surrealismo. Surrealismo é, como diz o Buñuel, a materialização do sonho, do inconsciente. É real. A fantasia existe. Tanto que existe a palavra fantasia. Então subitamente a gente vê, mostrando lá a origem do câncer, a gente sabe como melhor tratar o câncer que anda por aqui. A viagem foi feita nesse sentido. Então o filme adquire uma certa forma, um certo ritmo, uma certa cor, um certo som, um certo estilo de interpretação, enfim, o filme adquire uma certa característica formal que, digamos, é um espelho poético, ou seja, o espelho não estatístico, não científico, desse misterioso processo histórico. É um filme que indo à Espanha, eu acho que fui ao útero da ibero-americanidade. Vendo o filme, eu tenho quase certeza disso. Aliás, eu não vi o filme depois de quase sete anos passados. Eu descobri que tinha descoberto a América do drama. Vi que tinha feito uma grande descoberta dramatúrgica e por isso é que o filme foi proibido no Brasil. Porque aquele discurso não podia sair, seis ou sete anos atrás. E hoje, com as aberturas, ele sai. A repressão ao filme não foi uma repressão a uma mensagem política do filme, porque eu não faço arte panfletária. Eu faço arte revolucionária e não arte panfletária. Eu vivo além dos partidos. Não me interessa a dogmática de nada. Eu sou assumido como artista, como o Lula é assumido como metalúrgico. Não tenho vergonha de ser artista. Eu acho que sou um operário do imaginário e tenho que ser respeitado por isso. Meu metier é difícil, é caro, é requintado, exige uma concentração física muito grande, digamos que é um trabalho de mediunidade. É uma história muito complexa. E eu aprendi isso convivendo com Fellini e lá ele faz umas mágicas e consegue milhões de dólares para materializar o sonho dele.

Terra em transe acaba com a coroação de Porfirio Diaz, interpretado por Paulo Autran. E, em seguida, duas gerações depois, você encontra o Diaz seguindo o inconsciente, a origem. Então é atemporal, porque o mito não tem começo, nem meio, nem fim. É como eu disse para uns críticos italianos: o Cabeças cortadas é como duas peças de Shakespeare, Macbeth e A tempestade, que são citadas por acaso dentro de uma novela do Jorge Luis Borges. Então eu diria que Cabeças cortadas é o desdobramento de Terra em transe e Terra em transe é o desdobramento de Cabeças cortadas. E os dois poderiam compor um novo filme, se eu fizesse uma montagem. O novo filme poderia se chamar A conquista de Eldorado ou A conquista da cabeça de Eldorado, ou seja, que a gente veja toda a história da América Latina junta. Compondo-se e decompondo-se. Na verdade, Cabeças cortadas é a continuação de Terra em transe, como observou Nelson Motta, é a agonia do ditador. Quer dizer Terra em transe é a morte do poeta e aqui é a morte de ditador. Em Cabeças cortadas, morrendo a ditadura, triunfa a poesia, triunfa a liberdade, a democracia. Então, Cabeças cortadas está passando no momento justo no Brasil. No momento das aberturas. O filme, como diz um crítico espanhol, é a estética da eternidade. O filme não envelheceu porque não é sociológico. Ficou mais bonito, mais digerível. Hoje o público quer ver exatamente um filme como Cabeças cortadas, que tem um discurso que preenche o campo do negócio.

Eu realmente acho, e digo isso hoje pela primeira vez, que, estilisticamente, do ponto de vista exclusivamente fílmico, dentro do requinte do enquadramento, do tom da montagem, é o filme mais perfeito que eu fiz. Foi um filme feito com a Mitchell e eu executei essa Mitchell como se estivesse tocando um órgão no qual eu tocasse Bach. O filme é bachiano, nesse sentido, embora não se sinta a música de Bach no filme. E realmente ele é a apoteose de Terra em transe. E, curiosamente, é o filme com o qual eu ganhei mais dinheiro.

Foi produzido na Espanha e com dinheiro espanhol. Mas ele é também uma coprodução com o Brasil. De forma que com a produção legalizada ele é espanhol na Espanha e brasileiro no Brasil. É a primeira e única coprodução com a Espanha. Inclusive faz uma aproximação com a Espanha. Lá ele foi lançado num circuito de cinemas de arte e teve uma carreira razoável. Na França, ele fracassou porque passou num momento em que o Godard dizia que o cinema tinha que ser um cinema de panfletos didáticos. Na verdade, o filme foi patrulhado pelos godardistas. Eu sobrevivi ao Godard. Ele saiu da crise para o panfleto materialista e eu saí para a aventura poética e surrealista.

Foi aí que se deu a crise do cinema nos anos 1970. Eu admiro Godard, mas não fecho com ele porque eu não sou francês, não sou cartesiano, não sou desencantado. De forma que a minha transa é outra. A cultura europeia está morrendo e eu subindo, assim como a cultura brasileira e a cultura latino-americana. De forma que Cabeças cortadas foi uma degola. Eu decapitei as estruturas dramáticas que nos oprimiam. Era a luta anti-colonizadora no campo dramatúrgico.

Por isso eu fui degolado no Brasil. Quando apresentei o filme aqui em 1972, ele já tinha sido exibido na televisão alemã e no mercado nórdico. Passou ainda na Tchecoslováquia, o único país socialista que o exibiu, e na Argentina. Os antiperonistas querendo usar o filme contra o Peron. O filme se referenda a Franco ou a Peron numa base muito relativa porque, na verdade, o filme fala de todos os ditadores, de todos os patriarcas decadentes. O filme não fala sobre o apogeu de um ditador, mas sobre a decadência. Sobre a morte longa, a longa morte do Franco. Eu fiz o filme na mesma época em que o Garcia Marquez estava escrevendo O outono do patriarca. Ele estava lá em Barcelona transando junto. Eu lancei o filme em 1970 e ele só lançou o livro em 1976. O Cabeças cortadas e O outono do patriarca seriam duas obras, uma literária e outra cinematográfica, sobre o mesmo tema: a morte de Franco. A morte de Franco inspirou um discurso sobre a morte das ditaduras e as ditaduras estão acabando. Os ditadores estão acabando. Acho que só tem aí o Pinochet. Tá aí o Xá, o Amim Dadá. O Somoza está caindo. Quer dizer, a história sopra para a democracia. As direitas estão estagnadas. Nós vivemos, no mínimo, num regime que eu considero de centro-esquerda.

Eu considero o governo do Figueiredo um governo de centro-esquerda. Eu não, qualquer sociólogo, observador, ou seja, um governo progressista, liberal que se preocupa com as causas sociais, com uma política externa independente em relação ao Terceiro Mundo e que procura ser independente em relação ao imperialismo americano, é um governo de centro-esquerda. Um governo que abre. De forma que hoje isso liberta Cabeças cortadas. Na verdade, com Cabeças cortadas, eu fui anistiado aqui no Brasil agora. Depois de seis anos. Nenhum patrulheiro ideológico defendeu a prisão de Cabeças cortadas. O Chico Buarque de Holanda, que não é um patrulheiro ideológico, ele teve alguns sambas proibidos e recebeu o apoio e todas as forças se mobilizaram e virou um herói nacional. O Cabeças cortadas foi proibido seis anos e ninguém abriu a boca.

Ou seja, a esquerda brasileira resolveu me perseguir e fazer silêncio sobre a proibição do filme, me acusando de ter aderido ao General Geisel, porque eu, em 1974, declarei que o General Geisel ia abrir o Brasil. Hoje eu leio nos jornais o Paulo Francis dizendo a mesma coisa, anos depois. O Francis concordou comigo. Então, quer dizer, por eu ter dito a verdade histórica, as forças retrógradas da esquerda e da direita me picharam. Então, eu sou o Sakarov tropical. Eu sou o perseguido e degolado. Então, com Cabeças cortadas, eu estou sendo anistiado e vou usar bem essa anistia. O governo federal liberou o filme e eu estou disposto a um debate que o filme propõe porque eu estou dentro da lei. A não ser que o Ministério da Justiça me revogue o mandato da censura. Mas os cineastas brasileiros, do cinema novo, alguns que me devem tantos favores, inclusive favores sexuais, artísticos, econômicos, críticos, não protestaram. Acharam que a degola do Glauber Rocha era muito importante para satisfazer a mediocridade deles. Inclusive eu disse, isso é uma macumba. A Embrafilme vai se desintegrar. Enquanto o Cabeças cortadas não for liberado, o cinema brasileiro acaba. Isso é uma vergonha, o que houve. Assim, eu volto ao público cinematográfico. Vai ser lançado graças à Embrafilme que está distribuindo, e ao Livio Bruni que se comprometeu lançar o filme há sete anos e esperou até agora. Teve o capital empatado e está preparando um circuito de arte especial, composto pelo Rio Sul etc. Na verdade, é um filme de 1970 que entra em 1979, quase 10 anos depois. E eu trago a Espanha ao Brasil e é a Espanha já monarco-socialista.

 

MP | Por que a exigência de passar Cabeças cortadas, junto com o Di Cavalcanti, este também um filme tão polêmico?

 


GR | Eu programei o Di Cavalcanti para ser exibido junto com o Cabeças cortadas porque o Di Cavalcanti foi um surrealista tropicalista e como eu disse que a Espanha tem uma intimidade cômica com a morte, como o Frederico Morais escreveu num artigo aí no próprio Globo, evidentemente como o Cabeças cortadas trata da morte de um ditador, o Di Cavalcanti é um funeral. De qualquer forma, o Di Cavalcanti era também um dragão. Então, eu projeto os dois filmes juntos agora. Eu faço uma grande festa sobre a morte. Poderia chamar o lançamento de “Cabeças cortadas de la noite sinistra”. Mas isso como uma coisa humorística. E o programa montado fica assim como uma paródia do Cidadão Kane que se inicia com a morte do Kane e depois começa com a vida do Kane. De modo que o programa começa com o enterro do Di e em seguida vamos ver a morte do patriarca e então tem toda uma ligação dentro desse território. Os filmes estilisticamente se completam. Os dois discutem sobre a morte.

 

MP | Eles têm, estilisticamente, alguma semelhança?

 

GR | Eles têm uma semelhança não no ritmo, porque o Di parece uma batucada, e Cabeças cortadas parece um concerto de Bach. Então é diferente. Quer dizer, um outro tipo de cerimônia. Cabeças cortadas é um ritual e Di é uma festa. Poderíamos dizer que Di é um quarteto e Cabeças é uma sinfonia. Então eu apresento como se Villa Lobos apresentasse um concerto precedido de um daqueles choros dele. É procurar dar uma estrutura artística à própria composição do espetáculo.

Outro ponto é o seguinte: o Brasil é um país sem memória e eu contribuí enormemente para formar o cinema brasileiro, para construir a Embrafilme, para organizar a técnica e a economia cinematográfica e tudo. Então você veja o seguinte, eu voltei ao Brasil, depois de seis anos, filmei o Di, um filme que para mim teve consequências terríveis, porque foi um filme que me fez sofrer muito. O filme foi a Cannes, inclusive porque foi um sucesso, um filme sobre a morte de um amigo, e isso é uma dialética violenta, foi premiado com o prêmio especial do júri, voltou ao Brasil e foi apenas exibido na televisão educativa duas vezes por iniciativa do Gustavo Dahl e nunca foi exibido no Brasil. Você imagine que a ABD, que ganhou vários pontos de proteção usando inclusive o sucesso de Di Cavalcanti, excluiu esse filme de promoções. Não me confundam com o cinema novo. Eu queria aproveitar a entrevista para dizer que hoje sou um marginal da classe cinematográfica. Eu quero que empresários, banqueiros, autoridades governamentais, saibam que eu, Glauber Rocha, cineasta brasileiro, autor de vários longas-metragens e de curtas-metragens, sou o único cineasta internacional brasileiro, no sentido de que sou o único que dirigi três filmes lá fora, e dirigi não como colonizado, mas como recolonizador, não faço parte da Associação Brasileira de Cineastas, da ABRACI, não faço parte da Cooperativa de Cineastas, da qual fui excluído. Esses cineastas todos, você entende, ficaram pedindo dinheiro ao Ney Braga, falando mal do governo, numa atitude inteiramente hipócrita e resolveram me degolar, me cassar. E eu disse para eles: eu sou o João Goulart do cinema. Vocês me deram o golpe. Mas, o Jango morreu e eu voltei. Já filmei A idade da terra que eles ficaram contra. Não faço parte do Sindicato dos Produtores, nem da Associação dos Produtores. Usaram o meu nome junto ao governo, junto às embaixadas internacionais. Então, não faço parte de nada disso. Com Cabeças cortadas estou degolando o passado. É muito estranho, pois, eu acho que o Cinema Novo não morreu. Porque eu acho que o Cinema Novo sou eu, entendeu? Não é essas pessoas. É a contribuição do cinema baiano. O chamado cinema de arte feito no Rio resolve mal o cruzamento da chanchada da Atlântida com o neorrealismo de Luciano Emmer. Na verdade, a briga já estava estabelecida em 1964. Vidas secas é um filme realista crítico. Deus e o diabo é um filme épico. Vidas secas é um filme hegeliano. Deus e o diabo é um filme marxista, entendeu? O materialismo dialético contra o idealismo. Então, evidentemente, num clima de aberturas democráticas, naturalmente, tinham que me dar o golpe, de forjar uma cooperativa para evitar não a discussão da conquista do mercado, a discussão industrial que é uma necessidade, é fundamental, mas que é também uma discussão que encobre a especulação artística. Então, a sabotagem ao Glauber Rocha é a sabotagem à discussão, por exemplo, sobre o materialismo dialético, sobre a materialização do inconsciente, sobre a composição estrutural, sobre a criatividade de novas formas, de novas ideias. Sobre a necessidade da ruptura constante das formas e dos discursos aplicada dentro da realidade brasileira, latino-americana e universal. Então, eu proponho um discurso crítico, instigador, criativo e pessoal. Querem o comportamento acadêmico. Se viciaram na ditadura. Eu nunca aceitei a ditadura. Quando a ditadura apertou, eu me exilei porque eu vi que não podia enfrentar a ditadura. E se eu pegasse em armas, a ditadura ia me matar. Então eu me exilei porque eu não sou suicida, entende? Eu não tenho culpa de existir. E não vou me fazer assassinar de armas na mão para provar que eu sou um herói. Eu acho o meu trabalho importantíssimo para o Terceiro Mundo. Acho que eu contribuí muito para a cultura brasileira moderna. Os cineastas que me respeitem, entendeu? Então, o que ocorreu foi isso. Eu fiquei exilado e quando voltei estava a corrupção instalada dentro da Embrafilme. Eu tentei o discurso numa discussão de caráter político. Me sabotaram. Perderam a parada. Todos apoiaram o Magalhães Pinto, pedindo dinheiro ao Ney Braga e eu apoiei o Figueiredo antes dele ser eleito. Quer dizer, porque sabia que esse era o caminho indicado pelo general Geisel. E o Geisel é o único líder que tem que ser respeitado no Brasil, entendeu? Ainda hoje, fora do governo, é a única referência mental, espiritual forte. Agora todo mundo da esquerda está reconhecendo isso. Mas eu não me classifico ao lado dessas esquerdas profissionais que fracassaram com o janguismo. Então, o meu discurso é político também por isso, porque eu brigo com a direita e brigo também com a esquerda. Eu acho que tem que se instalar uma nova ordem ideológica, social e estética no país. E o meu cinema tem essa posição, como o Oswald de Andrade. Eu sou oswaldiano. Eu nunca neguei as minhas posições. Então, quando a ditadura apertou, eu fui embora e o pessoal ficou aqui ganhando dinheiro, fazendo pornochanchada, filme de publicidade. Engordaram à sombra do paternalismo público. Quando eu voltei, me sabotaram e eu fui patrulhado pelos meus próprios amigos. De forma que é uma coisa triste que eu volte ao mercado cinematográfico brasileiro e não vou poder contar com a presença das mesmas pessoas. De qualquer forma, hoje o meu público, a minha comunicação é outra. Mas eu lamento que esses cineastas, pessoas de talento, pessoas de qualidade, tenham tido esse comportamento. Evidentemente, eu guardei amigos dentro da classe cinematográfica.

 

MP | Você estaria aberto a uma reconciliação com eles?

 

GR | Eu exijo a autocrítica porque eu acho que eles prejudicaram muito o cinema brasileiro. Acho inclusive que a constante política, que eu chamo de pessedismo, de conciliação, fez com que uma grande oportunidade, criada pelo ministro Ney Braga, e pelo ministro Reis Veloso e pelo próprio Ernesto Geisel para fazer uma grande cinematografia no Brasil, fosse jogada fora. De forma que hoje é um pouco tarde para recuperar, porque o governo não acredita mais no cinema brasileiro. O cinema brasileiro fracassou. Tivemos grandes fracassos artísticos, assim como grandes fracassos industriais, e até mesmo de vanguarda. Não vou citar aqui fracasso de vanguarda porque os vanguardistas são pobres e censurados e vão dizer que eu estou dedando eles. Mas a verdade é esta. Então, a classe cinematográfica, nesse episódio, perdeu a importância política. Então, o governo não levou em consideração a classe cinematográfica porque achou que a classe cinematográfica tinha permitido uma incúria, uma desordem, um oportunismo tão grande. Então foi um grande erro político. De forma que eu tive que provocar uma dissidência dentro da tribo, romper publicamente, pois fizeram uma aliança tática que me pareceu desastrosa para o cinema brasileiro e para a classe cinematográfica porque hoje só se discute mercado. Como eu disse, o cineasta brasileiro é ótimo para fazer uma associação e uma assembleia. Mas, para fazer um take, um plano, um corte, está ficando ruim. O nosso cinema está ficando decadente. Tem dinheiro, liberdade e mercado e está piorando do ponto de vista artístico. É preciso que surja uma nova geração. E o que eu disse de o Di Cavalcanti e a morte tem sentido, pois o cinema brasileiro não morreu. Apenas um tipo de geração tomou uma posição política que se reflete na posição estética e que fica uma coisa complicada. Isso não quer dizer que não sejam bons cineastas.

 

MP | Você vê na nova geração alguma chance de mudança?

 

GR | Eu acredito em talentos. Evidentemente, o Brasil está explodindo agora. Eu acho que tudo que aconteceu no cinema brasileiro agora, até os diretores mais jovens, do movimento underground, que hoje são uns senhores de 30, 35 anos, digamos até a geração de Bruno Barreto que tem 24, 25 anos, tudo isso é cinema novo. Esse negócio de pornochanchada, underground, cinema de autor, tudo isso é a feijoada do cinema novo. O cinema novo criou tudo isso. O bom e o ruim. Isso é verdade. Todos querem matar Glauber Rocha. Eles não me perdoam por ter feito Deus e o diabo na terra do sol aos 23 anos. Isso é uma loucura. Quer dizer, a gente não pode existir. Então você faz um negócio e a coisa não cresce. Eu sempre pensei coletivamente em termos de todo o cinema brasileiro e eles pensaram em me matar. Eu descobri que estava sendo tocaiado, como numa peça de Shakespeare. Então ficou uma loucura. De forma que eu acho que, evidentemente, com as aberturas, a emergência da juventude, surgirá uma nova geração de cineastas. Mas não nos mesmos termos porque a televisão mudou a linguagem do cinema. O tape substituiu o ótico. Eu aliás, gostei muito porque o Francis Ford Coppola me citou em Cannes, na sua entrevista de imprensa dizendo que eu tinha razão. Que o tape é que mandava e que a linguagem cinematográfica era toda reacionária. Inclusive a de Hollywood. Você viu a citação do Coppola?

 

MP | Vi, vi…

 

GR | Me citou nisso. Eu tinha mandado uma carta para ele um mês antes de Apocalypse. Escrevi daqui do Brasil. Nem mandei para ele direto. Mas isso é muito bom porque o Coppola é o dragão do cinema americano. Ele dizendo isso e me dando razão, as pessoas aqui veem que eu não estou maluco. Na verdade, veem que as minhas posições teóricas têm outro tipo de embasamento. O negócio é o seguinte. Ele chegou à conclusão, com Apocalypse now que quem tinha razão era eu quando fiz O leão de sete cabeças e que disse: tem que acabar com esse velho drama e vamos construir um outro. A diferença é que o Godard ficou fazendo documentário, dizendo, eu quero fazer um filme assim e não fez os filmes. Eu fiz isso com o Leão de sete cabeças e com Cabeças cortadas. Aí os franceses não aceitaram e resolveram cortar a minha cabeça. Mas outros grupos me deram força. Houve uma briga violenta dentro de Paris porque Terra em transe foi um dos filmes que mais influenciou o maio francês. Terra em transe, A chinesa e Antes da revolução. Existem várias teses provando isso. Eu digo que meu cinema é mais conhecido na Europa do que aqui. Eu inclusive. Mas, eu sou chamado de maluco em Paris, no Rio, em Roma, em tudo quanto é lugar, entende? Mas, agora, está provado que não sou maluco. Há sete anos eu dizia que o Geisel ira salvar o Brasil, e diziam que eu era maluco. Hoje o Paulo Francis reconhece. Isso para mim é importante porque o Paulo Francis é uma das boas cucas do país. A mesma coisa o Coppola. Quando eu dizia com Leão de sete cabeças e Cabeças cortadas que essa porra tinha acabado e que o caminho do Godard estava errado e que o caminho do Coppola e do Bertolucci estava errado, isto é, fazer a restauração do drama burguês não era o caminho, eles diziam que eu estava maluco. Agora, o Coppola e o Bertolucci, depois que viu o Di Cavalcanti, também fundiu a cuca e achou que eu estava certo. Que o negócio era remover por cima, entende? Quer dizer, na forma. Não é que eu tenha uma posição absolutista. Mas estou dizendo isso para entender que dentro do Brasil é possível vigorar uma teoria artística nova que pode ter influência. Isso não porque eu seja profeta. É apenas porque eu sempre estudei com critério e sempre procurei ver


de uma forma mais ampla possível os componentes de um processo que criou o cinema novo. É realmente criar um cinema novo. Uma coisa é conquistar o público, como Joaquim Pedro fez com Macunaíma. Outra coisa é explorar o público, como acontece com essas pornochanchadas. Como cineasta quero viver a aventura da conquista. Então eu digo isto. Cineasta que quer ter casa, apartamento em Petrópolis, e quer viver no conforto, faz filme de quarto e sala, com cena de sexo para ganhar dinheiro. Outros não. Eu estou a fim da aventura artística que contribui para mudar o mundo. Porque todo mundo sabe que o mundo é injusto. De forma que a arte é um negócio que abre pra burro e tal. Essa é que é a jogada. De forma que a minha volta é uma volta em novos termos. Inclusive porque hoje eu sou um homem de 40 anos. Já posso ter uma visão, uma avaliação crítica do meu trabalho. A minha relação com a crítica hoje é outra. Hoje, se um crítico falar mal de um filme meu, eu não vou brigar com o crítico. Eu entendo o que é a crítica. O que eu não aceito é o sujeito, mesmo o sujeito hoje, quando me dedura, como alguns críticos que escrevem: o Glauber Rocha, que pertence à Tricontinental castrista. O cara escreve isso. É claro, aí eu dou risada. Cansam de dizer isso. Aí o outro cara escreve: Glauber Rocha queima muito fumo. Isso sai na primeira página da Tribuna. Publicam todo o dia um editorial com isso. Eu dou risada. Aí dizem que o Glauber Rocha é vendido ao imperialismo americano. Recebe dinheiro do Golbery para falar bem do governo. Escrevem isso também no Pasquim. Que eu recebi dinheiro do Ney Braga para dedar os estudantes. Então fazem uma campanha toda. Dão bola preta para meus filmes. Esse tipo de chantagem não me interessa. Acho que o crítico vai dizer hoje que Cabeças cortadas é genial, que Cabeças cortadas é um filme péssimo, é um filme regular, é um filme médio. A idade da terra e tal. Eu aceito a democracia crítica. Isso, inclusive. Eu, por exemplo, tenho a maior admiração pelo trabalho, pelos filmes dos meus colegas. Me lanço na promoção, sou entusiasta. Em relação aos meus filmes, antigamente, quando as pessoas podiam lucrar com o meu sucesso, me prestigiavam muito. Hoje é diferente. Hoje as pessoas acham que eu incomodo muito. Eu acho, inclusive, que a morte da minha irmã foi um resultado de toda uma relação violenta entre a minha família e a cultura brasileira. E que, na verdade, eu voltei do exílio e havia uma conspiração de forças que queria me matar. E mataram a minha irmã. O chamado assassinato cultural. O Freud fala isso. O psicanalista Eduardo Mascarenhas publicou um ensaio sobre isso. E tudo isso está misturado com o cinema. Então, o cadáver da minha irmã é o grande Oscar que eu recebi pelo bem que eu entreguei ao cinema brasileiro. Por isso é que eu coloco esse programa com o Di Cavalcanti e Cabeças cortadas. O funeral, agonia e funeral. Um programa assim macabro e poético para que as pessoas se choquem e se espantem, se divirtam. Me amem ou me odeiem. Quer dizer, eu acho que o Brasil vai marchar para uma boa. Eu acredito que o Brasil vai saltar esses obstáculos todos. Nós não vamos fracassar, realmente. Precisamos de uma liderança forte. Entendeu? De forma que eu reassumo o meu trabalho. Quer dizer, reabro a minha temporada, depois de 10 anos fora do público brasileiro. Essa é a verdade. Inclusive o último filme que fiz aqui foi O dragão da maldade, longa-metragem e acabei o Idade da terra que estará sendo lançado agora em 1979, no final do ano. Então, o seguinte: 10 anos depois, eu fiz o meu primeiro filme no Brasil e o estou lançando. Eu fui exilado e excluído durante 10 anos. Agora estou sendo anistiado. Não ainda uma anistia ampla e irrestrita. Mas, uma anistia normal.

 

MP | Você tinha dito, há algum tempo, que estava querendo retornar para fora.

 

GR | Realmente, eu me desiludi muito com os rumos que as coisas tomaram na Embrafilme e também por causa do próprio impasse em que a cultura brasileira chegou à gente e se internacionaliza muito. De forma que se eu tivesse uma razoável margem de poder, razoável não, um grande espaço de poder econômico e político para executar o que eu acho que deveria ser o projeto audiovisual e cultural no Brasil eu realmente enfrentaria a vida no Brasil como um cineasta independente. Como um autor cinematográfico, apesar das vantagens excepcionais que a Embrafilme concede aos autores, continua sendo muito frustrante. Porque, depois de ter feito os filmes que eu fiz, você ainda ter esse negócio de os negativos de Deus e o diabo e Terra em transe e O dragão estarem em Paris é doloroso, assim como O leão de sete cabeças, claro. Uma coisa assim entre a empresa e a clandestinidade, entre o sacrifício e a genialidade. Tudo isso me aborrece muito. Evidentemente, eu posso trabalhar em Hollywood, se eu quiser. Eu tive realmente propostas concretas e eu desfiz contrato com a United Artists. Um espaço mundial dos cineastas. O Luiz Carlos Barreto é testemunha disso, assim como Claude Lelouch. Contrato assinado. Na hora disse, não, não vou fazer. Não faço filme comercial. Desfiz um filme com Nelson Rodrigues, Vestido de noiva, com cheque em cima da mesa. Senhora dos afogados, também do Nelson Rodrigues. Isso eu já fiz várias vezes. Eu assino e na hora não filmo. Eu só fiz os filmes que eu quis fazer. Eu me conheço. Não adianta. Não gosto de filmar romance, roteiro de outras pessoas. Não me interessa. É um negócio louco que pinta. Tenho que fazer ali. Agora, então, o problema é seguinte: se eu conseguir, depois de Idade da terra, se eu tiver condições de me estabelecer como autor e situação econômica aceitável, tenho realmente o projeto de filmar o Ciro da Pérsia, por exemplo. Talvez eu possa filmar no Irã porque o roteiro é um pouco antigo. A censura do Xá proibiu. Mas, agora como o embaixador do Brasil no Irã me avisou que o novo governo tá querendo meus filmes lá e que o pessoal lá curte o meu cinema. Países da Ásia e da África gostam muito do meu cinema. Então, eu tenho uma chance de filmar no Irã. Depois, gostaria de fazer um filme nos Estados Unidos. Tenho um roteiro para filmar lá. Então, evidentemente, se eu puder fazer esse filme do Ciro da Pérsia, no Irã, ou esse filme Malok, nos Estados Unidos que poderia ser o meu próximo filme. O roteiro já está bem adiantado. Tenho também um roteiro para filmar no Brasil que é o da vida de Jango, do João Goulart, o romance e o roteiro que estão prontos. Mas acontece que todos os editores do Brasil se recusaram a editar o livro. Um romance-roteiro. Uma invenção nova que eu fiz que tem mil páginas. Então não posso pedir à Embrafilme para financiar porque ela é o Estado e o Estado derrubou o Jango. E eu defendo o Jango. Para defender o Jango não tenho que falar mal do Castelo Branco. Não se trata disso. O Jango é o cara que representa uma porrada de coisas. Não vou falar agora porque está no livro. Então, o único filme que me interessaria fazer é o Jango. Esse está escrito e eu o farei. E tenho os outros dois projetos que são fora do Brasil. E o do Brasil é inexequível. As outras coisas não me interessam. O sujeito pode me oferecer a grana que me oferecer, eu não tenho tempo a perder. Tenho essas três ideias para fazer.

 

MP | Você vê alternativa para uma pessoa como você, que pretende ter uma posição independente, fora do Estado?

 

GR | Olhe, vivendo do meu próprio produto. Porque meus filmes, mal ou bem, dão dinheiro. Os meus filmes não são fracassos de bilheteria. Eles passam no mundo inteiro. Eu sou proprietário dos meus filmes. Eu sempre produzi meus filmes, pagando juros nos bancos. Eu sei fazer grandes filmes com pouco orçamento e em pouco tempo. Eu conheço uma transa do cinema. Então, eu agora faço televisão, filmo muito rápido, sou um documentarista muito bom, você entende? Tenho pretensões de ser escritor, mas sei que sou melhor cineasta do que escritor. Eu fico às vezes surpreendido com a minha inventiva cinematográfica e escrevo com dificuldade. Eu escrevo, reviso. Eu, para publicar um texto, me torturo. Mas filmo com grande rapidez. Quer dizer: eu, na verdade, queria ser um romancista e virei cineasta. Tenho muita intimidade com a câmera, decupagem, invento com rapidez a cena. As imagens aparecem como num sonho. Pulam na frente quando estou filmando. Monto de uma forma muito moderna. Então isso é um negócio engraçado. Eu posso filmar qualquer coisa. Mas, me recuso a fazer filme de publicidade. Porque eu acho que o cinema é uma religião. Eu não aplico aquilo em outra coisa. Então, quando eu estou precisando de dinheiro, eu trabalho como repórter, eu faço televisão, como agora. Mas, meus filmes rendem. Como eles se pagaram e como eu posso fazer esses filmes com pouco dinheiro e como eu tenho um mercado no mundo que consome mais ou menos esses filmes, dá para eu ir vivendo. Porque o Cabeças cortadas custou 100 mil dólares. O Leão custou 100 mil dólares. O filme mais caro que eu fiz é o Idade da terra que custou 500 mil dólares. O filme do Coppola, o Apocalypse, levou três anos fazendo e custou 30 milhões de dólares. Este aqui levou um ano e meio e custou 500 mil. Um filme com quatro horas de duração. Quer dizer, 500 mil dólares não é nada. Mas, eu faço. Esses outros projetos já demandam mais dinheiro. E eu não quero solicitar nada da Embrafilme, além das medidas normais da Embrafilme. E é muito mais fácil convencer a um empresário americano ou europeu num grande projeto do que a um empresário brasileiro. Porque poucos são os empresários brasileiros que entendem o audiovisual. O cara quer faturar o negócio. Então, apesar de gostar do Brasil, de ter pretensões políticas aqui no Brasil, e a política é um negócio que me seduz também, mas eu acho que o meu negócio é ficar fazendo cinema e tentar fazer uma carreira muito mais internacional, fiel ao Brasil. Tentando, a qualquer momento, arregaçar as mangas pelo cinema brasileiro, disposto a me reconciliar com os cineastas, mas numa base muito séria, porque o clima de frivolidade intelectual do Rio de Janeiro me desagrada muito. Eu sou baiano, nordestino. Sou homem de palavra. Chego na hora. De forma que a gente se vê estimulado por outras coisas. Se eu não conseguir o dinheiro para começar a fazer o Jango já, saindo do Brasil, não voltarei antes de dois anos porque eu vou fazer o Malok e o Ciro da Pérsia. Porque os dois filmes estão dentro da minha cabeça. O Idade da terra gerou o Malok e o Ciro da Pérsia estava escrito antes da Idade da terra, porque eu escrevi o roteiro para a rádio-televisão italiana, seis horas. A mesma produtora que produziu o Zeffirelli, o Cristo e outros filmes. Mas eu não pude filmar porque o Xá da Pérsia proibiu. Agora tem essa chance. Então é isso aí.

 

NOTA

Entrevista originalmente publicada na revista Alceu - v.7 - n.13 - julho/dezembro, 2006.




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[A partir de janeiro de 2022]
 

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Número 199 | dezembro de 2021

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