Nada quer esclarecer, nem pretende levantar
teorias a respeito do universo cinematográfico glauberiano. Suas reflexões, feitas
no calor da hora e numa velocidade impressionante, estão sem retoques no texto ora
publicado. Pequeníssimas mudanças foram feitas para evitar o excesso de repetições.
Procurei respeitar a integridade e o ritmo da sua fala. Omiti apenas alguns nomes,
por respeito que todos me merecem e por recomendação do próprio Glauber. Motivou-me
apenas o contexto em que se encontrava quando retornou ao Brasil, depois de mais
de cinco anos fora do país.
Glauber morreu dois anos, dois meses e alguns
dias depois desta entrevista. Fiquei chocado com a sua morte e era um dos que estavam
comovidos e abismados, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, no dia
22 de agosto de 1981, ouvindo Darcy Ribeiro e outros consternados com a sua inesperada
falta. Contrariando o que me disse no final desta entrevista, Glauber tencionava
ficar, no mínimo, dois anos fora do país, mas disposto a se reconciliar com os cineastas
e a arregaçar as mangas pelo cinema brasileiro, e sempre fiel ao Brasil, disse-me
ele. No entanto, não foi exatamente isso que aconteceu. Ficou fora algum tempo,
mas não conseguiu produzir nada do que havia planejado. Chegou para morrer em solo
brasileiro.
MP
| Que relação tem Cabeças cortadas com os seus filmes anteriores?
GR
| Eu quero informar o público
que realizei O dragão da maldade contra O
santo guerreiro aqui, em 1968. Foi lançado no Festival de Cannes de 1969, onde
ganhou o prêmio de melhor direção. Por causa do seu sucesso crítico e comercial,
foi vendido para quase todos os países do mundo, e eu recebi duas propostas ainda
no Festival de Cannes. Propostas excepcionais, diga-se de passagem, que só eram
oferecidas para diretores como Pasolini, Godard, Fellini ou Buñuel, ou seja, fazer
dois filmes em branco. Quer dizer, dois filmes em que os produtores estão pagando
pra ver. Não estavam pedindo roteiro, nem queriam saber do que se tratava. Apenas
jogando nas minhas possibilidades de vir a criar filmes fora do contexto habitual
do cinema europeu. A proposta dos produtores italianos resultou em O leão de sete cabeças e a dos espanhóis,
os mesmos que produziram com os mexicanos Viridiana,
o filme espanhol de Buñuel, deu em Cabeças
cortadas. Não que os produtores italianos e espanhóis tivessem me proposto os
temas. Eu já tinha pretensões de filmar fora do Brasil o Leão, porque, a partir de 1968, com o ato 5 e a dureza da censura, eu
vi que não tinha muito espaço criativo, perderia muito tempo aqui e envelheceria
no Brasil esperando as aberturas que duraram 15 anos para chegar. Tivemos que esperar
15 anos, para que o país respirasse politicamente. Então eu disse para mim mesmo:
não vou retroceder no meu processo de especulação expressiva e de criação artística.
Tenho que fugir daqui para continuar filmando dentro dos espaços possíveis. Já saído
com O dragão da maldade, em 1968, levando,
embrionariamente, a ideia de filmar o Leão
de sete cabeças. Ainda não o tinha com esse título. Era o embrião de uma história
que se passava na África sobre os problemas das lutas anti-colonialistas na África
e na Itália. Uma produção em que a televisão alemã, da Baviera, também interveio,
porque Antonio das mortes, que é o título
internacional de O dragão da maldade contra
o Santo Guerreiro, título, aliás, que pouca gente sabe direito no Brasil, foi
também coproduzido pela organização da televisão francesa e pela Rádio-Televisão
da Baviera. De forma que O dragão da maldade
foi produzido pela televisão europeia, mas sem que houvesse essa coisa de fazer
o filme em close porque é para a televisão. Isso é uma bobagem. Foi o mesmo programa
que produziu L’histoire immortel de Orson
Welles, Mouchette do Bresson, Louis XIV do Rosselini, uma série de filmes
de autores e me distinguiu com essa produção livre de Antonio das mortes. De forma que a televisão alemã que tinha ficado
entusiasmada com Dragão e por isso coproduziu o Leão. A televisão francesa não entrou no Leão porque o produtor que tinha produzido esses filmes foi demitido
por ter sido participante do movimento do maio francês. Então a linha dura entrou
na televisão francesa, mas a alemã continuou na sua tradição liberal. Daí o melhor
cinema europeu ser o alemão, porque a televisão alemã é que financia o cinema revolucionário
da Alemanha, sem nenhum compromisso. Herzog, Fassbinder, ou seja, a fina flor do
cinema alemão é produzida pela televisão alemã. E os filmes são passados na televisão
e no mercado.
Eu então fui para a Itália, logo em seguida
ao Festival de Cannes. Era em maio de 1969 e já em setembro eu estava no Congo Brazzaville,
filmando o Leão de sete cabeças. Voltei,
montei e terminei o filme, em fevereiro de 1970. Em março de 1970, já estava começando
a filmar o Cabeças cortadas, na Espanha.
No dia que saiu em Roma a cópia de O leão
de sete cabeças, voei para a Espanha para começar o Cabeças cortadas. Terminei de filmar o Cabeças cortadas, em julho de 1970. Quer dizer, eu fui levar o Antonio das mortes para Cannes, em maio de
1969, e, em julho de 1970, tinha feito dois filmes: um na África e outro na Espanha.
Uma operação que demandou de mim um esforço físico e intelectual enorme. Mas eu
vi que era uma oportunidade de transar em duas áreas que me interessavam muito:
a África e a Espanha. Ou seja, as raízes brasileiras e latino-americanas. Foi como
um diretor brasileiro que terminei fazendo esses dois filmes. Essas condições e
esse contexto é que me permitiram fazer um só discurso: “O leão das sete cabeças
cortadas“, ou seja, um discurso afro-hispânico, sobre as mitologias formadoras da
nossa nacionalidade, do nosso continente, quer dizer, desse campo antropológico
novo que é chamado a raça latino-americana. E eu fui exatamente investigar as origens
desses dois campos.
MP
| Os personagens de Cabeças cortadas têm alguma relação com seus
filmes anteriores ou eles são essa busca da raça brasileira. O Diaz é Franco ou
o Diaz é um brasileiro?
GR
| O negócio é o seguinte.
A cultura própria das Américas é a cultura chamada índia, indígena. Os povos viviam
aqui num estágio de civilização específico. Os africanos vieram da África e os europeus
vieram da Europa. De forma que a sociedade brasileira e a sociedade latino-americana
foram estruturadas e construídas segundo moldes europeus. A contribuição dos negros
era de origem escrava e, portanto, dirigida. De forma que a contribuição negra e
índia era o tempero, um tempero altamente positivo, segundo o Gilberto Freyre e
segundo qualquer brasileiro que conhece hoje o problema. Há um modelo civilizatório
europeu. No caso latino-americano, ibérico, quer dizer Espanha e Portugal. Portugal
nasceu de um feudo espanhol. Portugal é descendente da Espanha. O poeta Ezra Pound,
que aprendeu o português para ler Os lusíadas,
diz que a língua portuguesa é um apêndice ou um dialeto do espanhol. Não diz isto
para desmerecer, porque ele valoriza extremamente Os lusíadas, diz, inclusive, que Os lusíadas é um poema superior. Não superior no sentido competitivo.
Mas superior no sentido moderno em relação à Divina comédia e à Odisseia e Ilíada,
porque é uma grande reportagem contemporânea em que o Camões jornalistiza a linguagem
poética: “cesse tudo que a antiga musa canta porque outra mais alta se levanta”.
Quer dizer, ele faz uma reportagem sobre a grande aventura portuguesa que transcende
geográfica e espiritualmente a Divina comédia,
ou a Homero, que é uma coisa que se passa naquela pequena idade média Florentina
e a epopeia no pequeno arquipélago grego, enquanto a portuguesa já é África e o
novo mundo.
Eu fiz o seguinte trabalho cinematográfico.
Aliás, os meus filmes deveriam ser revistos e discutidos da seguinte forma. Eu tratei
da temática negra, afro-brasileira em dois filmes: Barravento, filmado na Bahia, em 1961, e em O leão de sete cabeças, filmado na África, em 1969. Esses dois filmes
deviam ser exibidos juntos. Depois eu tratei da problemática camponesa no Brasil,
a vida agrária no Brasil, no Nordeste, em Deus e o diabo na terra do sol, em 1964,
e, depois em O dragão da maldade contra o
Santo Guerreiro, em 1968. E tratei a problemática política da América Latina
em Terra em transe e Cabeças cortadas. E completando esse quadro,
eu fiz uma série de filmes marginais como Câncer, Claro e vários curtas-metragens,
que compõem uma atividade marginal a esse discurso central. Tem até uma tese publicada
na coleção Cinéma D’aujourd’hui, da editora Seghers, do crítico francês René Gardies,
onde ele defende que esses seis filmes completam um texto plurifílmico e que encerram
uma mitologia, recontada sobre diversas formas e cada vez mais ampliada sobre uma
coisa que ele chama de o grande combate entre São Jorge e o Dragão e que seria traduzido
assim de uma forma mais imediata no mito eterno da luta do povo e do poder. Então,
evidentemente, sendo o Brasil e a América Latina sociedades reproduzidas da Europa,
fundamentalmente, do modelo ibérico, recuando para as origens, para as matrizes,
geográficas, sociais, históricas e psíquicas, para as matrizes globais, cósmicas
do problema, eu vou encontrar na Espanha, no caso da minha experiência, o modelo
básico, por exemplo, do Nordeste, o sertão. O Villa Lobos deu uma entrevista, numa
ocasião, na Espanha, dizendo que a música espanhola era a música que mais tinha
influenciado a música brasileira.
O problema é que a cultura portuguesa não
existe. A cultura portuguesa existe assim na literatura apenas, Camões, Fernando
Pessoa, Eça de Queiroz e poucos escritores, só. A cultura espanhola é muito forte.
Portugal não tem uma tradição arquitetônica, pictórica. Portugal não tem um Velasquez,
um Gaudí. Mesmo na literatura, tem um Camões, mas não tem um Lope de Vega, tem um
Gil Vicente, mas não tem um Quevedo, não tem Antonio Machado, não tem um Lorca,
não tem filósofos como Ortega y Gasset, como Miguel Unamuno, não tem Goya, não tem
Buñuel, não tem Picasso, Juan Miró, não tem Pablo Casals, você entende? Realmente
a cultura espanhola é fantástica. A cultura portuguesa é uma cultura além-mar. A
cultura portuguesa, na verdade é o Brasil, que é um negócio novo ou aquelas miseráveis
colonizações portuguesas que são a anti-cultura, uma raspa de cultura, que se pode
chamar o colonialismo português. E a Espanha é uma cultura profundamente impregnada
de mouros, da Arábia, do mulçumanismo. Então a Espanha é essa maravilha que é fusão
do catolicismo com mulçumanismo. Na Espanha, Cristo e Maomé se abraçam. Na Espanha
Jeová e Maomé se abraçam. A Espanha é a fusão do mundo árabe com o mundo católico.
Daí o surrealismo. Daí a teoria da loucura
espanhola. Daí o anarquismo. Daí o humor negro. Daí a intimidade da fantasia e da
morte. Daí Arrabal, Salvador Dalí. O surrealismo, quer dizer, uma visão além do
real. Essa tremenda incapacidade tecnológica da Espanha e essa tremenda capacidade
imaginativa da Espanha. A Espanha é a cultura mais velha da Europa. Com a queda
do Franco, com a monarquia para-socialista que se estabeleceu na Espanha logo que
passar essa primeira fase de terrorismo que caracteriza a recuperação histórica
de um país que viveu quase 40 anos numa tenebrosa ditadura, superada essa fase a
Espanha tende a ser o grande celeiro cultural da Europa e do mundo. Isso eu afirmo
porque conheço. Realizei lá uma experiência concreta. Eu tive a sensação de que
estava inaugurando alguma coisa ainda dentro da ditadura de Franco, mas alguma coisa
que tinha a ver com uma cultura vital que é cultura espanhola. Então a Espanha tende
a ser a única sociedade possível na Europa. E, consequentemente, Portugal está à
deriva. Na Espanha eu encontrei o modelo gerador da política que caracteriza a cultura
latino-americana e a brasileira por decorrência. Então a estrutura do latifúndio,
a estrutura do patriarcalismo divinista que gera as ditaduras, as caudilhagens,
a estrutura do catolicismo deformado até chegar à loucura do sado-masoquismo. Uma
série de temas vistos não pela sua escabrosidade sensacionalista, mas dentro de
uma ótica que eu diria científica, de caráter psicanalítico e poético, devido ao
manancial imagético e sonoro que toda misteriosa mistura hispânica possui. E eu
fui um homem marcado, muito influenciado por Frederico Garcia Lorca, profundamente
traumatizado pelo fuzilamento de Lorca. Aprendi a odiar o Franco cedo, jovem. Foi
o primeiro ditador que eu aprendi a odiar. E fui sempre um apaixonado por Picasso
e por Luis Buñuel que marcaram profundamente a minha vida de homem e de artista,
que eu tive o prazer de conviver alguns meses na intimidade desse mestre, dessa
pessoa. E eu sempre disse a todo o mundo que a única pessoa no mundo que me impressionou
pelo olhar e pelos gestos, quer dizer, pela moral, foi o Luis Buñuel. Nenhum homem
me impressionou pelo olhar pelo contato, só o Buñuel. Eu tinha a impressão que eu
estava vendo um Deus. Isto não quer dizer que eu estava sendo influenciado pelo
Buñuel, como os críticos falam ligeiramente, porque eu fiz a minha obra cinematográfica
conhecendo mal o Buñuel. Só depois que tinha feito meus filmes é que eu fiquei conhecendo
Buñuel. Quer dizer, eu não sou, inclusive, esse filme que eu fiz na Espanha não
tem nada a ver com Buñuel, segundo disseram os críticos. Mas isso é um outro assunto.
O Brasil não se desenvolve facilmente nem
no capitalismo nem no socialismo. É que nós somos profundamente herdeiros dessa
loucura, dessa irresponsabilidade. Como essa colonização foi feita, baseada no extrativismo
imediato, no acúmulo de capital imediato, na concentração de riquezas, na política
exportativista, na ideologia da escravidão, na desumanização das relações, perdoada
por um catolicismo adaptado aos interesses da coroa portuguesa. Quer, dizer, uma
coisa inteiramente doentia e perigosa para a nossa cultura.
Então, ao fazer Cabeças cortadas eu queria entrar no âmago dessas questões, que é um
território terrível, porque não é um território palpável, não um território sociológico,
economicista, não é um território da Maria da Conceição Tavares que poderia fazer
uma estatística, uma discussão dialética sobre as variantes econômicas. É um território
que não tem lugar para a sociologia de Florestan Fernandes. Realmente é um território
que não tem lugar para a especulação linguística, crítico-linguística, crítico-psicanalista.
É um território da aventura sensorial, quer dizer, é um território do sonho através
do qual você pode penetrar naquilo, como diria Antonin Artaud, que está além de
um real palpável. E eu cheguei navegando como Colombo, às avessas, 470 e tantos
anos depois, num castelo do alto de uma montanha, no interior da Catalunha, num
lugar chamado São Pedro de Roda, nos desertos da Costa Brava, cenários ancestrais.
É lá nesse castelo que tinha um porteiro que aparece no filme, louco, cantando coisas,
com um vento que soprava quase 100 quilômetros por hora, eu tive assim uma espécie
de visão e materializei um teatro com aqueles atores ali dentro em 14 dias, num
ritmo muito febril, com pré-notações. Como a censura espanhola era prévia, e estávamos
em pleno franquismo, eu apresentei um roteiro de Macbeth de Shakespeare e foi aprovado
pela censura e eu imediatamente passei a fazer Cabeças cortadas. E lá se materializou
isso que chamo de viagem às origens do nosso modelo colonizador.
Porque o que você vê no filme é um castelo
em ruínas de pessoas frustradas de Fernando e Isabel, entendeu, um castelo, capital
de um feudo povoado por camponeses miseráveis, como naquelas arcaicas idades médias
e o surgimento de um pastor, de um Cristo, de um libertador, ou seja, um intérprete
da justiça e da liberdade, do progresso, do avanço, ou seja, da revolução, que destrói,
mata a patriarca divinista e coroa uma rainha. É um filme que faz uma transmissão
do poder patriarcal ao poder matriarcal. Isso é um detalhe muito importante dentro
do filme, devolvendo assim à virgem Maria o poder. Essa devolução do poder à Virgem
é uma metáfora de caráter surrealista típica deste plano. Surrealista eu quero dizer
o discurso, que vai além da ótica academicista, realista ou naturalista. O naturalismo
pertence à ótica do jornalismo. Telejornal, o Jornal Nacional faz o realismo. Agora, tudo que é ficção já é surrealismo.
Surrealismo é, como diz o Buñuel, a materialização do sonho, do inconsciente. É
real. A fantasia existe. Tanto que existe a palavra fantasia. Então subitamente
a gente vê, mostrando lá a origem do câncer, a gente sabe como melhor tratar o câncer
que anda por aqui. A viagem foi feita nesse sentido. Então o filme adquire uma certa
forma, um certo ritmo, uma certa cor, um certo som, um certo estilo de interpretação,
enfim, o filme adquire uma certa característica formal que, digamos, é um espelho
poético, ou seja, o espelho não estatístico, não científico, desse misterioso processo
histórico. É um filme que indo à Espanha, eu acho que fui ao útero da ibero-americanidade.
Vendo o filme, eu tenho quase certeza disso. Aliás, eu não vi o filme depois de
quase sete anos passados. Eu descobri que tinha descoberto a América do drama. Vi
que tinha feito uma grande descoberta dramatúrgica e por isso é que o filme foi
proibido no Brasil. Porque aquele discurso não podia sair, seis ou sete anos atrás.
E hoje, com as aberturas, ele sai. A repressão ao filme não foi uma repressão a
uma mensagem política do filme, porque eu não faço arte panfletária. Eu faço arte
revolucionária e não arte panfletária. Eu vivo além dos partidos. Não me interessa
a dogmática de nada. Eu sou assumido como artista, como o Lula é assumido como metalúrgico.
Não tenho vergonha de ser artista. Eu acho que sou um operário do imaginário e tenho
que ser respeitado por isso. Meu metier
é difícil, é caro, é requintado, exige uma concentração física muito grande, digamos
que é um trabalho de mediunidade. É uma história muito complexa. E eu aprendi isso
convivendo com Fellini e lá ele faz umas mágicas e consegue milhões de dólares para
materializar o sonho dele.
Terra
em transe acaba com a coroação
de Porfirio Diaz, interpretado por Paulo Autran. E, em seguida, duas gerações depois,
você encontra o Diaz seguindo o inconsciente, a origem. Então é atemporal, porque
o mito não tem começo, nem meio, nem fim. É como eu disse para uns críticos italianos:
o Cabeças cortadas é como duas peças de
Shakespeare, Macbeth e A tempestade, que são citadas por acaso dentro
de uma novela do Jorge Luis Borges. Então eu diria que Cabeças cortadas é o desdobramento de Terra em transe e Terra em transe
é o desdobramento de Cabeças cortadas.
E os dois poderiam compor um novo filme, se eu fizesse uma montagem. O novo filme
poderia se chamar A conquista de Eldorado
ou A conquista da cabeça de Eldorado,
ou seja, que a gente veja toda a história da América Latina junta. Compondo-se e
decompondo-se. Na verdade, Cabeças cortadas
é a continuação de Terra em transe, como
observou Nelson Motta, é a agonia do ditador. Quer dizer Terra em transe é a morte
do poeta e aqui é a morte de ditador. Em Cabeças
cortadas, morrendo a ditadura, triunfa a poesia, triunfa a liberdade, a democracia.
Então, Cabeças cortadas está passando
no momento justo no Brasil. No momento das aberturas. O filme, como diz um crítico
espanhol, é a estética da eternidade. O filme não envelheceu porque não é sociológico.
Ficou mais bonito, mais digerível. Hoje o público quer ver exatamente um filme como
Cabeças cortadas, que tem um discurso
que preenche o campo do negócio.
Eu realmente acho, e digo isso hoje pela
primeira vez, que, estilisticamente, do ponto de vista exclusivamente fílmico, dentro
do requinte do enquadramento, do tom da montagem, é o filme mais perfeito que eu
fiz. Foi um filme feito com a Mitchell e eu executei essa Mitchell como se estivesse
tocando um órgão no qual eu tocasse Bach. O filme é bachiano, nesse sentido, embora
não se sinta a música de Bach no filme. E realmente ele é a apoteose de Terra em
transe. E, curiosamente, é o filme com o qual eu ganhei mais dinheiro.
Foi produzido na Espanha e com dinheiro espanhol.
Mas ele é também uma coprodução com o Brasil. De forma que com a produção legalizada
ele é espanhol na Espanha e brasileiro no Brasil. É a primeira e única coprodução
com a Espanha. Inclusive faz uma aproximação com a Espanha. Lá ele foi lançado num
circuito de cinemas de arte e teve uma carreira razoável. Na França, ele fracassou
porque passou num momento em que o Godard dizia que o cinema tinha que ser um cinema
de panfletos didáticos. Na verdade, o filme foi patrulhado pelos godardistas. Eu
sobrevivi ao Godard. Ele saiu da crise para o panfleto materialista e eu saí para
a aventura poética e surrealista.
Foi aí que se deu a crise do cinema nos anos
1970. Eu admiro Godard, mas não fecho com ele porque eu não sou francês, não sou
cartesiano, não sou desencantado. De forma que a minha transa é outra. A cultura
europeia está morrendo e eu subindo, assim como a cultura brasileira e a cultura
latino-americana. De forma que Cabeças cortadas
foi uma degola. Eu decapitei as estruturas dramáticas que nos oprimiam. Era a luta
anti-colonizadora no campo dramatúrgico.
Por isso eu fui degolado no Brasil. Quando
apresentei o filme aqui em 1972, ele já tinha sido exibido na televisão alemã e
no mercado nórdico. Passou ainda na Tchecoslováquia, o único país socialista que
o exibiu, e na Argentina. Os antiperonistas querendo usar o filme contra o Peron.
O filme se referenda a Franco ou a Peron numa base muito relativa porque, na verdade,
o filme fala de todos os ditadores, de todos os patriarcas decadentes. O filme não
fala sobre o apogeu de um ditador, mas sobre a decadência. Sobre a morte longa,
a longa morte do Franco. Eu fiz o filme na mesma época em que o Garcia Marquez estava
escrevendo O outono do patriarca. Ele
estava lá em Barcelona transando junto. Eu lancei o filme em 1970 e ele só lançou
o livro em 1976. O Cabeças cortadas e
O outono do patriarca seriam duas obras,
uma literária e outra cinematográfica, sobre o mesmo tema: a morte de Franco. A
morte de Franco inspirou um discurso sobre a morte das ditaduras e as ditaduras
estão acabando. Os ditadores estão acabando. Acho que só tem aí o Pinochet. Tá aí
o Xá, o Amim Dadá. O Somoza está caindo. Quer dizer, a história sopra para a democracia.
As direitas estão estagnadas. Nós vivemos, no mínimo, num regime que eu considero
de centro-esquerda.
Eu considero o governo do Figueiredo um governo
de centro-esquerda. Eu não, qualquer sociólogo, observador, ou seja, um governo
progressista, liberal que se preocupa com as causas sociais, com uma política externa
independente em relação ao Terceiro Mundo e que procura ser independente em relação
ao imperialismo americano, é um governo de centro-esquerda. Um governo que abre.
De forma que hoje isso liberta Cabeças cortadas.
Na verdade, com Cabeças cortadas, eu fui
anistiado aqui no Brasil agora. Depois de seis anos. Nenhum patrulheiro ideológico
defendeu a prisão de Cabeças cortadas.
O Chico Buarque de Holanda, que não é um patrulheiro ideológico, ele teve alguns
sambas proibidos e recebeu o apoio e todas as forças se mobilizaram e virou um herói
nacional. O Cabeças cortadas foi proibido
seis anos e ninguém abriu a boca.
Ou seja, a esquerda brasileira resolveu me
perseguir e fazer silêncio sobre a proibição do filme, me acusando de ter aderido
ao General Geisel, porque eu, em 1974, declarei que o General Geisel ia abrir o
Brasil. Hoje eu leio nos jornais o Paulo Francis dizendo a mesma coisa, anos depois.
O Francis concordou comigo. Então, quer dizer, por eu ter dito a verdade histórica,
as forças retrógradas da esquerda e da direita me picharam. Então, eu sou o Sakarov
tropical. Eu sou o perseguido e degolado. Então, com Cabeças cortadas, eu estou sendo anistiado e vou usar bem essa anistia.
O governo federal liberou o filme e eu estou disposto a um debate que o filme propõe
porque eu estou dentro da lei. A não ser que o Ministério da Justiça me revogue
o mandato da censura. Mas os cineastas brasileiros, do cinema novo, alguns que me
devem tantos favores, inclusive favores sexuais, artísticos, econômicos, críticos,
não protestaram. Acharam que a degola do Glauber Rocha era muito importante para
satisfazer a mediocridade deles. Inclusive eu disse, isso é uma macumba. A Embrafilme
vai se desintegrar. Enquanto o Cabeças cortadas
não for liberado, o cinema brasileiro acaba. Isso é uma vergonha, o que houve. Assim,
eu volto ao público cinematográfico. Vai ser lançado graças à Embrafilme que está
distribuindo, e ao Livio Bruni que se comprometeu lançar o filme há sete anos e
esperou até agora. Teve o capital empatado e está preparando um circuito de arte
especial, composto pelo Rio Sul etc. Na verdade, é um filme de 1970 que entra em
1979, quase 10 anos depois. E eu trago a Espanha ao Brasil e é a Espanha já monarco-socialista.
MP
| Por que a exigência de
passar Cabeças cortadas, junto com o Di Cavalcanti, este também um filme tão polêmico?
MP
| Eles têm, estilisticamente,
alguma semelhança?
GR
| Eles têm uma semelhança
não no ritmo, porque o Di parece uma batucada, e Cabeças cortadas parece um concerto de Bach. Então é diferente. Quer
dizer, um outro tipo de cerimônia. Cabeças
cortadas é um ritual e Di é uma festa. Poderíamos dizer que Di é um quarteto
e Cabeças é uma sinfonia. Então eu apresento
como se Villa Lobos apresentasse um concerto precedido de um daqueles choros dele.
É procurar dar uma estrutura artística à própria composição do espetáculo.
Outro ponto é o seguinte: o Brasil é um país
sem memória e eu contribuí enormemente para formar o cinema brasileiro, para construir
a Embrafilme, para organizar a técnica e a economia cinematográfica e tudo. Então
você veja o seguinte, eu voltei ao Brasil, depois de seis anos, filmei o Di, um
filme que para mim teve consequências terríveis, porque foi um filme que me fez
sofrer muito. O filme foi a Cannes, inclusive porque foi um sucesso, um filme sobre
a morte de um amigo, e isso é uma dialética violenta, foi premiado com o prêmio
especial do júri, voltou ao Brasil e foi apenas exibido na televisão educativa duas
vezes por iniciativa do Gustavo Dahl e nunca foi exibido no Brasil. Você imagine
que a ABD, que ganhou vários pontos de proteção usando inclusive o sucesso de Di Cavalcanti, excluiu esse filme de promoções.
Não me confundam com o cinema novo. Eu queria aproveitar a entrevista para dizer
que hoje sou um marginal da classe cinematográfica. Eu quero que empresários, banqueiros,
autoridades governamentais, saibam que eu, Glauber Rocha, cineasta brasileiro, autor
de vários longas-metragens e de curtas-metragens, sou o único cineasta internacional
brasileiro, no sentido de que sou o único que dirigi três filmes lá fora, e dirigi
não como colonizado, mas como recolonizador, não faço parte da Associação Brasileira
de Cineastas, da ABRACI, não faço parte da Cooperativa de Cineastas, da qual fui
excluído. Esses cineastas todos, você entende, ficaram pedindo dinheiro ao Ney Braga,
falando mal do governo, numa atitude inteiramente hipócrita e resolveram me degolar,
me cassar. E eu disse para eles: eu sou o João Goulart do cinema. Vocês me deram
o golpe. Mas, o Jango morreu e eu voltei. Já filmei A idade da terra que eles ficaram
contra. Não faço parte do Sindicato dos Produtores, nem da Associação dos Produtores.
Usaram o meu nome junto ao governo, junto às embaixadas internacionais. Então, não
faço parte de nada disso. Com Cabeças cortadas
estou degolando o passado. É muito estranho, pois, eu acho que o Cinema Novo não
morreu. Porque eu acho que o Cinema Novo sou eu, entendeu? Não é essas pessoas.
É a contribuição do cinema baiano. O chamado cinema de arte feito no Rio resolve
mal o cruzamento da chanchada da Atlântida com o neorrealismo de Luciano Emmer.
Na verdade, a briga já estava estabelecida em 1964. Vidas secas é um filme realista
crítico. Deus e o diabo é um filme épico. Vidas secas é um filme hegeliano. Deus
e o diabo é um filme marxista, entendeu? O materialismo dialético contra o idealismo.
Então, evidentemente, num clima de aberturas democráticas, naturalmente, tinham
que me dar o golpe, de forjar uma cooperativa para evitar não a discussão da conquista
do mercado, a discussão industrial que é uma necessidade, é fundamental, mas que
é também uma discussão que encobre a especulação artística. Então, a sabotagem ao
Glauber Rocha é a sabotagem à discussão, por exemplo, sobre o materialismo dialético,
sobre a materialização do inconsciente, sobre a composição estrutural, sobre a criatividade
de novas formas, de novas ideias. Sobre a necessidade da ruptura constante das formas
e dos discursos aplicada dentro da realidade brasileira, latino-americana e universal.
Então, eu proponho um discurso crítico, instigador, criativo e pessoal. Querem o
comportamento acadêmico. Se viciaram na ditadura. Eu nunca aceitei a ditadura. Quando
a ditadura apertou, eu me exilei porque eu vi que não podia enfrentar a ditadura.
E se eu pegasse em armas, a ditadura ia me matar. Então eu me exilei porque eu não
sou suicida, entende? Eu não tenho culpa de existir. E não vou me fazer assassinar
de armas na mão para provar que eu sou um herói. Eu acho o meu trabalho importantíssimo
para o Terceiro Mundo. Acho que eu contribuí muito para a cultura brasileira moderna.
Os cineastas que me respeitem, entendeu? Então, o que ocorreu foi isso. Eu fiquei
exilado e quando voltei estava a corrupção instalada dentro da Embrafilme. Eu tentei
o discurso numa discussão de caráter político. Me sabotaram. Perderam a parada.
Todos apoiaram o Magalhães Pinto, pedindo dinheiro ao Ney Braga e eu apoiei o Figueiredo
antes dele ser eleito. Quer dizer, porque sabia que esse era o caminho indicado
pelo general Geisel. E o Geisel é o único líder que tem que ser respeitado no Brasil,
entendeu? Ainda hoje, fora do governo, é a única referência mental, espiritual forte.
Agora todo mundo da esquerda está reconhecendo isso. Mas eu não me classifico ao
lado dessas esquerdas profissionais que fracassaram com o janguismo. Então, o meu
discurso é político também por isso, porque eu brigo com a direita e brigo também
com a esquerda. Eu acho que tem que se instalar uma nova ordem ideológica, social
e estética no país. E o meu cinema tem essa posição, como o Oswald de Andrade. Eu
sou oswaldiano. Eu nunca neguei as minhas posições. Então, quando a ditadura apertou,
eu fui embora e o pessoal ficou aqui ganhando dinheiro, fazendo pornochanchada,
filme de publicidade. Engordaram à sombra do paternalismo público. Quando eu voltei,
me sabotaram e eu fui patrulhado pelos meus próprios amigos. De forma que é uma
coisa triste que eu volte ao mercado cinematográfico brasileiro e não vou poder
contar com a presença das mesmas pessoas. De qualquer forma, hoje o meu público,
a minha comunicação é outra. Mas eu lamento que esses cineastas, pessoas de talento,
pessoas de qualidade, tenham tido esse comportamento. Evidentemente, eu guardei
amigos dentro da classe cinematográfica.
MP
| Você estaria aberto a
uma reconciliação com eles?
GR
| Eu exijo a autocrítica
porque eu acho que eles prejudicaram muito o cinema brasileiro. Acho inclusive que
a constante política, que eu chamo de pessedismo, de conciliação, fez com que uma
grande oportunidade, criada pelo ministro Ney Braga, e pelo ministro Reis Veloso
e pelo próprio Ernesto Geisel para fazer uma grande cinematografia no Brasil, fosse
jogada fora. De forma que hoje é um pouco tarde para recuperar, porque o governo
não acredita mais no cinema brasileiro. O cinema brasileiro fracassou. Tivemos grandes
fracassos artísticos, assim como grandes fracassos industriais, e até mesmo de vanguarda.
Não vou citar aqui fracasso de vanguarda porque os vanguardistas são pobres e censurados
e vão dizer que eu estou dedando eles. Mas a verdade é esta. Então, a classe cinematográfica,
nesse episódio, perdeu a importância política. Então, o governo não levou em consideração
a classe cinematográfica porque achou que a classe cinematográfica tinha permitido
uma incúria, uma desordem, um oportunismo tão grande. Então foi um grande erro político.
De forma que eu tive que provocar uma dissidência dentro da tribo, romper publicamente,
pois fizeram uma aliança tática que me pareceu desastrosa para o cinema brasileiro
e para a classe cinematográfica porque hoje só se discute mercado. Como eu disse,
o cineasta brasileiro é ótimo para fazer uma associação e uma assembleia. Mas, para
fazer um take, um plano, um corte, está
ficando ruim. O nosso cinema está ficando decadente. Tem dinheiro, liberdade e mercado
e está piorando do ponto de vista artístico. É preciso que surja uma nova geração.
E o que eu disse de o Di Cavalcanti e a morte tem sentido, pois o cinema brasileiro
não morreu. Apenas um tipo de geração tomou uma posição política que se reflete
na posição estética e que fica uma coisa complicada. Isso não quer dizer que não
sejam bons cineastas.
MP
| Você vê na nova geração
alguma chance de mudança?
GR
| Eu acredito em talentos.
Evidentemente, o Brasil está explodindo agora. Eu acho que tudo que aconteceu no
cinema brasileiro agora, até os diretores mais jovens, do movimento underground,
que hoje são uns senhores de 30, 35 anos, digamos até a geração de Bruno Barreto
que tem 24, 25 anos, tudo isso é cinema novo. Esse negócio de pornochanchada, underground,
cinema de autor, tudo isso é a feijoada do cinema novo. O cinema novo criou tudo
isso. O bom e o ruim. Isso é verdade. Todos querem matar Glauber Rocha. Eles não
me perdoam por ter feito Deus e o diabo na terra do sol aos 23 anos. Isso é uma
loucura. Quer dizer, a gente não pode existir. Então você faz um negócio e a coisa
não cresce. Eu sempre pensei coletivamente em termos de todo o cinema brasileiro
e eles pensaram em me matar. Eu descobri que estava sendo tocaiado, como numa peça
de Shakespeare. Então ficou uma loucura. De forma que eu acho que, evidentemente,
com as aberturas, a emergência da juventude, surgirá uma nova geração de cineastas.
Mas não nos mesmos termos porque a televisão mudou a linguagem do cinema. O tape substituiu o ótico. Eu aliás, gostei
muito porque o Francis Ford Coppola me citou em Cannes, na sua entrevista de imprensa
dizendo que eu tinha razão. Que o tape é que mandava e que a linguagem cinematográfica
era toda reacionária. Inclusive a de Hollywood. Você viu a citação do Coppola?
MP
| Vi, vi…
GR | Me citou nisso. Eu tinha mandado uma carta para ele um mês antes de Apocalypse. Escrevi daqui do Brasil. Nem mandei para ele direto. Mas isso é muito bom porque o Coppola é o dragão do cinema americano. Ele dizendo isso e me dando razão, as pessoas aqui veem que eu não estou maluco. Na verdade, veem que as minhas posições teóricas têm outro tipo de embasamento. O negócio é o seguinte. Ele chegou à conclusão, com Apocalypse now que quem tinha razão era eu quando fiz O leão de sete cabeças e que disse: tem que acabar com esse velho drama e vamos construir um outro. A diferença é que o Godard ficou fazendo documentário, dizendo, eu quero fazer um filme assim e não fez os filmes. Eu fiz isso com o Leão de sete cabeças e com Cabeças cortadas. Aí os franceses não aceitaram e resolveram cortar a minha cabeça. Mas outros grupos me deram força. Houve uma briga violenta dentro de Paris porque Terra em transe foi um dos filmes que mais influenciou o maio francês. Terra em transe, A chinesa e Antes da revolução. Existem várias teses provando isso. Eu digo que meu cinema é mais conhecido na Europa do que aqui. Eu inclusive. Mas, eu sou chamado de maluco em Paris, no Rio, em Roma, em tudo quanto é lugar, entende? Mas, agora, está provado que não sou maluco. Há sete anos eu dizia que o Geisel ira salvar o Brasil, e diziam que eu era maluco. Hoje o Paulo Francis reconhece. Isso para mim é importante porque o Paulo Francis é uma das boas cucas do país. A mesma coisa o Coppola. Quando eu dizia com Leão de sete cabeças e Cabeças cortadas que essa porra tinha acabado e que o caminho do Godard estava errado e que o caminho do Coppola e do Bertolucci estava errado, isto é, fazer a restauração do drama burguês não era o caminho, eles diziam que eu estava maluco. Agora, o Coppola e o Bertolucci, depois que viu o Di Cavalcanti, também fundiu a cuca e achou que eu estava certo. Que o negócio era remover por cima, entende? Quer dizer, na forma. Não é que eu tenha uma posição absolutista. Mas estou dizendo isso para entender que dentro do Brasil é possível vigorar uma teoria artística nova que pode ter influência. Isso não porque eu seja profeta. É apenas porque eu sempre estudei com critério e sempre procurei ver
MP
| Você tinha dito, há algum
tempo, que estava querendo retornar para fora.
GR
| Realmente, eu me desiludi
muito com os rumos que as coisas tomaram na Embrafilme e também por causa do próprio
impasse em que a cultura brasileira chegou à gente e se internacionaliza muito.
De forma que se eu tivesse uma razoável margem de poder, razoável não, um grande
espaço de poder econômico e político para executar o que eu acho que deveria ser
o projeto audiovisual e cultural no Brasil eu realmente enfrentaria a vida no Brasil
como um cineasta independente. Como um autor cinematográfico, apesar das vantagens
excepcionais que a Embrafilme concede aos autores, continua sendo muito frustrante.
Porque, depois de ter feito os filmes que eu fiz, você ainda ter esse negócio de
os negativos de Deus e o diabo e Terra em transe e O dragão estarem em Paris é doloroso, assim como O leão de sete cabeças, claro. Uma coisa
assim entre a empresa e a clandestinidade, entre o sacrifício e a genialidade. Tudo
isso me aborrece muito. Evidentemente, eu posso trabalhar em Hollywood, se eu quiser.
Eu tive realmente propostas concretas e eu desfiz contrato com a United Artists.
Um espaço mundial dos cineastas. O Luiz Carlos Barreto é testemunha disso, assim
como Claude Lelouch. Contrato assinado. Na hora disse, não, não vou fazer. Não faço
filme comercial. Desfiz um filme com Nelson Rodrigues, Vestido de noiva, com cheque
em cima da mesa. Senhora dos afogados, também do Nelson Rodrigues. Isso eu já fiz
várias vezes. Eu assino e na hora não filmo. Eu só fiz os filmes que eu quis fazer.
Eu me conheço. Não adianta. Não gosto de filmar romance, roteiro de outras pessoas.
Não me interessa. É um negócio louco que pinta. Tenho que fazer ali. Agora, então,
o problema é seguinte: se eu conseguir, depois de Idade da terra, se eu tiver condições
de me estabelecer como autor e situação econômica aceitável, tenho realmente o projeto
de filmar o Ciro da Pérsia, por exemplo. Talvez eu possa filmar no Irã porque o
roteiro é um pouco antigo. A censura do Xá proibiu. Mas, agora como o embaixador
do Brasil no Irã me avisou que o novo governo tá querendo meus filmes lá e que o
pessoal lá curte o meu cinema. Países da Ásia e da África gostam muito do meu cinema.
Então, eu tenho uma chance de filmar no Irã. Depois, gostaria de fazer um filme
nos Estados Unidos. Tenho um roteiro para filmar lá. Então, evidentemente, se eu
puder fazer esse filme do Ciro da Pérsia, no Irã, ou esse filme Malok, nos Estados
Unidos que poderia ser o meu próximo filme. O roteiro já está bem adiantado. Tenho
também um roteiro para filmar no Brasil que é o da vida de Jango, do João Goulart,
o romance e o roteiro que estão prontos. Mas acontece que todos os editores do Brasil
se recusaram a editar o livro. Um romance-roteiro. Uma invenção nova que eu fiz
que tem mil páginas. Então não posso pedir à Embrafilme para financiar porque ela
é o Estado e o Estado derrubou o Jango. E eu defendo o Jango. Para defender o Jango
não tenho que falar mal do Castelo Branco. Não se trata disso. O Jango é o cara
que representa uma porrada de coisas. Não vou falar agora porque está no livro.
Então, o único filme que me interessaria fazer é o Jango. Esse está escrito e eu
o farei. E tenho os outros dois projetos que são fora do Brasil. E o do Brasil é
inexequível. As outras coisas não me interessam. O sujeito pode me oferecer a grana
que me oferecer, eu não tenho tempo a perder. Tenho essas três ideias para fazer.
MP
| Você vê alternativa para
uma pessoa como você, que pretende ter uma posição independente, fora do Estado?
GR
| Olhe, vivendo do meu próprio
produto. Porque meus filmes, mal ou bem, dão dinheiro. Os meus filmes não são fracassos
de bilheteria. Eles passam no mundo inteiro. Eu sou proprietário dos meus filmes.
Eu sempre produzi meus filmes, pagando juros nos bancos. Eu sei fazer grandes filmes
com pouco orçamento e em pouco tempo. Eu conheço uma transa do cinema. Então, eu
agora faço televisão, filmo muito rápido, sou um documentarista muito bom, você
entende? Tenho pretensões de ser escritor, mas sei que sou melhor cineasta do que
escritor. Eu fico às vezes surpreendido com a minha inventiva cinematográfica e
escrevo com dificuldade. Eu escrevo, reviso. Eu, para publicar um texto, me torturo.
Mas filmo com grande rapidez. Quer dizer: eu, na verdade, queria ser um romancista
e virei cineasta. Tenho muita intimidade com a câmera, decupagem, invento com rapidez
a cena. As imagens aparecem como num sonho. Pulam na frente quando estou filmando.
Monto de uma forma muito moderna. Então isso é um negócio engraçado. Eu posso filmar
qualquer coisa. Mas, me recuso a fazer filme de publicidade. Porque eu acho que
o cinema é uma religião. Eu não aplico aquilo em outra coisa. Então, quando eu estou
precisando de dinheiro, eu trabalho como repórter, eu faço televisão, como agora.
Mas, meus filmes rendem. Como eles se pagaram e como eu posso fazer esses filmes
com pouco dinheiro e como eu tenho um mercado no mundo que consome mais ou menos
esses filmes, dá para eu ir vivendo. Porque o Cabeças cortadas custou 100 mil dólares. O Leão custou 100 mil dólares. O filme mais caro que eu fiz é o Idade da terra que custou 500 mil dólares.
O filme do Coppola, o Apocalypse, levou
três anos fazendo e custou 30 milhões de dólares. Este aqui levou um ano e meio
e custou 500 mil. Um filme com quatro horas de duração. Quer dizer, 500 mil dólares
não é nada. Mas, eu faço. Esses outros projetos já demandam mais dinheiro. E eu
não quero solicitar nada da Embrafilme, além das medidas normais da Embrafilme.
E é muito mais fácil convencer a um empresário americano ou europeu num grande projeto
do que a um empresário brasileiro. Porque poucos são os empresários brasileiros
que entendem o audiovisual. O cara quer faturar o negócio. Então, apesar de gostar
do Brasil, de ter pretensões políticas aqui no Brasil, e a política é um negócio
que me seduz também, mas eu acho que o meu negócio é ficar fazendo cinema e tentar
fazer uma carreira muito mais internacional, fiel ao Brasil. Tentando, a qualquer
momento, arregaçar as mangas pelo cinema brasileiro, disposto a me reconciliar com
os cineastas, mas numa base muito séria, porque o clima de frivolidade intelectual
do Rio de Janeiro me desagrada muito. Eu sou baiano, nordestino. Sou homem de palavra.
Chego na hora. De forma que a gente se vê estimulado por outras coisas. Se eu não
conseguir o dinheiro para começar a fazer o Jango já, saindo do Brasil, não voltarei
antes de dois anos porque eu vou fazer o Malok
e o Ciro da Pérsia. Porque os dois filmes estão dentro da minha cabeça. O Idade da terra gerou o Malok e o Ciro da Pérsia estava escrito antes
da Idade da terra, porque eu escrevi o
roteiro para a rádio-televisão italiana, seis horas. A mesma produtora que produziu
o Zeffirelli, o Cristo e outros filmes. Mas eu não pude filmar porque o Xá da Pérsia
proibiu. Agora tem essa chance. Então é isso aí.
NOTA
Entrevista originalmente
publicada na revista Alceu - v.7 - n.13
- julho/dezembro, 2006.
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UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 199 | dezembro de 2021
Artista convidada: Ithell Colquhoun (Índia, 1906-1988)
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