terça-feira, 24 de janeiro de 2023

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | Seis poemas de Sandro Penna

 


Sandro Satta Penna (Peruggia, 1906-Roma, 1977) foi um menino doentio -padecia de bronquite crônica- e retraído. Sua mãe abandona a família quando o pai, Armando, volta da guerra sifilítico. Em 1925, Penna forma-se em contabilidade no Instituto Técnico de Peruggia. Em 1929, depois de trabalhar como balconista em uma livraria de Milão, muda-se para Roma, onde viverá o resto da vida. Sua condição econômica será instável e nunca conservará um emprego regular. A tal ponto que em seus últimos anos um grupo de intelectuais promove uma campanha de arrecadação de fundos no jornal Paese Sera para socorrê-lo. Apesar das adversidades, sua poesia transmite um prazer de viver inabalável.

É através do poeta triestino Umberto Saba que Penna tem seus primeiros poemas publicados enquanto trabalhava como balconista no comércio em Roma, por volta de 1930. A partir de então, passa a contribuir para revistas como Letteratura, Il Frontespizio e Corrente escrevendo quase exclusivamente poesia.

Suas influências transparecem pouco em seu estilo. Se por um lado manteve-se ao largo do hermetismo, a crítica aponta a presença de autores crepusculares do início do século xx, como Gozzano, Corazzini e Palazzeschi, muito provavelmente pela relação com a cultura clássica. A forma, a limpidez do verso e a extrema a concisão característicos de Penna não evitam que a sua oralidade tenha um tom furtivo quase como que sussurrado para si mesmo enquanto contempla o que lhe fascina. A primeira leitura de um poema seu dá a impressão de quase nada, não mais que uma descrição plana de algo banal. Porém, dali surge também uma liga que o seguinte repasse de olhos capta de imediato: a sutileza inimitável da sua sensibilidade.

 

L’aria di primavera

invade la città.

Ai fanciulli la sera

cresce un poco l’età.

 

O ar da primavera

invade a cidade

Aos meninos a tarde

amadurece a idade

 

Recai no estereótipo a reiterada associação com Wilde, Rimbaud ou Crevel. Se fosse para estabelecer paralelos, a visão melancólica do homossexualismo, a marginalidade dos encontros e a solidão desconsolada o remetem antes ao outro sátiro essencial, Konstantinos Kaváfis. Com o reparo de que a afinidade entre ambos é a moderação e a elegância expressiva. Mesmo a sensualidade, em Kaváfis é mais nostálgica. O hedonismo de Penna lida com o tempo presente e, em função disso, é menos idealizado.

 

Basta all’amore degli adolescenti

sentirsi possedere

dal sole entro la sabbia calda immoti.

 

Tutto è così. Non viene un forte vento

a rovesciare la calma accecante.

 

La sera, all’ombra della cattedrale,

con gridi e gridi giocano i fanciulli.

 

Ma nel silenzio è inutile la voce

anche delle campane.

 

Basta o amor dos adolescentes

sentir-se possuir

pelo sol na areia ardente imóveis

 

Tudo é assim. Não vem um forte vento

revirar a calma ofuscante

 

Na tarde, à sombra da catedral

com gritos e gritos brincam as crianças

 

Mas no silêncio é inútil mesmo

a voz dos sinos

 


Tal poesia não revela seus modelos senão por compatibilidade. Seja com a típica dicção danunzziana de um verso como Nel cuore è quasi un urlo / di gioia. E tutto è calmo. (No coração há quase um urro / de alegria. E tudo está em calma). Ou no uso da alma infantil como mote da arte poética escrita por Pascoli em Il Fanciullino.

 

Olha para todas as coisas com espanto e admiração, não compreende as relações lógicas de causa e efeito, mas sente.

Preenche cada objeto com sua imaginação e memórias (subjetivação), transformando-o em símbolo.

Possui uma sensibilidade especial, que lhe permite dar aos objetos mais comuns significados adicionais e misteriosos.

Comunica verdades latentes aos homens: ele é “Adão”, que nomeia tudo o que vê e ouve (conforme o seu modo de sentir pessoal, mas que tem significado universal).

Deve saber combinar o talento da infância (saber ver), com o da velhice (saber dizer).

Percebe a essência das coisas e não sua aparência fenomenal.

 

De acordo com Pasolini

 

a poesia de Penna é feita de um material extremamente delicado de lugares da cidade, com asfalto e grama, paredes caiadas de casas pobres, mármores brancos das pontes, e por toda parte o sopro do mar, o murmúrio do rio em que as luzes noturnas trêmulas refletem.

 

O poeta que Penna se torna, escreve do vivido, prefere usar termos coloquiais e ocupar um cenário realista. A narrativa – onde algo acontece ou está para acontecer – varia de atmosfera, mas traz sempre à situação concreta uma tensão interna e subjetiva. Por epigramaticos que sejam os seus dísticos ou os seus quartetos, a impressão é de que neles sobra espaço, que neles tudo cabe.

 

Era l’alba sugli umidi colli

e la luna danzava ancora assorta

colle lepri del sogno. La lattaia

discendeva il suo colle. Ognuno amava

la propria casa come una scoperta.

 

Amanhecia nas colinas orvalhadas

e a lua dançava ainda absorta

com as lebres do sonho. A leiteira

descia a sua colina. Cada um amava

sua casa como uma descoberta

 


Em um tempo em que Montale inova com a sua transfigurada concisão e Ungaretti com a fragmentação radical da estrofe, Penna ignora o vanguardismo e reduz deliberadamente seus meios expressivos a uma simplicidade tal que lhe permite rimar amor com dor (também amore / cuore) ou utilizar as expressões em seus significados mais elementares como, por exemplo, chamar de “brilhantes” os olhos de um jovem. A voz baixa submetida a um controle da forma e ao uso de termos primários instiga a imaginação do leitor. O conduz pela cena sem que a surpresa da metáfora rapte sua atenção e a desvie para o virtuosismo do poeta. A ânsia sufocada é o que conta.

 

CIMITERO DI CAMPAGNA

 

Fra la gioia dei grilli

oscure fiaccole.

E in alto le stelle.

 

Al giovane cuore

la riposata ridda

delle solari

gesta del giorno.

 

Ma un’ansia i ridenti occhi

già turba

al fanciullo venuto

per gioia con me.

 

CEMITÉRIO CAMPESTRE

 

Entre a alegria dos grilos

escuros círios

E no alto as estrelas

 

Ao jovem coração

a vagarosa vertigem

dos solares

feitos do dia

 

Mas uma ânsia já perturba

os olhos risonhos

do menino vindo

por alegria comigo

 

Como Kaváfis, Penna sabe que a transgressão com que aborda o erotismo é potencializada pelo uso de uma linguagem convencional. Mas o que destaca esta poesia é a sua capacidade em transcender o próprio realismo através do choque lírico.

 

Se la notte d’estate cede un poco

su la riva del mare sorgeranno

– nati in silenzio come i suoi colori –

uomini nudi e leggeri che vanno.

 

Ma come il vento muove il mare, muovono

anche, gridando, gli uomini le barche.

 

Sorge sull’ultimo sudore il sole.

 

Se a noite de verão ceder um pouco

da orla do mar surgirão

– em silêncio como as suas cores –

homens leves e nus que vão

 

E como o vento move o mar, os homens

também movem, aos gritos, seus barcos

 

Sobre o último suor o sol surge

 


Frequentemente acusado de alienação pela esquerda e de depravação pelos intelectuais conservadores, Sandro Penna manteve-se afastado da esfera pública do tempo em que viveu. Cultivou a indiferença e se rejeitou o convívio em sociedade foi por não deixar de olhar o mundo com o distanciamento pascoliano. Esse encanto paradoxal em que a descrição objetiva de um submundo cotidiano é sublimado pela intensidade do desejo. Assim, os parques noturnos, as praias vazias, os bares, os ginásios e os trens lotados, os mictórios públicos, os cinemas de bairro, os terrenos baldios de antes e de depois da Segunda Guerra na Itália, de Milão a Ancona, de Roma a Perúgia, surgem tomados por um ar de sonho proibido, de urgência reprimida e de não pertencimento. O ar de um exílio nômade e anônimo.

 

Se son malato vago tra la folla

del sobborgo. Ma l’umido grigiore

invernale mi rende triste e solo.

A soffi sale sulla via un afrore

caldo da una palestra sotterranea

ove giovani e nude belve assalgono

nemici immaginari, in basso a scatti soffiando.

Un vecchio mendicante guarda,

con me, la scena senza nostalgie.

 

Se adoeço vago entre as pessoas

do subúrbio. Mas o cinza úmido

invernal me entristece, solitário

Aos bafos sobe a rua um ranço

quente de um ginásio subterrâneo

onde jovens e feras nuas submetem

rivais imaginários, de baixo em lufadas arfando

Um velho mendigo observa,

comigo, a cena sem nostalgia

 

Publicou Poesie, em 1939 e sua edição ampliada em 1957. Mais tarde, em 1970, Garzanti reúne em Milão Tutte le Poesie. É o típico caso em que a fortuna crítica nunca esteve à altura do mérito da obra, como ocorre com aqueles cuja lírica resiste à análise por sua aparente simplicidade alcançar inteiramente o que se propõe.

À já mencionada falta de referências literárias, Penna oferece a si próprio, repetindo rimas e aproximações linguísticas em poemas diferentes. Recurso que, como muito, dá margem para óbvias interpretações sobre sua natureza narcisista. Uma poética, portanto, sem evolução interna, cuja origem se perde no universo clássico e não avança a lugar algum, a-histórica inclusive em relação a si mesma. A falta de mobilidade e a limpidez formal esvaziam qualquer ensaio. Ou muito pelo contrário.

 

 


THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).

 


LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.




Agulha Revista de Cultura

Número 222 | janeiro de 2023

Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


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