É através do poeta triestino
Umberto Saba que Penna tem seus primeiros poemas publicados enquanto trabalhava
como balconista no comércio em Roma, por volta de 1930. A partir de então, passa
a contribuir para revistas como Letteratura, Il Frontespizio e Corrente escrevendo
quase exclusivamente poesia.
Suas influências transparecem
pouco em seu estilo. Se por um lado manteve-se ao largo do hermetismo, a crítica
aponta a presença de autores crepusculares do início do século xx, como Gozzano,
Corazzini e Palazzeschi, muito provavelmente pela relação com a cultura clássica.
A forma, a limpidez do verso e a extrema a concisão característicos de Penna não
evitam que a sua oralidade tenha um tom furtivo quase como que sussurrado para si
mesmo enquanto contempla o que lhe fascina. A primeira leitura de um poema seu dá
a impressão de quase nada, não mais que uma descrição plana de algo banal. Porém,
dali surge também uma liga que o seguinte repasse de olhos capta de imediato: a
sutileza inimitável da sua sensibilidade.
L’aria di primavera
invade la città.
Ai fanciulli
la sera
cresce un poco
l’età.
O ar da primavera
invade a cidade
Aos meninos a tarde
amadurece a idade
Recai
no estereótipo a reiterada associação com Wilde, Rimbaud ou Crevel. Se fosse para
estabelecer paralelos, a visão melancólica do homossexualismo, a marginalidade dos
encontros e a solidão desconsolada o remetem antes ao outro sátiro essencial, Konstantinos
Kaváfis. Com o reparo de que a afinidade entre ambos é a moderação e a elegância
expressiva. Mesmo a sensualidade, em Kaváfis é mais nostálgica. O hedonismo de Penna
lida com o tempo presente e, em função disso, é menos idealizado.
Basta all’amore degli adolescenti
sentirsi possedere
dal sole entro la sabbia calda immoti.
Tutto è così. Non viene un forte vento
a rovesciare la calma accecante.
La sera, all’ombra della cattedrale,
con gridi e gridi giocano i fanciulli.
Ma nel silenzio è inutile la voce
anche
delle campane.
Basta o amor dos adolescentes
sentir-se possuir
pelo sol na areia ardente imóveis
Tudo é assim. Não vem um forte vento
revirar a calma ofuscante
Na tarde, à sombra da catedral
com gritos e gritos brincam as crianças
Mas no silêncio é inútil mesmo
a voz dos sinos
Olha para todas as coisas com espanto e admiração,
não compreende as relações lógicas de causa e efeito, mas sente.
Preenche cada objeto com sua
imaginação e memórias (subjetivação), transformando-o em símbolo.
Possui uma sensibilidade especial,
que lhe permite dar aos objetos mais comuns significados adicionais e misteriosos.
Comunica verdades latentes aos
homens: ele é “Adão”, que nomeia tudo o que vê e ouve (conforme o seu modo de sentir
pessoal, mas que tem significado universal).
Deve saber combinar o talento
da infância (saber ver), com o da velhice (saber dizer).
Percebe a essência das coisas
e não sua aparência fenomenal.
De acordo com Pasolini
a poesia de Penna é feita de um material extremamente
delicado de lugares da cidade, com asfalto e grama, paredes caiadas de casas pobres,
mármores brancos das pontes, e por toda parte o sopro do mar, o murmúrio do rio
em que as luzes noturnas trêmulas refletem.
O
poeta que Penna se torna, escreve do vivido, prefere usar termos coloquiais e ocupar
um cenário realista. A narrativa – onde algo acontece ou está para acontecer – varia
de atmosfera, mas traz sempre à situação concreta uma tensão interna e subjetiva.
Por epigramaticos que sejam os seus dísticos ou os seus quartetos, a impressão é
de que neles sobra espaço, que neles tudo cabe.
Era l’alba sugli umidi colli
e la luna danzava ancora assorta
colle lepri del sogno. La lattaia
discendeva il suo colle. Ognuno amava
la propria casa come una scoperta.
Amanhecia nas colinas orvalhadas
e a lua dançava ainda absorta
com as lebres do sonho. A leiteira
descia a sua colina. Cada um amava
sua casa como uma descoberta
Em
um tempo em que Montale inova com a sua transfigurada concisão e Ungaretti com a
fragmentação radical da estrofe, Penna ignora o vanguardismo e reduz deliberadamente
seus meios expressivos a uma simplicidade tal que lhe permite rimar amor com dor
(também amore / cuore) ou utilizar as expressões em seus significados mais elementares
como, por exemplo, chamar de “brilhantes” os olhos de um jovem. A voz baixa submetida
a um controle da forma e ao uso de termos primários instiga a imaginação do leitor.
O conduz pela cena sem que a surpresa da metáfora rapte sua atenção e a desvie para
o virtuosismo do poeta. A ânsia sufocada é o que conta.
CIMITERO DI CAMPAGNA
Fra la gioia dei grilli
oscure fiaccole.
E in alto le stelle.
Al giovane cuore
la riposata ridda
delle solari
gesta del giorno.
Ma un’ansia i ridenti occhi
già turba
al fanciullo venuto
per gioia con me.
CEMITÉRIO CAMPESTRE
Entre a alegria
dos grilos
escuros círios
E no alto as
estrelas
Ao jovem coração
a vagarosa
vertigem
dos solares
feitos do dia
Mas uma ânsia
já perturba
os olhos risonhos
do menino vindo
por alegria
comigo
Como
Kaváfis, Penna sabe que a transgressão com que aborda o erotismo é potencializada
pelo uso de uma linguagem convencional. Mas o que destaca esta poesia é a sua capacidade
em transcender o próprio realismo através do choque lírico.
Se la notte d’estate cede un poco
su la riva del mare sorgeranno
– nati in silenzio come i suoi colori –
uomini nudi e leggeri che vanno.
Ma come il vento muove il mare, muovono
anche, gridando, gli uomini le barche.
Sorge sull’ultimo sudore il sole.
Se a noite
de verão ceder um pouco
da orla do
mar surgirão
– em silêncio
como as suas cores –
homens leves
e nus que vão
E como o vento
move o mar, os homens
também movem,
aos gritos, seus barcos
Sobre o último
suor o sol surge
Frequentemente
acusado de alienação pela esquerda e de depravação pelos intelectuais conservadores,
Sandro Penna manteve-se afastado da esfera pública do tempo em que viveu. Cultivou
a indiferença e se rejeitou o convívio em sociedade foi por não deixar de olhar
o mundo com o distanciamento pascoliano. Esse encanto paradoxal em que a descrição
objetiva de um submundo cotidiano é sublimado pela intensidade do desejo. Assim,
os parques noturnos, as praias vazias, os bares, os ginásios e os trens lotados,
os mictórios públicos, os cinemas de bairro, os terrenos baldios de antes e de depois
da Segunda Guerra na Itália, de Milão a Ancona, de Roma a Perúgia, surgem tomados
por um ar de sonho proibido, de urgência reprimida e de não pertencimento. O ar
de um exílio nômade e anônimo.
Se son malato vago tra
la folla
del sobborgo. Ma l’umido grigiore
invernale mi rende triste e solo.
A soffi sale sulla via un afrore
caldo da una palestra sotterranea
ove giovani e nude belve assalgono
nemici immaginari, in basso a scatti soffiando.
Un vecchio mendicante guarda,
con me, la scena senza nostalgie.
Se adoeço vago
entre as pessoas
do subúrbio.
Mas o cinza úmido
invernal me
entristece, solitário
Aos bafos sobe
a rua um ranço
quente de um
ginásio subterrâneo
onde jovens
e feras nuas submetem
rivais imaginários,
de baixo em lufadas arfando
Um velho mendigo
observa,
comigo, a cena
sem nostalgia
Publicou
Poesie, em 1939 e sua edição ampliada em 1957. Mais tarde, em 1970, Garzanti reúne
em Milão Tutte le Poesie. É o típico caso em que a fortuna crítica nunca esteve
à altura do mérito da obra, como ocorre com aqueles cuja lírica resiste à análise
por sua aparente simplicidade alcançar inteiramente o que se propõe.
À já mencionada falta de referências
literárias, Penna oferece a si próprio, repetindo rimas e aproximações linguísticas
em poemas diferentes. Recurso que, como muito, dá margem para óbvias interpretações
sobre sua natureza narcisista. Uma poética, portanto, sem evolução interna, cuja
origem se perde no universo clássico e não avança a lugar algum, a-histórica inclusive
em relação a si mesma. A falta de mobilidade e a limpidez formal esvaziam qualquer
ensaio. Ou muito pelo contrário.
THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).
LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.
Agulha Revista de Cultura
Número 222 | janeiro de 2023
Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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