terça-feira, 24 de janeiro de 2023

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | René Char, alquimia e poesia

 


René Émile Rouget Char (Isle-sur-la-Sorgue, 1907-Paris, 1988) foi o caçula dos quatro filhos de Émile Char com Marie-Therese Rouget. Émile foi prefeito de Isle-sur-la-Sorgue e diretor da sociedade de estucadores de Vaucluse. René passou a infância em Névons, na grande casa de família cuja construção dentro de um parque centenário foi concluída pelo avô paterno no ano do seu nascimento.

Com a morte do pai em 1918, os Char passam por dificuldades financeiras. Em 21, René liga-se ao cantoneiro Louis Curel, admirador da Comuna de Paris e membro do PCF, e aos pescadores, vagabundos e armeiros de Sorgue, mais tarde chamados em diversos poemas de Les transparents.

Char mede quase dois metros de altura, pratica rúgbi e possui temperamento impulsivo. Em 23, abandona o liceu Mistral d’Avignon, onde era interno desde os onze anos, depois que um de seus professores ridiculariza seus primeiros versos. Viaja à Tunísia, onde os Char são proprietários de uma pequena usina de fabricação de gesso. Na volta, acompanha sem interesse o curso da École Supérieure de Commerce de Marseille. Lê Rimbaud, Mallarmé, Lautréamont e, possivelmente, os primeiros poemas de Éluard. Trabalha em uma transportadora de frutas e verduras em Cavaillon quando é convocado a prestar serviço militar na artilharia de Nîmes.

No verão de 1929, envia a Paul Éluard um dos vinte e seis exemplares do livro de poemas Arsenal impressos às expensas do antigo chefe, o proprietário da transportadora. Éluard o visita no outono e passa três semanas em Isle-sur-la-Sorgue.

No início do inverno, Char está em Paris morando na casa de Éluard e entra no grupo surrealista justo quando Desnos, Prévert e Queneau se desligam do movimento. Durante cinco dias em Avignon, Char e Éluard escrevem a seis mãos com Breton os trinta poemas de Ralentir Travaux (Devagar, Obras), título retirado de um sinal de trânsito. Sem a marcação anotada a lápis em um exemplar por Éluard, não seria possível discriminar o autor de cada verso. No poema que segue é fácil constatar como a escritura automática surrealista modula a voz de cada poeta em um mesmo diapasão bretoniano.

Como Éluard e Char superam a estética do movimento é assunto bem mais interessante que os versos de L’ecole buissonnière.

 

L’ECOLE BUISSONNIERE

 

C      On entrait par une porte dérobée

B      Il y avait un cœur sur le tableau noir

        Et un baguette de coudrier sur la table

        On aurait entendu un pas de loup

 

E      L’amour le premier enseignait

        Aux amants à bien se tenir

C      Les pierres suivaient leur ombre douce-amère

E      L’œil ne desserrait pas on étreinte

 

B      Et si elle me demande ma vie

        Questionnait-il

     Aussitôt la lumière ne faisait qu’un bond comme les racines

E      Tendait des pièges de rosée


        Ta chevelure questionnait-il

        Et le silence était conquis

 

GAZEAR A ESCOLA

 

Nós entramos pela porta traseira

Havia um coração no quadro-negro

e uma vara de condão sobre a mesa

Teríamos ouvido os passos do lobo

 

O primeiro amor ensinava

boas maneiras aos amantes

As pedras seguiam sua sombra agridoce

O olho não soltou o nosso abraço

 

E se ela pedir minha vida

Ele perguntou

De imediato a luz saltou como as raízes

armando as armadilhas de orvalho

 

Tua cabeleira ele perguntou

E o silêncio foi conquistado

 


O início dos anos 30 é de fanático ativismo. Funda com Éluard, Breton e Aragon a revista Le Surréalisme au Service de la Révolution. Estuda os pré-socráticos, explora Paracelso, Fulcanelli e os grandes alquimistas. Publica uma segunda edição revisada de Arsenal e é ferido por uma facada na virilha durante a intervenção dos surrealistas no bar Maldoror. Os surrealistas invadem a Exposition Coloniale de 1931 exigindo a evacuação imediata das colônias e a realização de um julgamento dos crimes cometidos pela França nos países ocupados.

No final de novembro, Artine com uma gravura de Dalí é publicada por José Corti para as Éditions Surréalistes. Char e Corti colaborariam em diversos projetos. Em 34, diante da recusa da Gallimard, editaram juntos os 500 exemplares de Le Marteau sans Maître. A edição, ilustrada por uma gravura de Kandinsky, foi custeada por Éluard. Os poemas desse livro central para o período contrapõem o caos metropolitano parisino ao idílio de Isle-sur-la-Sorgue. Já aqui sua fidelidade à natureza não regride ao folclore. Ao contrário, Char reinventa seu universo agrário natal através de um tratamento aforismático heraclitiano regido pelo tempo cósmico das estações.

 

LE TERME EPARS

 

Qui convertit l’aiguillon en fleur arrondit l’éclair.

 

Petite pluie réjouit le feuillage et passe sans se nommer. Nous pourrions être des chiens commandés par des serpents, ou taire ce que nous sommes.

 

L’arbre de plein vent est solitaire. L’étreinte du vent l’est plus encore

 

A PALAVRA DISPERSA (excertos)

 

Quem converte o ferrão em flor arredonda o relâmpago

 

Chuva mansa alegra a folhagem e passa sem ser nomeada. Podemos ser cães governados por serpentes, ou ficar calados sobre o que somos.

 

A árvore ao vento é solitária. O abraço do vento é ainda mais.

 

Como todo poeta, Char absorve o mundo, o filtra em seu silêncio interior e traduz o processo através da linguagem. A diferença entre ele e os demais está em que seu objeto não é a realidade, nem o que ela lhe provoca, mas o processo de depuração. Já aqui deixa de buscar a intervenção na sociedade, no sentido surrealista do termo, para desenvolver uma visão de mundo integrado ao seu próprio panteísmo provençal.

Em dezembro de 1934, rompe com os surrealistas. Em uma carta dirigida a Antonin Artaud escreve:

 

O surrealismo morreu do sectarismo imbecil de seus seguidores

 

Em outra carta, esta aberta, endereçada a Benjamin Péret, escreve:

 

Recuperei a minha liberdade sem, no entanto, sentir necessidade de cuspir no que durante cinco anos representou tudo para mim.

 

Char se mantém próximo apenas de Éluard. Deixa Paris em 1936, nomeado delegado dos estucadores de Vaucluse, função que manterá até 37, quando adoece com septicemia. Durante o período de convalescença, mergulha em D’Alembert, D’Holbach e Helvétius na biblioteca das irmãs Roze. Éluard e Man Ray vão a Isle para a preparação de Dépendance de l’adieu, com desenhos de Picasso, publicado por Guy Lévis Mano, com uma tiragem de 70 exemplares. Em fevereiro de 38, Char oferece a Christian Zervos seus primeiros escritos sobre pintores: Corot e Courbet.

Em setembro é mobilizado em Paris e em janeiro de 1939 está em Nîmes, arrolado como soldado raso. Com a invasão, Char se esconde da polícia de Vichy entre Céreste, Cabrières e Gordes em Vaucluse. Em 1942, entra para a resistência liderando a seção de pouso e paraquedismo nos Baixos Alpes. Seu codinome é Hypnos. Durante esse período, mantém um diário publicado depois da guerra sob o título Feuillets d’Hypnos. Está dedicado a Albert Camus e integra Fureur et Mystère 1937-1948. No final do conflito, Char recebe a Medalha da Resistência, a Cruz da Guerra e é nomeado para a Legião de Honra.

Para Paul Veyne, as anotações de Feuillets d’Hypnos

 

são calculadas para restaurar a imagem de uma certa atividade, de uma certa concepção da Resistência e de um certo indivíduo com sua multiplicidade interna, suas alternâncias e também a sua diferenciação, que ele está menos disposto do que nunca a esquecer. O formato fragmentado do livro reflete a rejeição de René à retórica, transições, introduções e explicações que são o tecido de qualquer corpo narrativo. Restam apenas as partes vivas, separadas, o que dá aos Feuillets um falso ar de coleção de aforismos ou de diário privado, enquanto a composição geral e as anotações são muito calculadas. O conjunto perfaz uma das menos convencionais e mais profundas imagens do que foi a resistência europeia ao nazismo.

 

A edição original traz 237 notas de comprimento desigual, como os Pensées de Pascal e termina com o seguinte poema não numerado:

 

LA ROSE DE CHENE

 

Chacune des lettres qui compose ton nom,

ô Beauté, au tableau d’honneur des supplices,

épouse la plane simplicité du soleil, s’inscrit

dans la phrase géante qui barre le ciel, et s’associe

à l’homme acharné à tromper son destin

avec son contraire indomptable: l’espérance.

 

A ROSA DE CARVALHO

 

Cada uma das letras que formam teu nome

Ó beleza, no quadro de honra dos suplícios

desposa com a plana simplicidade do sol, se inscreve

na frase gigante que bloqueia o céu, e se associa

ao homem determinado a enganar seu destino

com seu oposto indomável: a esperança

 


O poema A la Santé du Serpent, escrito em 1947, é outro breviário aforismático incluído em Fureur et Mystère. A serpente é apenas uma amostra do tratamento dado por Char ao seu bestiário: L’approche de l’invisible serpent (a aproximação de uma serpente invisível), une rivière pleine d’anneaux de couleuvres (um rio cheio de anéis de cobras), à la gueule du serpent qui souriait (na boca sorridente da serpente) e le vipèreau restera froid jusqu’à la mort nombreuse, car, n’étant d’aucune paroisse, il est meurtrier devant toutes (a víbora permanecerá fria até a morte numerosa porque, ao não pertencer à paróquia alguma, é assassina perante todas). É também um dos seus “quatro fascinantes”. Porém, neste caso, antes que ao réptil, o título sibilante remete ao símbolo do pecado original e às alusões ao Gênesis encontradas no poema.

 

A LA SANTE DU SERPENT

 

I

Je chante la chaleur à visage de nouveau-né, la chaleur désespéré.

 

III

Celui qui se fie au tournesol ne méditera pas dans la maison. Toutes les pensées de l’amour deviendront ses pensées.

 

IV

Dans la boucle de l’hirondelle un orage s’informe, un jardin se construit.

 

V

Il y aura toujours une goutte d’eau pour durer plus que le soleil sans que l’ascendant du soleil soit ébranlé.

 

X

Tu es dans ton essence constamment poète, constamment au zénith de ton amour, constamment avide de vérité et de justice. C’est sans doute un mal nécessaire que tu ne puisses l’être assidûment dans ta conscience.

 

XI

Tu feras de l’âme qui n’existe pas un homme meilleur qu’elle.

 

XVII

Mon amour, peu importe que je sois né : tu deviens visible à la place où je disparais.

 

XIX

Ce qui t’accueille à travers le plaisir n’est que la gratitude mercenaire du souvenir. La présence que tu as choisie ne délivre pas d’adieu.

 

XXIV

Si nous habitons un éclair, il est le cœur de l’éternel.

 

XXVI

La poésie est de toutes les eaux claires celle qui s’attarde le moins au reflet de ses ponts. Poésie, vie future à l’intérieur de l’homme requalifié.

 

A SAUDE DA SERPENTE (excertos)

 

I

Eu canto o calor com rosto de recém-nascido, o calor desesperado.

 

III

Quem confia no girassol não meditará em casa. Todos os pensamentos do amor serão seus pensamentos.

 

IV

No giro da andorinha uma tormenta se forma, um jardim se constrói.

 

V

Haverá sempre uma gota d’água durando mais do que o sol sem que o ascendente do sol estremeça.

 

X

És sempre poeta em tua essência, sempre no zênite do teu amor, sempre ávido de verdade e justiça. Sem dúvida é um mal necessário que não o sejas sempre em tua consciência.

 

XI

Tu farás da alma que não existe, um homem melhor que ela.

 

XVII

Meu amor, pouco importa que eu tenha nascido, tu te tornas visível no lugar em que desapareço.

 

XIX

O que te acolhe através do prazer não é mais que a gratidão mercenária da recordação. A presença que escolheste não diz adeus.

 

XXIV

Se habitamos o relâmpago, habitamos o coração do eterno.

 

XXVI

A poesia é, de todas as águas claras, a que menos tarda nos reflexos das suas pontes. Poesia, vida futura no interior do homem requalificado.

 

Em muitas passagens de Fureur et Mystère, Char revisita sua Sorgue natal com o estado de espírito da clandestinidade e da resistência. Não se deve passar por alto que este poeta escreve entocado entre incursões para recolher paraquedistas, executar colaboradores, ou defender Céreste de ataques nazistas. Conciliar guerrilha e poesia nessas circunstâncias requer um grau de comprometimento e uma integridade difíceis de estimar. Seu lirismo está impregnado de revolta e de ação. No nostálgico poema dedicado ao cantoneiro Curel, Char funde elementos paratáticos dos reinos vegetal, animal, mineral e humano para alcançar uma unidade poética ao mesmo tempo desassociada e amalgamada pela combinação das suas analogias.

 

LOUIS CUREL DE LA SORGUE

 

Sorgues qui t’avances derrière un rideau de papillons qui pétillent, ta faucille de doyen loyal à la main, la crémaillère du supplice en collier à ton cou, pour accomplir ta journée d’homme, quand pourrai-je m’éveiller et me sentir heureux au rythme modelé de ton seigle irréprochable? Le sang et la peur ont engagé leur combat qui se poursuivra jusqu’au soir, jusqu’à ton retour, solitude aux marges de plus en plus grandes. L’arme de tes maîtres, horloge des marées, achève de pourrir. La création a risée se dissocient. L’air-roi s’annonce.

Sorgue, tes épaules comme un livre ouvert propagent leur lecture. Tu as été, enfant, le fiancé de cette fleur au chemin tracé dans le rocher qui s’évadait par un frelon… Courbé, tu observes aujourd’hui l’agonie du persécuteur qui arracha à l’aimant de la terre la cruauté d’innombrables fourmis pour la jeter en millions de meurtriers contre les tiens et contre ton espoir. Écrase donc encore une fois cet œuf cancéreux qui résiste…

Il y a un homme à présent debout, un homme dans un champ de seigle, un champ pareil à un choeur mitraillé, un champ sauvé.

 

LOUIS CUREL DE LA SORGUE

 

Sorgue que avanças atrás de uma cortina de borboletas cintilantes, com tua foice de reitor leal na mão, a cremalheira do suplício é um colar em teu pescoço para cumprir com tua jornada de homem. Quando poderei despertar e sentir a felicidade modelada por teu centeio impecável? O sangue e o medo começaram sua luta que continuará até a noite, até seu retorno, solidão com margens cada vez maiores. A arma dos teus mestres, relógio das marés, prestes a apodrecer. A criação e o riso se dissociam. O ar-rei se anuncia.

Sorgue, teus ombros como um livro aberto propagam sua leitura. Foste, filho, o noivo desta flor de caminho traçado na rocha, que evadia por um zangão… Curvado, observas hoje a agonia do perseguidor que arrancou do ímã da terra a crueldade de inumeráveis formigas para arremessá-la em milhões de assassinos contra os teus e a tua esperança. Esmaga então, uma vez mais, este ovo canceroso que resiste.

Há um homem de pé agora, um homem em um campo de centeio, um campo como um campo metralhado, um campo salvo.

 

O estranhamento é provocado pelo tipo de equação poética. Em parte, a originalidade estilística de René Char nasce da falta de identificação do comparado ou do motivo da comparação. As metáforas, símiles, analogias e comparações avançam sem associações imediatas. O sentido surge da compatibilidade entre os termos sem pares em um todo fragmentado, mas, como já foi dito, alquimicamente coeso.

Depois da sua militância de juventude e das experiências em combate, Char se reclui e deixa de participar de manifestações públicas, exceção feita apenas aos protestos contra a instalação de mísseis nucleares no planalto de Albion. Nas décadas de 1950 e 1960, passa por algumas experiências teatrais e cinematográficas malsucedidas. Publicou mais de 30 volumes de poesia, crítica e peças cênicas. Seu estilo nunca deixou de ser cifrado e o mistério sempre foi parte central da sua mensagem. Diz Char:

 

No poema cada palavra deve ser empregada quase em seu sentido original. Algumas palavras, quando separadas, tornam-se plurivalentes. E existem aquelas amnésicas. […]

O poeta não retém o que descobre. Uma vez transcrito, o perde em seguida. Nisso reside a sua novidade, seu infinito e seu perigo. […]

Entre inocência e conhecimento, entre amor e nada, o poeta estende sua saúde cada dia.

 


Como se vê, a complexidade desta poesia é de natureza diversa do hermetismo italiano. Enquanto na Itália os poetas herméticos reagem à censura valendo-se de um estilo baseado na associação de ideias por justaposição, esta age em uma dimensão primária, na formação mesma do verso. Char se situa no magma da compreensão, onde cada coisa é seu próprio enigma. É anterior à representação. Assim, faz com o verso o que a cor faz com a abstração. O entendimento tem efeito retardado. E mesmo quando surge, a compreensão não é como se ofuscasse, mas como o que embaça. Nos seus momentos mais fechados constrói um poema intransmissível que faz sentido apenas para emoldurar o que permanece oculto. Como na alquimia, há um uso da escuridão pelo entendimento. Uma estrofe de Char é uma promessa jamais cumprida realizada pela própria espera.

A série Quatre Fascinants, de 1951, é um exemplo do frágil equilíbrio entre a objetividade do modelo e a abstração que o expressa.

 

QUATRE FASCINANTS

 

LE TAUREAU

 

Il ne fait jamais nuit quand tu meurs,

cerné de ténèbres qui crient.

Soleil aux deux pointes semblables.

 

Fauve d’amour, vérité dans l’épée,

Couple qui se poignarde unique parmi tous.

 

LA TRUITE

 

Rives qui croulez en parure

Afin d’emplir tout le miroir,

Gravier où balbutie la barque

Que le courant presse et retrousse,

Herbe, herbe toujours étirée.

Herbe, herbe jamais en répit,

Que devient votre créature

Dans les orages transparents

Où son cœur la précipita?

 

LE SERPENT

 

Prince des contresens, exerce mon amour.

À tourner son Seigneur que je hais de n’avoir

Que trouble répression ou fastueux espoir.

 

Revanche à tes couleurs, débonnaire serpent.

Sous le couvert du bois, et en toute maison.

Par le lien qui unit la lumière à la peur,

tu fais semblant de fuir, ô serpent marginal!

 

L’ALOUETTE

 

Extrême braise du ciel et première ardeur du jour,

Elle reste sertie dans l’aurore et chante la terre agitée,

Carillon maître de son haleine et libre de sa route.

 

Fascinante, on la tue en l’émerveillant.

 

QUATRO FASCINANTES

 

O TOURO

 

Nunca é noite quando morres

rodeado por trevas que urram

Sol de dois extremos semelhantes

 

Fera do amor, verdade na espada

Casal que se apunhala único entre todos

 

A TRUTA

 

Margens que esmigalhais adornadas

a fim de alagar todo o espelho

Cascalho onde o barco balbucia

que a correnteza prensa e enovela

Relva, relva, sempre estirada

Relva, relva, sempre e sem pausa

O que é vossa criatura

nas tormentas transparentes

onde a precipita seu coração?

 

A SERPENTE

 

Príncipe dos contrassensos, cultiva o meu amor

para evitar seu Senhor que odeio por não ter mais

que inquieta repressão ou suntuosa esperança

 

Desforra das tuas cores, bondosa serpente

Na felpa do bosque e em todas as casas

Pelo laço que une a luz ao medo

ameaças fugir, oh serpente marginal

 

A COTOVIA

 

Extrema brasa do céu e primeiro ardor do dia

Incrustada na aurora canta a terra agitada

Arame de sinos dona do seu alento e livre do seu caminho

 

Maravilhosa, a matam ao maravilhá-la

 

Seu verso sempre emana mais do que a leitura capta de imediato. E quanto mais essa poesia parece feita de uma sucessão de artifícios, mais ela se opõe à falsificação. Mais verdadeira é.

O poema que segue pertence à fase tardia de Chants de la Balandrane, de 1977:

 

ENTRAPERÇUE

 

Je sème de mes mains.

Je plante avec mes reins;

Muette est la pluie fine.

 

Dans un sentier étroit

J’écris ma confidence.

N’est pas minuit qui veut.

 

L’écho est mon voisin,

La brume est ma suivante.

 

ENTREVISTO

 

Semeio com as mãos

Planto com meus rins

Muda é a chuva fina

 

Em uma trilha estreita

escrevo esta confidência

não é meia-noite quem quer

 

O eco é meu vizinho

A bruma me continua

 

As últimas duas décadas foram de consagração da sua figura solitária. Teve a rara distinção de ver a publicação de um Cahier de l’Herne dedicado à sua obra em 1971 e das suas Obras Completas na Biblioteca da Pléiade, em 1983. Ambas edições costumam ser realizadas postumamente.

 

 

 


THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).

 


LENNIN VÁSQUEZ (Peru, 1978). Artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura. Estudou na Escola Superior Autônoma de Belas Artes do Peru entre 1996 e 2002, onde obteve medalha de ouro em desenho. Suas exposições pessoais incluem Metaphysical Landscapes (2023), Collected Work (2019) Spain, I Have All Nights in My Veins (2018); Delírios Crepusculares (2017); Quadrante dos Sonhos – jardins e labirintos (2015); Vento SURreal (2010); Aos Olhos do Apu (2009); Ritual Beings (2007), entre outras. Desde 1997 expôs coletivamente em dezenas de oportunidades no Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Colômbia e Espanha. Em 2010 realizou mural no encontro internacional Art x Parte em Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Seu trabalho está no Museu Belas Artes, Santiago do Chile; Aliança Francesa Lima, Peru; Município de Suba, Bogotá, Colômbia; e Coleção Faber Castell, Lima, Peru. Coleção Mapfre Lima Peru. Lennin possui um traço refinado repleto de referências mitopoéticas, que expressam não apenas sua afinidade com o Surrealismo, como também um universo acentuado por suas origens indígenas.




Agulha Revista de Cultura

Número 222 | janeiro de 2023

Artista convidado: Lennin Vásquez (Peru, 1978)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

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