quarta-feira, 10 de maio de 2023

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | Carolina Zamudio em cinco poemas

 


Carolina Zamudio (Argentina, 1973) nasceu em uma antiga cidade colonial a menos de cem quilômetros de Artigas e de Uruguaiana, duas fronteiras marcadas pelo mesmo rio, o Uruguai. Culturas respeitam pouco linhas imaginárias e a correntina, oriental e riograndense com os mesmos horizontes sem fim, a colonização jesuítica e a ancestralidade dos perseguidos povos originários têm muito em comum. O próprio nome da sua localidade, Curuzú Cuatiá (“cruz de papel” ou “cruz gravada”), ilustra o frequente sincretismo reverso. A presença desse ambiente atávico, entretanto, não domina a poesia de Carolina. Se levarmos em conta os poemas em prosa de A timidez das árvores, reeditado em Montevidéu no ano passado por esse que é um dos mais finos artistas gráficos do continente, Gustavo Wojciechowski, o tratamento dado ao seu universo natal é existencial, indiferente ao polo de atração do regionalismo. Assim, em densas pinceladas expressionistas oferece um autorretrato quando menina do interior:

 

A MENINA

 

Hoje as cigarras falam de um universo verde. Translúcido. A menina é grande, a menina é alta, a menina é séria. Uma senhora alta e séria a olha, e ela em seus olhos ouve: és má. Era verde a liberdade desde os seus olhos, dizer não, gritar com todo o rosto, pular o muro, beijar com a paixão de uma trinitária. Tinha a maldição da beleza e da razão justo no mesmo lugar. Se escondia nas horas em que os duendes saíam para despertar consciências e descobria a profundeza dos espelhos, a cor da água, a longitude da dor que atravessa toda a matéria. Não sabia da falta de certezas. Sentia a folga dos pés, molhados, no pasto. A umidade do amor que nascia nos beijos das amigas, escondidos em sestas. Tendas de campanha atadas entre redes. Feitas com lençóis deixados para orear ao sol. Roubadas. E recobriam, entre jasmins, o primeiro sabor: o de outra boca na sua. Aquele recuperado íntegro, ao caminhar – certa vez no pátio dos fundos. Quando as redes voltam e se transformam, e trazem única e idêntica a vontade de embalar-se. Leve, a cabeça para trás. A de fechar os olhos e beijar. Galgar fúcsia até a boca de um homem, de uma mulher. E florescê-los. O pátio vinha com o céu e uma longa corda de varal. De noite, nele se chegava atravessando o sendeiro extenso que não trazia estrelas. Somente algo de escuridão. A suficiente para inaugurar o medo. Ao caminhar pelo pátio, o dos fundos, o céu não é mais seu. O de então sim era. Poderia dizer que o melhor. O primeiro céu é sempre mais claro? Sim, assim até o último. A menina temeu as suas fissuras, as do piso, a das paredes, teve fobia aos sulcos que a terra seca nos pátios dos avós, ao das clareiras quase nevadas. A menina caiu. E foi uma fagulha a fenda. Saltou e seguiu, parindo novas rachaduras. A madeira das redes se lasca. Hoje, pelos sulcos dos azulejos o caminho da vida se esgueira lenta- mente para baixo. Pequenos fios nas paredes desenham um grande mapa de todo o mundo. Próprio. O céu sobre os muros, enquanto cai o sol, contorna uma corpulenta árvore familiar, que se dissolve com uma brisa condoída. O verde cresceu tanto que é eco de cigarras. A mulher suspende o pátio dos fundos. Seu tempo. Seus olhos caem sobre uma greta da rede e um caminho extenso de flores da trinitária lhe brota por dentro. A mulher se abraça, se enreda e galga.

 


Seu espanhol é terno, de uma doçura que o português endurece. As imagens surgem umas das outras em uma sucessão de fusões pautadas pelo ritmo vegetal das florações. O pátio e seu “cheiro a sesta”, que no jogo de espelhos dos textos seguintes é circundado pelo taquaral, a figueira e pela linha de fuga dos trilhos ferroviários, está redomado pela aura do campo. Um campo indefinido, mas onipresente. Nessa sinestesia, a realidade surge do poema em prosa ora turva, ora transparente de acordo com a intensidade da passagem de menina à moça e das sensações ao entendimento. Mais que um memorial ou um resgate de cenas familiares, em A timidez das árvores Carolina recria o seu próprio interior reagindo a cada experiência, em instantâneas da sua formação sensorial.

Apesar da elegância, a construção da frase é solta, muitas vezes conduzida pelo próprio fluxo como se obedecesse uma correnteza mental sussurrada. Não por acaso seu livro de estreia, dado a ver na Argentina em 2013, se chamaria Seguir o vento. A intuição é um elemento ativo na sua relação com a linguagem. Poeta tardia, gradua-se em jornalismo e é Mestre em Comunicação e Assuntos Públicos em Buenos Aires. Trabalharia com a imprensa radial, escrita e empresas na capital federal. Cosmopolita, reside em Abu Dhabi e Genebra. Durante dois anos, dita oficinas de criação literária para detentas na prisão do Bom Pastor, em Barranquilha. Apesar de ter ganhado o mundo, Zamudio não se afasta da sua origem. O primeiro verso de Seguir o vento a apresenta: com devoção provinciana / em Curuzú / fui semeada. Ou seja, é uma estrangeira e segue o vento, mas enraizada.

 

A ESTRANGEIRA

 

Sobre a minha escrivaninha um pequeno globo terrestre

às vezes me leva, outras me detém.

As cidades me ancoram um dia impreciso.

E navego vacilante entre estas águas.

 

Sei que posso sentir a falta de quem não fui

naquelas terras que tampouco eram minhas

Uma brisa furiosa me planta e abandona.

Mas não chega a beijar esta que tampouco sou

em uma nova paisagem onde um farol

indigente e distante se esmera em alumiar.

Hirta, pesada, os braços em cruz.

 

Há voz aqui. É inegável. Mas o que transmite? Apego e desarraigo, há algo de expiação, inclusive. Um instante qualquer, determinado por um acontecimento cotidiano, provoca o verso. Esse universo objetivo nasce filtrado pelo lirismo da contemplação. O fixa, dá voltas e encontra escape rumo à transcendência daquela mesma realidade de onde o poema surge. É um magma e está vivo. Se na busca por sentido não encontra respostas definitivas, deixa um rastro de perplexidades poéticas.

É da sua reunião seguinte, A escuridão do que brilha, edição bilíngue (espanhol/inglês) impressa em Nova Iorque, a seguinte reflexão também contemplativa:

 

TEORIA SOBRE A BELEZA

 

A beleza não cabe em um pedaço de papel

mas nos olhos. Como regular

o foco de uma lente

por atrás.

Não na ponta da língua, mais além.

Cabe no ar ao abarcar o ser.

 

Pode aferrar-se à beleza

em silêncio ao repousar o corpo

desde atrás nisso de ser

atesourar o que tinha sido

e belo é.

 

A beleza habita na escuridão

o dom que nos foi dado oculto, a casca que se retira

o belo é um fim vazio de princípios

nasce no último trecho do próximo desejo.

 

A beleza abraça a luz da morte

ou desata a nebulosa da vida.

 


É notável a sofisticada sedução que impregna este poema, especialmente pela ausência de erotismo explícito. Poesia da sutileza. Dois anos mais tarde, em 2017, é publicada em Toulon, na Côte d’Azur, pela Éditions Villa-Cisneros, uma reunião dos seus poemas vertidos ao francês sob o título de Rituais do acaso. Seleção de versos claros e minimais, regida pela concisão e precisão estilística. Sua poesia não abandona a autorreferência, o eu do autor ainda busca expressar uma identidade definida pelas próprias inquirições, mas é já uma voz que se dilui na direção dos outros. Os temas se generalizam e se desprendem da história pessoal da poeta. A intensidade com que está no presente mais que individual é humana. Obedecendo tal expansão, também o imaginário migra do figurativo e concreto para o sensitivo e abstrato.

 

CENTRO E FIM

 

I

O último abraço antes da primeira morte

o franco flerte com a loucura, a vez em que o amor

foi um poço absoluto como o cosmos,

o sopro originário de um mais além difuso

da única verdade que é o nascimento.

 

II

A vida não está lá nem então

A vida é esta, este suspiro, esta pele,

esta sensação de poço seco,

de colmeia abandonada de centro e fim.

 

III

O vazio tem o peso do absoluto,

nunca menos. Centro.

O vazio é

a medida do mundo.

 

Zamudio seguiria publicando com constância periódica. Frequentadora assídua dos principais festivais de poesia, em 2018 lança na Colômbia o já mencionado A timidez das árvores. Em 2020 com o O próprio rio, integra a coleção Lima Lee publicada pela municipalidade da capital peruana. No mesmo ano sai em Rimini Vértice, edição bilíngue ao italiano sob o cuidado e a tradução do poeta Emilio Coco.


Dona de uma obra em processo, onde qualquer tentativa de definição soaria prematura, Carolina Zamudio possui uma dicção inquieta e multifacetada. Nela, o poeta Rafael Courtoisie identificou a linhagem de Clarice Lispector, Virgínia Woolf e Olga Orozco. Mas, independente das associações de gênero, onde poderíamos incluir sem hesitar Blanca Varela, também em seus talismãs verbais – essas pedras de toque que transfiguram a realidade diária espectros de um tênue surrealismo eluardiano.

Citoyen du monde, dotada de uma ampla visão empreendedora, idealizou e dirige na localidade uruguaia de La Barra uma zona de eucaliptais sobre o Atlântico, vizinha a Punta del Este a Fundación Esteros, entidade sem fins lucrativos definida como uma bússola apontando ao sul, uma espécie de “Comunidade em Movimento” comprometida com o desenvolvimento cultural no território do Rio da Prata. Esteros promoveu três encontros internacionais de poesia no Uruguai, oferece bolsas de criação, edita a coleção Flor de Espinillo e a prestigiosa revista literária que leva o seu nome.

Há aqui uma saudável quebra de estereótipo: aquela do poeta na sua torre, isolado do mundo. Carolina Zamudio emprega a mesma energia para criar versos e realizar projetos. Um modelo de artista que se ajusta sem resistência à contemporaneidade. E o faz sem perder o contato com sua essência mais expressiva. Senão vejamos a íntima universalidade desta peça, incluída em seu livro mais recente:

 

O SILÊNCIO ALICIANDO A ESMO

 

A lua em peixes ilumina ampla,

um olho ao norte, outro ao sul, nossa bússola

primitiva aponta ao cruzeiro que zarpa e ambos

beijamos o silêncio, aliciando a esmo,

e com as mãos erguidas também ensaiamos

um adeus. Deve ter sido a noite,

essa vez não fomos únicos,

nosso pequeno barco, enquanto amainava

o temporal, nos trazia, querido,

lentamente para a margem.

Não é para todos esse mar e suas trevas.

Mas ali fomos uma, tu, eu e a sombra,

a maré alta que armou nosso vento.

Diante dessa cidade andante, enorme,

que se afastava da ilha, ia também

nossa silhueta antecipando um novo

tempo, no próprio amor ancorado. Eterno.

 

 

 


THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).

 

 


XUL SOLAR (Argentina, 1887-1963). Su pintura visionaria traspasa los límites de la pura abstracción, al ver surgir de ella el mito transfigurado, figura esencial de su interpretación del mundo. Es una pintura en la que se produce la fusión de narración y espejismo. Xul Solar también fue músico, místico y astrólogo. En su pasión por la invención, nos trajo ejemplos insólitos, como un teatro de marionetas con personajes sacados de los signos del zodiaco, la creación de un lenguaje artificial y un intrigante piano de 28 notas. En gran parte, la originalidad de la obra de Xul Solar proviene precisamente de su permanente debate entre tradición y modernidad.



Agulha Revista de Cultura

Número 229 | maio de 2023

Artista convidado: Xul Solar (Argentina, 1887-1963)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023 

 


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