A MENINA
Hoje
as cigarras falam de um universo verde. Translúcido. A menina é grande, a menina
é alta, a menina é séria. Uma senhora alta e séria a olha, e ela em seus olhos ouve:
és má. Era verde a liberdade desde os seus olhos, dizer não, gritar com todo o rosto,
pular o muro, beijar com a paixão de uma trinitária. Tinha a maldição da beleza
e da razão justo no mesmo lugar. Se escondia nas horas em que os duendes saíam para
despertar consciências e descobria a profundeza dos espelhos, a cor da água, a longitude
da dor que atravessa toda a matéria. Não sabia da falta de certezas. Sentia a folga
dos pés, molhados, no pasto. A umidade do amor que nascia nos beijos das amigas,
escondidos em sestas. Tendas de campanha atadas entre redes. Feitas com lençóis
deixados para orear ao sol. Roubadas. E recobriam, entre jasmins, o primeiro sabor:
o de outra boca na sua. Aquele recuperado íntegro, ao
caminhar – certa vez – no pátio dos fundos.
Quando as redes voltam e se transformam, e trazem única e idêntica a
vontade de embalar-se. Leve, a cabeça para trás. A de fechar os olhos e beijar. Galgar fúcsia até a boca de um homem, de uma mulher. E florescê-los. O pátio vinha com o céu e
uma longa corda de varal. De noite, nele
se chegava atravessando o sendeiro extenso que não trazia
estrelas. Somente algo de escuridão. A suficiente para inaugurar
o medo. Ao caminhar
pelo pátio, o dos fundos, o céu não é mais seu. O de então sim era. Poderia dizer que o melhor. O primeiro céu é sempre mais claro? Sim, assim até o último. A menina temeu as suas fissuras, as do piso, a das paredes, teve fobia aos sulcos
que a terra seca nos pátios dos
avós, ao das clareiras quase nevadas. A menina caiu. E
foi uma fagulha a fenda. Saltou
e seguiu, parindo novas rachaduras. A madeira das redes se lasca.
Hoje, pelos sulcos dos azulejos o caminho da vida se esgueira
lenta- mente para baixo. Pequenos fios nas paredes desenham um grande
mapa
de todo o mundo. Próprio.
O céu sobre os muros, enquanto cai o sol, contorna
uma corpulenta árvore familiar, que se dissolve
com uma brisa condoída. O verde cresceu
tanto que é eco de cigarras. A mulher suspende o pátio dos fundos. Seu tempo. Seus olhos caem sobre uma greta da rede e um caminho extenso de flores da trinitária
lhe brota por dentro. A mulher se abraça,
se enreda e galga.
Apesar
da elegância, a construção da
frase é solta, muitas vezes conduzida
pelo próprio fluxo como se obedecesse uma correnteza
mental sussurrada. Não por acaso seu
livro de estreia, dado a ver na Argentina
em 2013, se chamaria Seguir
o vento. A intuição
é um elemento ativo na sua
relação com a linguagem. Poeta tardia, gradua-se em jornalismo e é Mestre em Comunicação e Assuntos
Públicos em Buenos Aires. Trabalharia com a imprensa radial, escrita e empresas
na capital federal.
Cosmopolita, reside em Abu Dhabi e Genebra. Durante dois
anos, dita oficinas de criação literária
para detentas na prisão do Bom Pastor, em Barranquilha.
Apesar de ter ganhado o mundo, Zamudio
não se afasta da sua origem. O primeiro verso de Seguir o vento
a apresenta: com devoção provinciana / em Curuzú / fui semeada. Ou seja, é uma estrangeira e segue o vento, mas enraizada.
A ESTRANGEIRA
Sobre a minha escrivaninha um pequeno globo terrestre
às vezes me leva, outras me
detém.
As cidades me ancoram um dia impreciso.
E navego vacilante entre estas
águas.
Sei que posso sentir a falta de quem não fui
naquelas terras que tampouco eram minhas
Uma brisa furiosa me planta e abandona.
Mas não chega a beijar esta que tampouco sou
em uma nova paisagem onde um farol
indigente e distante
se esmera em alumiar.
Hirta, pesada, os braços em cruz.
Há voz aqui. É inegável. Mas
o que transmite? Apego e desarraigo, há algo de expiação, inclusive. Um instante
qualquer, determinado por um acontecimento cotidiano, provoca o verso. Esse universo
objetivo nasce filtrado pelo lirismo da contemplação. O fixa, dá voltas e encontra
escape rumo à transcendência daquela mesma realidade de onde o poema surge. É um
magma e está vivo. Se na busca por sentido não encontra respostas definitivas, deixa
um rastro de perplexidades poéticas.
É da sua reunião seguinte, A escuridão do que brilha, edição bilíngue
(espanhol/inglês) impressa em Nova Iorque, a seguinte reflexão também contemplativa:
TEORIA SOBRE A BELEZA
A beleza não cabe em um pedaço de papel
mas nos olhos. Como regular
o foco de uma lente
por atrás.
Não na ponta da língua, mais além.
Cabe no ar ao abarcar o ser.
Pode aferrar-se à beleza
em silêncio ao repousar o corpo
desde atrás nisso de ser
atesourar o que tinha sido
e belo é.
A beleza habita na escuridão
o dom que nos foi dado oculto,
a casca que se retira
o belo é um fim vazio de princípios
nasce no último trecho do próximo
desejo.
A beleza abraça a luz da morte
ou desata a nebulosa da vida.
CENTRO E FIM
I
O último abraço antes da primeira
morte
o franco flerte com a loucura, a vez em que o amor
foi um poço absoluto
como o cosmos,
o sopro originário de um mais além difuso
da única verdade que é o nascimento.
II
A vida não está lá nem então
A vida é esta, este suspiro, esta pele,
esta sensação de poço seco,
de colmeia abandonada de centro
e fim.
III
O vazio tem o peso do absoluto,
nunca menos. Centro.
O vazio é
a medida do mundo.
Zamudio seguiria publicando
com constância periódica. Frequentadora assídua dos principais festivais de poesia,
em 2018 lança na Colômbia o já mencionado A
timidez das árvores. Em 2020 com o O próprio
rio, integra a coleção Lima Lee publicada pela municipalidade da capital peruana.
No mesmo ano sai em Rimini Vértice, edição
bilíngue ao italiano sob o cuidado e a tradução do poeta Emilio Coco.
Citoyen
du monde, dotada de uma ampla
visão empreendedora, idealizou e dirige na localidade uruguaia de La Barra – uma zona de eucaliptais
sobre o Atlântico, vizinha a Punta del Este – a Fundación
Esteros, entidade sem fins lucrativos definida como uma bússola apontando ao
sul, uma espécie de “Comunidade em Movimento” comprometida com o desenvolvimento
cultural no território do Rio da Prata. Esteros
promoveu três encontros internacionais de poesia no Uruguai, oferece bolsas
de criação, edita a coleção Flor de Espinillo
e a prestigiosa revista literária que leva o seu nome.
Há aqui uma saudável quebra
de estereótipo: aquela do poeta na sua torre, isolado do mundo. Carolina Zamudio
emprega a mesma energia para criar versos e realizar projetos. Um modelo de artista
que se ajusta sem resistência à contemporaneidade. E o faz sem perder o contato
com sua essência mais expressiva. Senão vejamos a íntima universalidade desta peça,
incluída em seu livro mais recente:
O SILÊNCIO ALICIANDO A ESMO
A lua em peixes ilumina ampla,
um olho ao norte, outro ao sul, nossa bússola
primitiva aponta ao cruzeiro que zarpa e ambos
beijamos o silêncio,
aliciando a esmo,
e com as mãos erguidas também ensaiamos
um adeus. Deve ter sido a noite,
essa vez não fomos únicos,
nosso pequeno barco, enquanto amainava
o temporal, nos trazia, querido,
lentamente para a margem.
Não é para todos esse mar e suas trevas.
Mas ali fomos uma, tu, eu e a sombra,
a maré alta que armou nosso vento.
Diante dessa cidade andante, enorme,
que se afastava da ilha, ia também
nossa silhueta antecipando um novo
tempo, no próprio amor ancorado.
Eterno.
THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).
XUL SOLAR (Argentina, 1887-1963). Su pintura visionaria traspasa los límites de la pura abstracción, al ver surgir de ella el mito transfigurado, figura esencial de su interpretación del mundo. Es una pintura en la que se produce la fusión de narración y espejismo. Xul Solar también fue músico, místico y astrólogo. En su pasión por la invención, nos trajo ejemplos insólitos, como un teatro de marionetas con personajes sacados de los signos del zodiaco, la creación de un lenguaje artificial y un intrigante piano de 28 notas. En gran parte, la originalidad de la obra de Xul Solar proviene precisamente de su permanente debate entre tradición y modernidad.
Agulha Revista de Cultura
Número 229 | maio de 2023
Artista convidado: Xul Solar (Argentina, 1887-1963)
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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