quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

CÉLIA MUSILLI | Sobre Claudio Willer

 


1. Ensaios sobre a poesia contemporânea

O poeta, tradutor, crítico e ensaísta Claudio Willer lançou no fim de 2017 uma coleção de livros sobre a poesia contemporânea brasileira. Neles, analisa as obras de Floriano Martins, Péricles Prade, Miriam de Carvalho, Eunice Arruda e Celso de Alencar, criadores cuja produção passou a ser conhecida a partir dos anos 1960/1970.

Alguns com trajetória e estética surrealistas, como Floriano Martins, outros que fazem uma releitura baudelairiana em sua obra, como Celso de Alencar, ou ainda poetas que se expressaram, ao mesmo tempo, com singeleza cotidiana e profundidade oriental, como Eunice Arruda falecida no ano passado que foi revelada nos anos 1960 pelo emblemático editor Massao Ohno na coleção “Novíssimos”, que teve o próprio Willer como um dos autores escolhidos para representar uma geração de talentos. Há ainda, os ensaios sobre a produção esotérica e de alta qualidade de Péricles Prade, além da poesia mágica e erótica de Miriam de Carvalho.

Os livros formam uma coleção idealizada e produzida pelo artista plástico paulistano Valdir Rocha, de quem também são os desenhos, esculturas e gravuras que estão nas capas de uma série que destaca conjuntamente a literatura e a arte. Os livros foram publicados pela editora Quaisquer.

Na entrevista a seguir, Willer fala sobre os ensaios nos quais os poetas são tratados como demiurgos ou pequenos deuses, a partir de uma perspectiva literária, num cruzamento de vidas e obras. Ao fim dos livros há poemas de cada um deles, o que dá ao leitor a noção da alta poesia abordada na coleção. Trata-se de arte sobre a arte, condição importante para quem se alimenta de conjuros, feitiçaria e literatura.

 

CM | Na coleção de ensaios recém-lançada são abordadas obras de cinco poetas. O que eles têm em comum?

CW | Serem tão diferentes não caberia como motivo de interesse? Cada poeta tem sua identidade ou personalidade própria. Dificilmente poderiam ser associados ao mesmo movimento ou corrente literária. Talvez a coleção se justifique por mostrar o caráter plural do valor literário. Um esoterista irônico como Péricles Prade, uma cultora da linguagem direta mas cheia de subentendidos como Eunice Arruda, uma provocadora erótica e esotérica ao mesmo tempo como Mirian de Carvalho, um iconoclasta, criador de torrentes de vigorosas metáforas extravagantes como Celso de Alencar, outro que parece ter uma capacidade infinita de criar metáforas como Floriano Martins juntos, constituem-se em plêiade, constelação, porém feita de corpos celestes completamente diferentes.

 

CM | Alguns ensaios analisam a poesia de um ponto de vista místico e filosófico, a ponto de você tratar o poeta como um demiurgo. Qual o motivo?

 

CW | A ideia do poeta como demiurgo é adotada, de modos distintos, por Péricles Prade e Floriano Martins. Está em Mirian, também. Seu jardim erótico é um mundo criado pela poesia. Essa concepção, reafirmada entre outros por Vicente Huidobro no século XX, é antiga. Tem a ver, penso, com magia. E com a ideia de que a linguagem é constitutiva da realidade. Breton: Enunciados medíocres fazem a realidade medíocre. A realidade feita por poetas de qualidade situa-se no polo oposto.

Além de eu adotar paradigmas que me são familiares ou, em outros termos, falar daquilo de que entendo pode-se enxergar em poetas respostas à dessacralização ou desencantamento do mundo. Mas, insisto, de modos distintos. Eunice Arruda é pessimista, melancólica frente a esse estado de coisas. Uma nesga de luz está, para ela, no compartilhamento da poesia, na experiência coletiva de criação e transmissão. Celso responde com fúria iconoclasta, de modo veemente. Mirian me parece eufórica, alguém que está muito bem em seu jardim erótico e mágico, onde promove uma festa de símbolos.


A propósito, ainda, dos meus quadros de referência: como evitá-los diante de certos poetas? Tomemos Mirian: ela começa, de um modo provocativo, muito particular, invocando as correspondências de macrocosmo e microcosmo. O que faria eu? Ignoraria? Em Péricles, o assunto é simbologia, tarô, alquimia, astrologia, unicórnio, labirinto: deveria fingir que o cara não é mago? Nem que seja para interpretar que essa simbologia toda é metáfora da própria poesia, que a criação poética é magia. Não por acaso, Mirian e Péricles são interlocutores, ela examinou sua obra.

 

CM | Qual a influência da geração de poetas dos anos 1960 e 1970, enfocados na coleção, sobre os poetas da atualidade?

CW | Influência? Menor do que deveria ser. Alguns já têm fortuna crítica, bibliografia sobre eles, bem estabelecida. Eunice, certamente, formou poetas. Péricles é estudado. Celso começa a repercutir, acho. Floriano, mais fora do Brasil, em Portugal e países de língua espanhola. Mirian, fiquei me perguntado: Como é que pode, uma poeta dessa qualidade não ser mais comentada e estudada?

 

CM | Qual o lugar da poesia no Brasil hoje?

 

CW | Continua presente. Há poetas, há leitores. Nota-se isso nestas nossas sessões, encontros, saraus. E na rede social. Poesia é historicamente minoritária.


CM | A coleção de ensaios sobre a poesia contemporânea terá sequência?

 

CW | Quem pode responder é Valdir Rocha, artista plástico e interlocutor de poetas, mentor e produtor dessa coleção. Houve uma feliz convergência de preferências, nessas escolhas.

 

[Publicação original: Folha de Londrina, 2018]

 

2. Impressões quase completas

Li a A Verdadeira História do Século 20, de Claudio Willer, quando ainda era inédito. Ele traz também a respiração de um livro invisível e se abre para o que é visível em nosso tempo: afetos e angústias, nas imagens que se sucedem nos cinemas e nos poemas, eclodindo em nossas cabeças como um chamado também ao filme interno.

O poeta diz: cinema, seu verdadeiro nome é confissão e nossas impressões se ampliam. Não estamos sozinhos na sala, as vozes se somam, como se Reichenbach, Hitchcock e Bergman fossem interlocutores nos ensinando a ver os símbolos de perto, com o devido respeito também ao que não se revela.


Fazer poemas sobre filmes é como um relato de sonhos, psicanálise delicada. O poeta faz seu filme sobre os filmes, das imagens à sintaxe, ganha a poesia. E nosso olhar se derrete, como “montanhas de manteiga ao sol.”

Depois ainda há um salto para dentro de emoções singulares. Entram o poeta surrealista e o poeta beat. O primeiro trançando cabelos e pensamentos sobre as cidades, poeta urbano dos monumentos sentimentais construídos com as musas, tantas, como num passeio de mãos dadas com uma galeria feminina.

Nenhuma tem nome, todas são poesia, o tempo é subvertido, não há passado nem futuro, tudo corre num presente inapreensível, um tempo líquido, mobilidade sôfrega ainda com linguagem de cinema. Mas é a vida que passa, em cenas surreais sem o crocodilo de Pierre Schöller porque não há propriamente angústia. O exercício é lírico, de uma liberdade surpreendente, com a beleza acachapante dos colírios de palavras.

Vem o poeta beat, celebra o sexo e as orgias silábicas, a transgressão pelo corpo e pelo verbo, a construção de um mundo novo que ficou nos parques e nas praias, nos acampamentos onde havia tempo para o pôr-do-sol e o levantar da lua. Poetas leviatãs do risco, magos da ousadia estética misturada à vida, experimentalismo na própria pele.

Poema depoimento, poema testemunha, poema como a respiração que buscamos de olhos fechados para abrir as portas da percepção. Sobretudo, a síntese de um grande caleidoscópio de palavras, eis a minha impressão.

O poeta agradece ao diretor de Persona por lhe dar a chance de criar o mais hermético dos seus poemas.

Eu agradeço ao poeta por não decifrá-lo inteiramente. A arte sempre terá sentidos obscuros.

 

[Publicação original: Germina, março de 2016]

 

 

3. Rebeldia e tributo aos beats

Depois de Geração Beat – publicado pela LP&M em 2009 e com cerca de 7 mil exemplares vendidos – Claudio Willer lança Os Rebeldes – Geração Beat e anarquismo místico. Neste novo livro, o autor amplia informações sobre os escritores norte-americanos que protagonizaram uma inquieta cena cultural no século XX, para mostrar sua trajetória extrapolando as normas de uma sociedade erigida sob o protestantismo para encontrar caminhos que os levariam a várias religiões e doutrinas.

Incluem-se aí o Espírito Livre – que propunha a abolição da propriedade privada e a volta a um estado adâmico – e religiões africanas, como a que Allen Ginsberg conheceu numa visita à Cuba e que corresponde ao candomblé. Movidos por um sentido de busca, os expoentes da geração beat falaram de iluminações em seus poemas, enchendo suas obras de relatos que traduzem a expectativa de criar uma nova consciência espiritual e planetária.

Este sentimento mobilizava a geração dos anos 60 que eles precederam – e da qual também participaram ativamente – imprimindo ainda seus ecos às décadas seguintes como protagonistas de uma rebelião não só literária, mas de comportamento. Eles acreditavam, de forma messiânica, que tinham uma missão, como destaca Willer, através de uma declaração de Gisnberg: Nós temos um grande trabalho a fazer, e nós o estamos fazendo, tentando salvar e curar o espírito da América.


Dos tambores africanos aos cantos a Hare Krishna, a trajetória de Ginsberg é tão rica em experiências místicas quanto a de seus parceiros. Willer aborda esse caminho fazendo paradas nas estações espirituais onde desembarcaram por curto ou longo período os ícones da Geração Beat, apontando religiões e doutrinas que eles seguiram. Tudo permeado por influências literárias na qual se incluem a obra de William Blake e W.B. Yeats, entre outros, por suas concepções espiritualistas.

De Ginsberg, Willer cita desde a obsessão religiosa até os longos retiros para meditação, além da presença de símbolos espiritualistas em seus poemas feitos em forma de orações. É conhecida sua experiência de iluminação auditiva, na qual teria ouvido a voz de Blake, que ele tentaria repetir até mesmo com o uso de alucinógenos.

Parte importante da história da geração beat – expressão que deriva da palavra beatitude – está no romance On the Road, de Jack Kerouac, apontado bem mais como uma busca espiritual do que um guia de como se tornar um hipster por Howard Cunnel, organizador e prefaciador de edição recente do manuscrito original do livro, citado por Willer.

Kerouac, de formação católica, mergulhou ainda no gnosticismo e no budismo que aparecem em boa parte de sua obra. Entre outros beats, inclui-se a poeta Diane di Prima, budista, ocultista e professora de magia; Gary Snyder, budista convicto e praticante da linha zen; Gregory Corso, tido como poeta católico, além de Neal Cassidy – considerado, mais que um autor, um personagem importante do movimento que, juntamente com sua mulher Carolyn, tornou-se adepto de uma seita liderada pelo médium vidente Edgard Cayce.

Todos exemplos irreverentes de um anarquismo que vai da ascese à licenciosidade, da meditação ao culto orgiástico. O livro é também um documento das influências políticas, econômicas e sociais que determinaram a rebelião marcante na cena da contracultura. Há de se ressaltar a presença do lúmpen no movimento – aquela categoria de cidadãos com subempregos e tidos como ordinários, na contramão da burguesia – além de uma facção marginal que inclui, por exemplo, Gregory Corso que entrou em contato com a literatura na biblioteca de uma prisão, quando foi preso, acusado de roubo, aos 17 anos.

Os Rebeldes faz um raio X das influências religiosas e dos desvios morais que resultaram numa obra criativa, cuja pulsação de realidade tem um viés de inacreditável ficção. Ressalta-se o conhecimento de Willer sobre o assunto, incluindo sua troca de correspondência com Ginsberg, nos anos 80, quando traduziu para o português o poema “Uivo”. Este poema é uma das criações mais emblemáticas da geração que primou anarquicamente pela contestação de tudo.

 

[Publicação original: Carta Campinas, 20 de julho de 2014]

 



CÉLIA MUSILLI (Brasil, 1957). Jornalista, cronista e poeta. Autora de Londrina Puxa o Fio da Memória (2004), em parceria com Maria Angélica Abramo; Sensível Desafio (2006) e Todas as Mulheres em Mim (2010). Participou de várias outras publicações e coletâneas. É editora de Cultura da Folha de Londrina, onde também publica, há mais de 20 anos, crônicas aos domingos. Tem textos e poemas publicados nas revistas literárias Coyote, Germina, Agulha Revista de Cultura, Zunái, Mallarmargens, Revista da Biblioteca Nacional, Celuzlose, Diversos Afins, InComunidade (Portugal), entre outras. Integra a Antologia 101 Poetas Paranaenses, organizada por Ademir Demarchi (2014); e O Fio de Ariadne, organizada por Christine Vianna (2005). Também integra a coletânea As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira (2021), organizada por Rubens Jardim, e a Nova Antologia dos Poetas Londrinenses (2022). É mestra em Teoria e História Literária pela Unicamp, onde desenvolveu e defendeu em 2014 a dissertação Literatura e Loucura: a Transcendência Pela Palavra, sobre a obra da escritora Maura Lopes Cançado.




MIREYA BAGLIETTO (Argentina, 1936). Artista, ceramista, pintora, escultora e investigadora, creadora del Arte Núbico. De formación casi autodidacta, es considerada una artista atípica dentro del escenario de las artes visuales de su país. Ha realizado numerosas exposiciones, muchas de ellas a nivel internacional y ha sido reconocida con diversos premios por su trayectoria, incluyendo el premio Konex como una de las cinco figuras más importantes de la historia del arte cerámico argentino y el Gran premio de Honor del Salón Nacional de Artes Visuales. Durante su etapa de ceramista (1958-1978) creó el Taller para Estudios Cerámicos que lleva su nombre, donde se formaron numerosos ceramistas argentinos. A partir de 1985, cuando el Arte Núbico quedó establecido como una tendencia, desarrolló una vasta tarea de docencia tanto en su propio estudio como en diversos centros y universidades argentinas, trabajando sobre el despertar de la sensibilidad creativa en relación con la materia y el espacio atemporal. 

 

 


Agulha Revista de Cultura

Número 248 | fevereiro de 2024

Artista convidado: Mireya Baglietto (Argentina, 1936)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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