1. Ensaios sobre a poesia contemporânea
O poeta, tradutor,
crítico e ensaísta Claudio Willer lançou no fim de 2017 uma coleção de livros sobre
a poesia contemporânea brasileira. Neles, analisa as obras de Floriano Martins,
Péricles Prade, Miriam de Carvalho, Eunice Arruda e Celso de Alencar, criadores
cuja produção passou a ser conhecida a partir dos anos 1960/1970.
Alguns com trajetória
e estética surrealistas, como Floriano Martins, outros que fazem uma releitura baudelairiana
em sua obra, como Celso de Alencar, ou ainda poetas que se expressaram, ao mesmo
tempo, com singeleza cotidiana e profundidade oriental, como Eunice Arruda – falecida no ano passado – que foi revelada
nos anos 1960 pelo emblemático editor Massao Ohno na coleção “Novíssimos”, que teve
o próprio Willer como um dos autores escolhidos para representar uma geração de
talentos. Há ainda, os ensaios sobre a produção esotérica e de alta qualidade de
Péricles Prade, além da poesia mágica e erótica de Miriam de Carvalho.
Os livros formam uma coleção idealizada e produzida pelo artista plástico
paulistano Valdir Rocha, de quem também são os desenhos, esculturas e gravuras que
estão nas capas de uma série que destaca conjuntamente a literatura e a arte. Os
livros foram publicados pela editora Quaisquer.
Na entrevista a seguir, Willer fala sobre os ensaios nos quais os poetas
são tratados como demiurgos ou pequenos
deuses, a partir de uma perspectiva literária, num cruzamento de vidas e obras.
Ao fim dos livros há poemas de cada um deles, o que dá ao leitor a noção da alta
poesia abordada na coleção. Trata-se de arte sobre a arte, condição importante para
quem se alimenta de conjuros, feitiçaria e literatura.
CW | Serem tão diferentes não caberia como motivo
de interesse? Cada poeta tem sua identidade ou personalidade própria. Dificilmente
poderiam ser associados ao mesmo movimento ou corrente literária. Talvez a coleção
se justifique por mostrar o caráter plural do valor literário. Um esoterista irônico
como Péricles Prade, uma cultora da linguagem direta – mas cheia de subentendidos – como Eunice
Arruda, uma provocadora erótica e esotérica ao mesmo tempo como Mirian de Carvalho,
um iconoclasta, criador de torrentes de vigorosas metáforas extravagantes como Celso
de Alencar, outro que parece ter uma capacidade infinita de criar metáforas como
Floriano Martins – juntos, constituem-se em plêiade, constelação,
porém feita de corpos celestes completamente diferentes.
CM | Alguns ensaios analisam a poesia de um ponto de vista místico e filosófico,
a ponto de você tratar o poeta como um demiurgo.
Qual o motivo?
CW | A ideia do poeta como demiurgo é adotada,
de modos distintos, por Péricles Prade e Floriano Martins. Está em Mirian, também.
Seu jardim erótico é um mundo criado pela poesia. Essa concepção, reafirmada entre
outros por Vicente Huidobro no século XX, é antiga. Tem a ver, penso, com magia.
E com a ideia de que a linguagem é constitutiva da realidade. Breton: Enunciados medíocres fazem a realidade medíocre.
A realidade feita por poetas de qualidade
situa-se no polo oposto.
Além de eu adotar paradigmas que me são familiares – ou, em outros termos, falar daquilo de que entendo – pode-se enxergar em poetas respostas à dessacralização ou desencantamento
do mundo. Mas, insisto, de modos distintos. Eunice Arruda é pessimista, melancólica
frente a esse estado de coisas. Uma nesga de luz está, para ela, no compartilhamento
da poesia, na experiência coletiva de criação e transmissão. Celso responde com
fúria iconoclasta, de modo veemente. Mirian me parece eufórica, alguém que está
muito bem em seu jardim erótico e mágico, onde promove uma festa de símbolos.
CW | Influência? Menor do que deveria ser. Alguns
já têm fortuna crítica, bibliografia sobre eles, bem estabelecida. Eunice, certamente,
formou poetas. Péricles é estudado. Celso começa a repercutir, acho. Floriano, mais
fora do Brasil, em Portugal e países de língua espanhola. Mirian, fiquei me perguntado:
Como é que pode, uma poeta dessa qualidade não ser mais comentada e estudada?
CM | Qual o lugar da poesia no Brasil hoje?
CW | Continua presente. Há poetas, há leitores.
Nota-se isso nestas nossas sessões, encontros, saraus. E na rede social. Poesia
é historicamente minoritária.
CW | Quem pode responder é Valdir Rocha, artista
plástico e interlocutor de poetas, mentor e produtor dessa coleção. Houve uma feliz
convergência de preferências, nessas escolhas.
[Publicação original: Folha de Londrina, 2018]
2. Impressões quase completas
Li a A Verdadeira História do Século
20, de Claudio Willer, quando ainda era inédito. Ele traz também a respiração
de um livro invisível e se abre para o que é visível em nosso tempo: afetos e angústias,
nas imagens que se sucedem nos cinemas e nos poemas, eclodindo em nossas cabeças
como um chamado também ao filme interno.
O poeta diz: cinema, seu verdadeiro
nome é confissão e nossas impressões se ampliam. Não estamos sozinhos na sala,
as vozes se somam, como se Reichenbach, Hitchcock e Bergman fossem interlocutores
nos ensinando a ver os símbolos de perto, com o devido respeito também ao que não
se revela.
Depois ainda há um salto para dentro de
emoções singulares. Entram o poeta surrealista e o poeta beat. O primeiro trançando
cabelos e pensamentos sobre as cidades, poeta urbano dos monumentos sentimentais
construídos com as musas, tantas, como num passeio de mãos dadas com uma galeria
feminina.
Nenhuma tem nome, todas são poesia, o tempo
é subvertido, não há passado nem futuro, tudo corre num presente inapreensível,
um tempo líquido, mobilidade sôfrega ainda com linguagem de cinema. Mas é a vida
que passa, em cenas surreais sem o crocodilo de Pierre Schöller porque não há propriamente
angústia. O exercício é lírico, de uma liberdade surpreendente, com a beleza acachapante
dos colírios de palavras.
Vem o poeta beat, celebra o sexo e as orgias
silábicas, a transgressão pelo corpo e pelo verbo, a construção de um mundo novo
que ficou nos parques e nas praias, nos acampamentos onde havia tempo para o pôr-do-sol
e o levantar da lua. Poetas leviatãs do risco, magos da ousadia estética misturada
à vida, experimentalismo na própria pele.
Poema depoimento, poema testemunha, poema
como a respiração que buscamos de olhos fechados para abrir as portas da percepção.
Sobretudo, a síntese de um grande caleidoscópio de palavras, eis a minha impressão.
O poeta agradece ao diretor de Persona por lhe dar a chance de criar o mais hermético dos seus poemas.
Eu agradeço ao poeta por não decifrá-lo
inteiramente. A arte sempre terá sentidos obscuros.
[Publicação original: Germina, março de 2016]
3. Rebeldia e tributo aos beats
Depois de Geração Beat – publicado pela LP&M em
2009 e com cerca de 7 mil exemplares vendidos – Claudio Willer lança Os Rebeldes – Geração Beat e anarquismo místico.
Neste novo livro, o autor amplia informações sobre os escritores norte-americanos
que protagonizaram uma inquieta cena cultural no século XX, para mostrar sua trajetória
extrapolando as normas de uma sociedade erigida sob o protestantismo para encontrar
caminhos que os levariam a várias religiões e doutrinas.
Incluem-se aí o Espírito Livre – que propunha a abolição da propriedade privada
e a volta a um estado adâmico – e religiões africanas, como a que Allen Ginsberg
conheceu numa visita à Cuba e que corresponde ao candomblé. Movidos por um sentido
de busca, os expoentes da geração beat falaram de iluminações em seus poemas, enchendo
suas obras de relatos que traduzem a expectativa de criar uma nova consciência espiritual
e planetária.
Este sentimento mobilizava a geração dos anos 60 que eles precederam – e
da qual também participaram ativamente – imprimindo ainda seus ecos às décadas seguintes
como protagonistas de uma rebelião não só literária, mas de comportamento. Eles
acreditavam, de forma messiânica, que tinham uma missão, como destaca Willer, através
de uma declaração de Gisnberg: Nós temos um
grande trabalho a fazer, e nós o estamos fazendo, tentando salvar e curar o espírito
da América.
De Ginsberg, Willer cita desde a obsessão religiosa até os longos retiros
para meditação, além da presença de símbolos espiritualistas em seus poemas feitos
em forma de orações. É conhecida sua experiência de iluminação auditiva, na qual teria ouvido a voz de Blake, que ele tentaria
repetir até mesmo com o uso de alucinógenos.
Parte importante da história da geração beat – expressão que deriva da palavra
beatitude – está no romance On the Road,
de Jack Kerouac, apontado bem mais como uma
busca espiritual do que um guia de como se tornar um hipster por Howard Cunnel,
organizador e prefaciador de edição recente do manuscrito original do livro, citado
por Willer.
Kerouac, de formação católica, mergulhou ainda no gnosticismo e no budismo
que aparecem em boa parte de sua obra. Entre outros beats, inclui-se a poeta Diane
di Prima, budista, ocultista e professora de magia; Gary Snyder, budista convicto
e praticante da linha zen; Gregory Corso, tido como poeta católico, além de Neal
Cassidy – considerado, mais que um autor, um personagem importante do movimento
que, juntamente com sua mulher Carolyn, tornou-se
adepto de uma seita liderada pelo médium vidente Edgard Cayce.
Todos exemplos irreverentes de um anarquismo que vai da ascese à licenciosidade,
da meditação ao culto orgiástico. O livro é também um documento das influências
políticas, econômicas e sociais que determinaram a rebelião marcante na cena da
contracultura. Há de se ressaltar a presença do lúmpen no movimento – aquela categoria
de cidadãos com subempregos e tidos como ordinários, na contramão da burguesia –
além de uma facção marginal que inclui, por exemplo, Gregory Corso que entrou em
contato com a literatura na biblioteca de uma prisão, quando foi preso, acusado
de roubo, aos 17 anos.
Os Rebeldes faz um raio X das influências religiosas
e dos desvios morais que resultaram numa obra criativa, cuja pulsação de realidade
tem um viés de inacreditável ficção. Ressalta-se o conhecimento de Willer sobre
o assunto, incluindo sua troca de correspondência com Ginsberg, nos anos 80, quando
traduziu para o português o poema “Uivo”. Este poema é uma das criações mais emblemáticas
da geração que primou anarquicamente pela contestação de tudo.
[Publicação original: Carta Campinas, 20 de julho de 2014]
CÉLIA MUSILLI (Brasil, 1957). Jornalista, cronista e poeta. Autora de Londrina Puxa o Fio da Memória (2004), em parceria com Maria Angélica Abramo; Sensível Desafio (2006) e Todas as Mulheres em Mim (2010). Participou de várias outras publicações e coletâneas. É editora de Cultura da Folha de Londrina, onde também publica, há mais de 20 anos, crônicas aos domingos. Tem textos e poemas publicados nas revistas literárias Coyote, Germina, Agulha Revista de Cultura, Zunái, Mallarmargens, Revista da Biblioteca Nacional, Celuzlose, Diversos Afins, InComunidade (Portugal), entre outras. Integra a Antologia 101 Poetas Paranaenses, organizada por Ademir Demarchi (2014); e O Fio de Ariadne, organizada por Christine Vianna (2005). Também integra a coletânea As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira (2021), organizada por Rubens Jardim, e a Nova Antologia dos Poetas Londrinenses (2022). É mestra em Teoria e História Literária pela Unicamp, onde desenvolveu e defendeu em 2014 a dissertação Literatura e Loucura: a Transcendência Pela Palavra, sobre a obra da escritora Maura Lopes Cançado.
MIREYA BAGLIETTO (Argentina, 1936). Artista, ceramista, pintora, escultora e investigadora, creadora del Arte Núbico. De formación casi autodidacta, es considerada una artista atípica dentro del escenario de las artes visuales de su país. Ha realizado numerosas exposiciones, muchas de ellas a nivel internacional y ha sido reconocida con diversos premios por su trayectoria, incluyendo el premio Konex como una de las cinco figuras más importantes de la historia del arte cerámico argentino y el Gran premio de Honor del Salón Nacional de Artes Visuales. Durante su etapa de ceramista (1958-1978) creó el Taller para Estudios Cerámicos que lleva su nombre, donde se formaron numerosos ceramistas argentinos. A partir de 1985, cuando el Arte Núbico quedó establecido como una tendencia, desarrolló una vasta tarea de docencia tanto en su propio estudio como en diversos centros y universidades argentinas, trabajando sobre el despertar de la sensibilidad creativa en relación con la materia y el espacio atemporal.
Agulha Revista de Cultura
Número 248 | fevereiro de 2024
Artista convidado: Mireya Baglietto (Argentina, 1936)
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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