Dentro do
limitado espaço que oferece uma resenha e por sua inegável importância para os
estudos da História do Brasil, vai-se destacar aqui apenas o ensaio dedicado ao
historiador britânico Charles Ralph Boxer (1904-2000), grande conhecedor da
história colonial de Portugal e Holanda. Em linhas gerais, o que se pode
adiantar é que Boxer foi educado no Wellington College e no Royal Military
College, em Sandhurst, tendo sido tenente no regimento do Lincolnshire de 1923
a 1947.
Serviu na
Irlanda do Norte e, de 1930 a 1933, foi tradutor no Japão alocado ao Regimento
de Infantaria nº 38 com base em Nara. Em 1933, formou-se como intérprete
oficial da língua japonesa. Removido em 1936 para Hong Kong, que à época era colônia
britânica, serviu como oficial nas tropas britânicas na China, em serviços de
inteligência. Ferido em ação durante o ataque japonês a Hong Kong, em 8 de
dezembro de 1941, foi levado pelos japoneses como prisioneiro de guerra e
mantido em cativeiro até 1945, tendo sido torturado.
Mesmo
assim, quando libertado, ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), retornou
ao Japão como membro da Comissão Britânica no Extremo Oriente em 1946-1947.
Durante sua carreira militar, publicou mais de 80 livros e opúsculos sobre a
história do Oriente, sobretudo dos séculos XVI e XVII. Como major do Exército,
aposentou-se em 1947, quando o King's College, de Londres, ofereceu-lhe a cadeira
Camões de Português, cargo em que permaneceu até 1967. Nesse período, a Escola
de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres o nomeou seu
primeiro professor de História do Extremo Oriente, tendo servido no cargo de
1951 a 1953.
Ao se
aposentar em 1967 da Universidade de Londres, aceitou o posto de professor
visitante na Universidade de Indiana, onde serviu ainda como conselheiro na
Lilly Library. De 1969 a 1972, foi responsável pela cadeira de História da
Expansão Europeia no Ultramar na Universidade de Yale. Era um poliglota, pois,
além do inglês, falava com fluência os idiomas japonês, chinês, português,
espanhol e holandês.
II | Definido por Américo Jacobina Lacombe (1909-1993) como “o maior
representante da cultura inglesa interessada pelo mundo de língua portuguesa”,
Boxer é autor do notável Salvador de Sá e a luta
pelo Brasil e Angola, 1602-1686 (São Paulo, Companhia
Editora Nacional/Editora da Universidade de São Paulo-Edusp, 1973, tradução de
Olivério de Oliveira Pinto), publicado em 1952 em Londres. Essa obra, como
anteviu Lacombe, tem servido como modelo de construção para muitos
historiadores brasileiros, “pelo método, pela exatidão e pela arte que lhe dá
um tom de leitura palpitante”.
É de se
lembrar que Salvador Correia de Sá e Benevides (1602-1686) foi um militar do
império ultramarino português que, durante a Guerra da Restauração (1640-1668),
a serviço do reino de Portugal, destacou-se no comando da frota que, em 1647,
reconquistou Angola e São Tomé e Príncipe, terminando a ocupação holandesa. Foi
por três vezes governador da capitania do Rio de Janeiro.
O que
poucos sabem é da vida desdita que Boxer levou e que Maxwell levanta em seu
instigante ensaio, começando por chamá-lo de herói, no seu melhor sentido, definição
que passa longe das celebridades do esporte e do cinema ou da TV. E que,
segundo o historiador, teria sido vítima de “antigos ressentimentos, fofocas e
ciúmes de um mundo pós-colonial que agora trabalha para violar a reputação de
um indivíduo verdadeiramente complexo e notável”.
Faz Maxwell
essa observação a propósto de um artigo assinado pelo professor Hywel Williams (1953),
membro do Parlamento britânico, e publicado a 24 de fevereiro de 2001 no jornal
The Guardian, de Londres, em que o articulista reconhece Boxer
como “um bom soldado e brilhante historiador”, que, no entanto, “pode ter sido
um traidor que entregou seus antigos companheiros num campo de prisioneiros administrado
por japoneses em Hong Kong, de uma forma que minou todo o sistema de
inteligência britânico no Sudeste Asiático”.
Para
Williams, Boxer teria pertencido a uma geração de intelectuais britânicos que
“haviam abraçado o comunismo marxista de modelo soviético”. E por isso teria
sido “um exemplo espetacular de tentação em tempo de guerra”. Enfim, um
intelectual que, por sua formação marxista, teria funcionado como espião contra
os interesses ocidentais.
No mesmo The
Guardian, tradicional jornal fundado em 1821 e considerado a mais forte
voz liberal da Grã-Bretanha, observa
Maxwell, deu-se em 10 de março de 2001 a publicação de um artigo em que o
historiador norte-americano Dauril Alden
(1926) refutava as insinuações e acusações de Williams, observando que, longe
de ser o responsável pelo prolongamento da Segunda Guerra, Boxer foi quem disse
que não poderia haver erro maior do que considerar que os militares japoneses não
estavam profundamente enraizados na China. “Foram o Ministério da Guerra e o
Ministério das Relações Exteriores britânicos que ignoraram e subestimaram o
risco”, garantiu.
Coincidentemente,
Alden acabara de escrever uma biografia de Boxer que logo seria publicada pela
Fundação Oriente, em Lisboa, com o título Charles R. Boxer
– Uma vida incomum, soldado, historiador, professor,
colecionador, viajante. Segundo Maxwell, o professor Alden é um
“meticuloso estudioso da velha escola para a qual uma documentação sólida é o
núcleo dos estudos históricos”.
Levando isso
em conta, o jornal, segundo Maxwell, teria até removido o artigo de Williams de
seu site, tornando-o inacessível, uma forma de reconhecer que não
deveria ter publicado aquele texto com difamações e acusações infundadas ou sem
comprovação documental contra a honra “do mais honrado dos homens”, um
estudioso que, para gerações de historiadores de países de língua portuguesa,
era considerado “um verdadeiro colosso”.
III | De fato, como lembra Maxwell, Boxer escreveu, em mais de 350
publicações, textos da mais alta erudição sobre as guerras navais no Golfo
Pérsico no século XVI, as tribulações das rotas marítimas entre Europa e Ásia, traçou
um brilhante panorama do Brasil à época das descobertas do ouro e da expansão
das fronteiras no século XVII, “magnífica síntese da história colonial de
Portugal e Holanda, bem como estudos comparativos sobre instituições municipais
e sobre raça e relações sociais na Ásia, África e América do Sul”. Para o
historiador, o trabalho de Boxer sobre a
vida e obra de Salvador Correia de Sá e Benevides é um de seus melhores livros, pois conta “o
papel decisivo que ele teve na titânica luta entre os poderes ibéricos e os
holandeses pela hegemonia no Atlântico Sul no século XVII”.
IV | Da vida privada de Boxer, Maxwell lembra que ele teve em Hong Kong, em
1940, um affair com a jornalista
norte-americana Emily Hahn (1905-1997) que se tornou um dos romances mais
conhecidos do século XX. A essa época, porém, Boxer já era casado, desde 1939,
com Ursula Tulloch (1910-1996). Divorciaram-se em 1947. Emily Hahn foi por 70
anos uma das mais produtivas colaboradoras do jornal The NewYorker
e publicou 52 livros e centenas de artigos, reportagens e poemas. Seu affair
com Boxer está contado em seu livro China to me: a partial
autobiography (1944).
Segundo
Williams, o casal teria “colaborado” com os japoneses, o que para Maxwell “não
passaria de um esforço de imaginação”. Para Williams, Emily Hahn teria sido
“uma feminista e simpatizante do comunismo”, o que reforçaria a acusação de que
Boxer poderia ter atuado como agente duplo soviético dentro do governo
britânico. Com Emily Hahn, o historiador teve um casamento duradouro e duas
filhas.
Maxwell
lembra que Boxer sempre se recusou a escrever a sua autobiografia, apesar dos
obstáculos e lances curiosos que teve de superar em sua existência,
especialmentre como prisioneiro de guerra. Recusou também várias homenagens e
condecorações, embora nunca tenha deixado de atender a convites para
conferências. Em 1989, a convite de Maxwell, concedeu entrevista aos alunos do
Camões Center na Universidade de Colúmbia, quando afirmou que amava o Japão,
apesar da vida perigosa que levara e dos percalços que tivera de enfrentar com
os japoneses em Hong Kong: “Quando você é jovem, tem dinheiro e busca a luxúria
como uma águia, você sempre o faz”, acrescentou.
Para
Maxwell, Boxer, que enfrentou três anos de cativeiro, tortura e solidão, não
foi traidor nem herói, mas uma “pessoa com uma integridade feita de granito”. E
que poderia ser definido com uma palavra: stickler, termo que pode ser
entendido como aplicável a “uma pessoa tenaz e persistente, que sempre esteve
em busca da verdade”. E que Boxer atribui a Salvador de Sá na abertura de seu
livro sobre o navegador, a quem chama de “um velho e notável stickler”.
Fundou e
foi diretor do Centro Camões para o Mundo de Língua Portuguesa na Universidade
de Colúmbia e foi diretor de Programa da Tinker Foundation, Inc. De 1993 a
2004, foi revisor de livros do Hemisfério Ocidental para Relações Exteriores. É
colaborador regular da revista New York Review of Books, foi colunista
semanal entre 2007 e 2015 do jornal Folha de S.Paulo e é colunista
mensal de O Globo desde 2015.
É autor do
clássico A Devassa da Devassa (Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra,
1977), lançado em 1973 na Inglaterra com o título Conflicts and
Conspiracies: Brazil and Portugal, 1750-1808 (Cambridge University Press),
seu primeiro livro. Publicou também Marquês de Pombal - Paradoxo do
Iluminismo (1996), A Construção da Democracia em Portugal
(1999), Naked Tropics: essays on empire and other rogues (2003), Chocolate,
piratas e outros malandros (Editora Paz e Terra, 1999) e Mais malandros
e outros - ensaios tropicais (Editora Paz e Terra, 2005), entre
outros.
ADELTO GONÇALVES (Brasil, 1951). Jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos-SP, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.
ILCA BARCELLOS (Brasil, 1955) | Artista Visual, Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestre em Biologia Vegetal pela Université Pierre et Marie Curie – Paris VI, por muitos anos foi professora de biologia no Colégio de Aplicação da UFSC onde já recorria aos desenhos e às formas orgânicas tridimensionais de seres vivos – representando organelas, sistemas e organismos, em massa de modelagem – como recurso didático. Em 2006, ingressou no campo artístico por meio da cerâmica, participando de exposições coletivas nacionais e internacionais. Ampliando sua produção artística, explora atualmente outros materiais – tecidos, espuma expansiva de poliuretano, EVA, madeira, metal – e diversas linguagens – instalação, pintura, desenho, fotografia, vídeo. Em seu processo investiga as possibilidades conceituais que tangem um duplo percurso: científico e artístico; e busca indagar através de sua produção a poética do pulsar, do devir. Participa de salões nacionais e internacionais desde 2007. Em 2008 através do Salão dos Jovens Artistas de Santa Catarina ganhou o Prêmio Aquisição do Museu de Arte de Santa Catarina – MASC e em 2016 ganhou terceiro lugar do 1º Salão de Artes Visuais de Navegantes, SC. Participou de residências artísticas no Canadá e Cuba. Artista convidada da presente edição da Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 252 | junho de 2024
Artista convidada: Ilca Barcellos (Brasil, 1955)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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