DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA
Agulha Revista de Cultura
casa
mal dormi nas
últimas noites
andei tendo pesadelos
minha mãe me
diz ao telefone
sonhei que você
tinha morrido
sonhei duas noites
seguidas
que você tinha
morrido
ela diz depois
da minha insistência
é estranho estar
na mesma cidade
no mesmo bairro
que ela
mas tão longe
a saudade essa
métrica
imprecisa para
distâncias
minha mãe está
do outro lado
da linha telefônica
quase outro continente
embora estejamos
no mesmo lugar
casa
e eu me sinta
cada vez mais estrangeira
em qualquer canto
do mundo
ORQUESTRA
Toda noite me debruço
sobre a janela que dá para uma cidade desabitada.
Penso que não cheguei
a conhecer nada sobre os moradores dos prédios que margeiam minha rua.
A história não tem
importância nenhuma, você diz
as coisas que mais
amei na vida são imagens esparsas, perdidas.
A dor se expande
no tempo, não no espaço.
Presto atenção no
som das estrelas se movendo.
Parece que alteraram
a trajetória do planeta.
Abril dura um ano
inteiro. Talvez junho se transforme em dezembro. Fevereiro tem a distância de um
sonho.
Enxergo Saturno pela
aba do chapéu que não enfrenta mais o sol.
Desfaço o coque para
recuperar o lápis amarelo.
É possível reger
uma orquestra inteira
com um lápis amarelo.
Improviso passos
ao som de uma sonata de Mozart
o trajeto da sala
percorrido com a vassoura em gala.
Não posso mais me
perder por essa cidade
então procuro esconderijos
pelos corredores, atrás das portas, dos vestidos compridos
meus ouvidos se esquecem
aos poucos dos sons produzidos por uma rua.
Talvez eu esteja
ficando surda.
O barulho da máquina
de lavar também pode ser uma música
assim como os alarmes
que disparam
o cachorro pedindo
alguma coisa a um fantasma.
Uma vela está acesa
no sétimo andar do prédio da frente.
Os pavios queimam
mais devagar do que eu gostaria.
Um enterro. Um réquiem.
Enquanto isso lá
fora rostos se cobrem
buracos se abrem.
O céu azul é quase
uma ofensa.
Minha avó não foi
feliz
enquanto cruzava
a Europa tremendo, temendo
e procurando uma
bomba invisível
que também não consigo
enxergar
daqui da janela
mas está caindo
em silêncio
em algum lugar tão
longe
em algum lugar não
longe daqui.
CARTOMANTE
tomar decisões
é a melhor forma
de prever o futuro
PLUMA
escrevo esse poema
no centésimo sexto dia sem te ver
começo a esquecer
sua voz
a memória precisaria
de fotografias
para recriar sua
imagem
você já prestou atenção
que lembrar é de
certa forma aproximar
do esquecimento?
lembrar é tornar
algo cada vez mais
distante do real
depois de vividas
as lembranças vão
para o lóbulo pré-frontal
depois para o hipocampo
uma área mais profunda
do cérebro
mais longe de todos
aqueles agoras
volto aos acontecimentos
como regatasse um
náufrago
como se eu pudesse
te salvar
estico os braços
quase te encosto
apesar da distância
o desejo nos faria
levitar
se essas coisas existissem
você me acorda de
madrugada
não porque dorme
ao lado
não sei sequer se
dorme
se pensa em mim ao
menos
ao mesmo tempo em
que penso em você
isso poderia ser
o diálogo de um filme
assim poderíamos
desinventar esse pensamento
que não ocupa espaço
algum
esse pensamento pluma
com força para erguer
um monumento
um móbile do Calder
orbitando sobre nossas cabeças
ROSTO
se você fechar os
olhos agora
talvez não se lembre
da mulher
“bonita”
com quem cruzou na
esquina
suas feições desapareceriam
no sono perdido da
madrugada
por mais pesados
que fossem os cabelos
por mais ritmado
o balanço do corpo desafiando
a gravidade nos passos
firmes
se você fechar os
olhos agora
é mais provável que
consiga lembrar
do motivo da risada,
do arrepio, do toque, do entusiasmo das palavras, da conexão cerebral
esses atravessamentos
provocados por outra
pessoa
a sensação é invisível
e talvez por isso se fixe
para além
a imagem escapa como
o cão amedrontado
a ideia não anotada
sobreposta por outra
o batom que extrapola
os contornos da boca
quando se deveria
prestar mais atenção
às palavras que profere
você não gostaria
de colecionar álbuns
de sensações?
um arquivo de como
determinadas pessoas te fizeram sentir
e voltar a elas de
tempos em tempos
por mais que não
possa
lembrar das listras
na íris, da amplitude dos braços quando dançam, do abaulado na base do
pescoço por mais
que a memória não tenha rosto
TARŌ OKAMOTO (Japão, 1911-1996). Filho do cartunista Ippei Okamoto e da escritora Kanoko Okamoto. Estudou na Sorbonne nos anos 1930 e criou muitas obras de arte, após a II Guerra Mundial. Foi um artista e escritor prolífico até sua morte. Entre os artistas com os quais Okamoto se associou durante a sua estadia em Paris estiveram André Breton e Kurt Seligmann, este último uma autoridade surrealista em magia e que conheceu os pais de Okamoto durante uma viagem ao Japão, em 1936. Okamoto também se associou com Pablo Picasso, Man Ray, Robert Capa e sua parceira, Gerda Tarō, que adotou o primeiro nome de Okamoto como seu próprio sobrenome. Em 1964, Tarō Okamoto publicou um livro intitulado Shinpi Nihon (Mistérios no Japão). Seu interesse em mistérios japoneses foi provocado por uma visita feita ao Museu Nacional de Tóquio. Depois de ficar intrigado com a cerâmica Jōmon que encontrou lá, ele viajou por todo o Japão para investigar o que entendia como o mistério que se encontra sob a cultura japonesa e, em seguida, publicou Nihon Sai hakken – Geijutsu Fudoki (Redescoberta do Japão – Topografia de Arte). Tarō Okamoto é o artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura, e sua presença entre nós se deu graças à generosidade do bailarino e tradutor Daniel Aleixo. Sugerimos visitar o Museu de Arte Tarō Okamoto: https://taro-okamoto.or.jp.
Agulha Revista de Cultura
Número 259 | janeiro de 2025
Artista convidado: Tarō Okamoto (Japão, 1911-1996)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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