quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

LUIZA MUSSNICH (1991)

DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA Agulha Revista de Cultura

 


Luiza Mussnich nasceu no Rio de Janeiro, em 1991. Poeta, autora dos livros: Lágrimas não caem no espaço (2018), Tudo coisa da nossa cabeça (2021) e Todo o resto é muito cedo (2024). Luiza flerta com os gêneros literários, transita entre linguagens híbridas, como o ensaio, a prosa poética e as artes visuais, e expande o diálogo entre gerações. Em sua poética é possível encontrar referências que expandem o território literário, em conversas com Duchamp, Alberto Giacometti, Maria Martins e Agnès Varda, entre outros. Alguns poemas do livro fornecem informações que se complementam, se reescrevem e se contradizem, tremem entre as fronteiras dos gêneros, sem que se possa saber se leu poesia ou um ensaio.

 

 

casa

 

mal dormi nas últimas noites

andei tendo pesadelos

minha mãe me diz ao telefone

sonhei que você tinha morrido

sonhei duas noites seguidas

que você tinha morrido

ela diz depois da minha insistência

 

é estranho estar na mesma cidade

no mesmo bairro que ela

mas tão longe

a saudade essa métrica

imprecisa para distâncias

 

minha mãe está do outro lado

da linha telefônica

quase outro continente

embora estejamos no mesmo lugar

casa

e eu me sinta cada vez mais estrangeira

em qualquer canto do mundo

 

 

ORQUESTRA

 

Toda noite me debruço sobre a janela que dá para uma cidade desabitada.

Penso que não cheguei a conhecer nada sobre os moradores dos prédios que margeiam minha rua.

A história não tem importância nenhuma, você diz

as coisas que mais amei na vida são imagens esparsas, perdidas.

A dor se expande no tempo, não no espaço.

Presto atenção no som das estrelas se movendo.

Parece que alteraram a trajetória do planeta.

Abril dura um ano inteiro. Talvez junho se transforme em dezembro. Fevereiro tem a distância de um sonho.

Enxergo Saturno pela aba do chapéu que não enfrenta mais o sol.

Desfaço o coque para recuperar o lápis amarelo.

É possível reger uma orquestra inteira

com um lápis amarelo.

Improviso passos ao som de uma sonata de Mozart

o trajeto da sala percorrido com a vassoura em gala.

Não posso mais me perder por essa cidade

então procuro esconderijos pelos corredores, atrás das portas, dos vestidos compridos

meus ouvidos se esquecem aos poucos dos sons produzidos por uma rua.

Talvez eu esteja ficando surda.

O barulho da máquina de lavar também pode ser uma música

assim como os alarmes que disparam

o cachorro pedindo alguma coisa a um fantasma.

Uma vela está acesa no sétimo andar do prédio da frente.

Os pavios queimam mais devagar do que eu gostaria.

Um enterro. Um réquiem.

Enquanto isso lá fora rostos se cobrem

buracos se abrem.

O céu azul é quase uma ofensa.

Minha avó não foi feliz

enquanto cruzava a Europa tremendo, temendo

e procurando uma bomba invisível

que também não consigo enxergar

daqui da janela

mas está caindo

em silêncio

em algum lugar tão longe

em algum lugar não longe daqui.


 

CARTOMANTE

 

tomar decisões

é a melhor forma

de prever o futuro



PLUMA

 

escrevo esse poema no centésimo sexto dia sem te ver

começo a esquecer sua voz

a memória precisaria de fotografias

para recriar sua imagem

você já prestou atenção

que lembrar é de certa forma aproximar

do esquecimento?

lembrar é tornar algo cada vez mais

distante do real

 

depois de vividas

as lembranças vão para o lóbulo pré-frontal

depois para o hipocampo

uma área mais profunda do cérebro

mais longe de todos aqueles agoras

 

volto aos acontecimentos

como regatasse um náufrago

como se eu pudesse te salvar

estico os braços

quase te encosto apesar da distância

o desejo nos faria levitar

se essas coisas existissem

 

você me acorda de madrugada

não porque dorme ao lado

não sei sequer se dorme

se pensa em mim ao menos

ao mesmo tempo em que penso em você

isso poderia ser o diálogo de um filme

assim poderíamos desinventar esse pensamento

que não ocupa espaço algum

esse pensamento pluma

com força para erguer um monumento

um móbile do Calder orbitando sobre nossas cabeças

 

 

ROSTO

 

se você fechar os olhos agora

talvez não se lembre da mulher

“bonita”

com quem cruzou na esquina

suas feições desapareceriam

no sono perdido da madrugada

por mais pesados que fossem os cabelos

por mais ritmado o balanço do corpo desafiando

a gravidade nos passos firmes

 

se você fechar os olhos agora

é mais provável que consiga lembrar

do motivo da risada, do arrepio, do toque, do entusiasmo das palavras, da conexão cerebral

esses atravessamentos

provocados por outra pessoa

a sensação é invisível e talvez por isso se fixe

para além

a imagem escapa como o cão amedrontado

a ideia não anotada

sobreposta por outra

o batom que extrapola os contornos da boca

quando se deveria prestar mais atenção

às palavras que profere

 

você não gostaria de colecionar álbuns

de sensações?

um arquivo de como determinadas pessoas te fizeram sentir

e voltar a elas de tempos em tempos

por mais que não possa

lembrar das listras na íris, da amplitude dos braços quando dançam, do abaulado na base do

pescoço por mais

que a memória não tenha rosto




TARŌ OKAMOTO (Japão, 1911-1996). Filho do cartunista Ippei Okamoto e da escritora Kanoko Okamoto. Estudou na Sorbonne nos anos 1930 e criou muitas obras de arte, após a II Guerra Mundial. Foi um artista e escritor prolífico até sua morte. Entre os artistas com os quais Okamoto se associou durante a sua estadia em Paris estiveram André Breton e Kurt Seligmann, este último uma autoridade surrealista em magia e que conheceu os pais de Okamoto durante uma viagem ao Japão, em 1936. Okamoto também se associou com Pablo Picasso, Man Ray, Robert Capa e sua parceira, Gerda Tarō, que adotou o primeiro nome de Okamoto como seu próprio sobrenome. Em 1964, Tarō Okamoto publicou um livro intitulado Shinpi Nihon (Mistérios no Japão). Seu interesse em mistérios japoneses foi provocado por uma visita feita ao Museu Nacional de Tóquio. Depois de ficar intrigado com a cerâmica Jōmon que encontrou lá, ele viajou por todo o Japão para investigar o que entendia como o mistério que se encontra sob a cultura japonesa e, em seguida, publicou Nihon Sai hakkenGeijutsu Fudoki (Redescoberta do JapãoTopografia de Arte). Tarō Okamoto é o artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura, e sua presença entre nós se deu graças à generosidade do bailarino e tradutor Daniel Aleixo. Sugerimos visitar o Museu de Arte Tarō Okamoto: https://taro-okamoto.or.jp.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 259 | janeiro de 2025

Artista convidado: Tarō Okamoto  (Japão, 1911-1996)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 





  

 

 

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