DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA
Agulha Revista de Cultura
SANTA CRUZ
Constança foi ao céu me visitar
seu vestido era verde
como as pedras
de Itacoatiara
trazia nos olhos
um canarinho
um buquê de flores
e os seios de minha mãe
soprou em meus pulmões
como quem salva um
afogado
nas terras ínvias do coração
inundadas
de pranto
e algaravia
deitou ali todas as flores
como se fosse o Éden
num céu terrivelmente
azul
(havemos
todos de ressuscitar
um dia sob esse mesmo
azul )
o vento de meus pulmões
canta e
silencia
recua e avança
não escondo minhas lágrimas
Jesus também
chorou
no Jardim das Oliveiras
a vida é um arquipélago
de amor atormentado
uma Roma
que se
debate em delírios
enquanto espera
a chegada
dos bárbaros
ou a vinda
fulminante
do Messias
VESTÍGIOS DE MAR
Vestígios de mar
na cerração
do hospital
vejo as costas de Benin e
Moçambique
sou um navio
desapossado
preso a liames
e cordoalhas
içam
da garganta
a âncora
que baixaram de madrugada
a voz
do médico
ao longe
você sabe
onde está?
claro que sim
estou
em mar português
e o Patriarca de Lisboa
manda lembranças
ao Samorim
para Marcos Mendonça
AS PLÊIADES
São mais de mil
demônios
que povoam,
estrelas
solitárias!,
o vórtice
da noite…
Órion
volta
para as Plêiades
seu arco
luminoso
e a flecha
pontiaguda
torna
mais fria
nossa dor
e mais
espessa…
Súbita
flecha
fere
e arrebata
os mais de mil
demônios
que povoam,
no vórtice
do tempo,
a noite
fria
MODO INAUGURAL
Na luz deserta
do primeiro dia
está quebrada
a supersimetria
e assim despontam
múltiplos destinos
no mar onipresente
de neutrinos…
e vagam quase-seres
pelo mundo
lançados num abismo
alto e profundo
na luta intempestiva
onde se plasma
o modo inaugural
do protoplasma…
a sombra luminosa
de um quasar
e as formas múltiplas
de ser e estar
as quase borboletas
e sabores
de quarks, e de sombras,
e motores…
na antemanhã de rosas
o arrebol
e o quase amor que rege
o pôr-do-sol
resíduos de giocondas
beatrizes
sonhando com poetas
infelizes…
assim agia Deus
sive natura
na zona fria
da matéria escura
e o rígido
combate prosseguia
do ser e do não ser,
e ainda prossegue,
que o nada
se insinua noite e dia
[A NATUREZA, EM SEU AMOR ARDENTE]
A natureza, em seu amor ardente,
no círculo da própria negação,
em ouro, pedra e sal ambivalente,
trabalha na perene transição.
Dissolve e coagula eternamente
a vida, que renasce, em floração,
da morte, como a lua refulgente,
surgindo na profunda escuridão.
Na síntese do velho Magofonte,
a vívida matéria se desfaz
em águas claras, na secreta fonte:
até que inesperada se refaz,
envolta, como a Uroburos insonte,
num círculo sutil que não se esfaz.
TARŌ OKAMOTO (Japão, 1911-1996). Filho do cartunista Ippei Okamoto e da escritora Kanoko Okamoto. Estudou na Sorbonne nos anos 1930 e criou muitas obras de arte, após a II Guerra Mundial. Foi um artista e escritor prolífico até sua morte. Entre os artistas com os quais Okamoto se associou durante a sua estadia em Paris estiveram André Breton e Kurt Seligmann, este último uma autoridade surrealista em magia e que conheceu os pais de Okamoto durante uma viagem ao Japão, em 1936. Okamoto também se associou com Pablo Picasso, Man Ray, Robert Capa e sua parceira, Gerda Tarō, que adotou o primeiro nome de Okamoto como seu próprio sobrenome. Em 1964, Tarō Okamoto publicou um livro intitulado Shinpi Nihon (Mistérios no Japão). Seu interesse em mistérios japoneses foi provocado por uma visita feita ao Museu Nacional de Tóquio. Depois de ficar intrigado com a cerâmica Jōmon que encontrou lá, ele viajou por todo o Japão para investigar o que entendia como o mistério que se encontra sob a cultura japonesa e, em seguida, publicou Nihon Sai hakken – Geijutsu Fudoki (Redescoberta do Japão – Topografia de Arte). Tarō Okamoto é o artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura, e sua presença entre nós se deu graças à generosidade do bailarino e tradutor Daniel Aleixo. Sugerimos visitar o Museu de Arte Tarō Okamoto: https://taro-okamoto.or.jp.
Agulha Revista de Cultura
Número 259 | janeiro de 2025
Artista convidado: Tarō Okamoto (Japão, 1911-1996)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
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