quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

JOSÉ SANTIAGO NAUD (1930-2020)

DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA Agulha Revista de Cultura

 


José Santiago Naud (1930-2020). Poeta, ensaísta, formado em Letras Clássicas, Naud era autor de dezenas de obras, dedicando-se especialmente à poesia e à crítica literária, estando ainda entre os professores fundadores da UnB (Universidade de Brasília) e entre os fundadores da Associação Nacional de Escritores. Em 29 de janeiro de 1954, ele participou, juntamente com Manoel Sarmento Barata, da fundação do IEL, tendo atuado também na direção do instituto nos primeiros anos. Autor de uma vasta bibliografia, destacamos alguns, a estreia com Poemas sem domingo, 1952; seguido de Hinos quotidianos, 1960; A geometria das águas, 1963; O centauro e a lua, 1964; Ofício humano, 1966; Verbo intranquilo, 1967; HB promontorio milenario, 1983; Pedra azteca, 1985; Vez de Eros, 1987; Os avessos do espelho, 1996; até a obra completa em dois volumes: Fábrica de ritos, 2008-2011; e a magnífica edição de Cara de cão, 2018.



ROMANCE

 

Fruto de solidão

preso à fronde do vento,

lua, tu nos dás

a medida do eterno,

essa altura que jogas

contra o espaço celeste

em nós refere a terra,

que em nossa ânsia integras.

E ao nosso amor integras

tudo o que não sofremos,

tudo o que não tivemos

e apenas pressentimos,

em tua marcha sentimos

tudo o que não teremos

e tudo o que já viveram

corações noutros tempos.

Flanco de solidão,

maçã casta e sensual

presa ao ramo oscilante

entre a alma e o carnal,

em ti, suprema altura,

os olhos vão reunindo

as trilhas do abandono

e alguns ecos da infância.

 

Pata branca de touro

extraviada no azul.

 

 

A DAMA DE ELCHE

 

Seus olhos

pararam no limiar. Mas a morte

participa também do mistério da vida,

e essas amêndoas que mantém

explícitas ao nada, anunciam

outra árvore em nós.

 

Toda a feição já se concentra

no que os olhos não dizem. Antes

fossem fechados,

como os lábios na dureza do mento,

e a ciência ou a razão que nos perturba

não deixariam no berloque aguerrido

essa espantosa serenidade gélida de amor.

 

Mulher-senhora. Mãe?

Nos adornos

da espera, (nossa

a dúvida) fica a vida

que freme, e os abismos

que a beleza flanqueiam. Até que os pés

alados

despertem a princesa. Então,

Deus a recolhe,

e roça

nossas parcas medidas. A morte

desancora. Pela rigidez

da inacessível máscara, escorre

como as chuvas

o seu íntimo trabalho de existir.

 

 

AMOR

 

Dentro da noite,

o som escuro de um monjolo

pilão como nós chamávamos

e a azenha mais distante, denunciavam

a clareza do riacho.

 

A fantástica visão do passado,

memória contando histórias!

 

Da janela fechada

uma frincha de luz ia incidir

no galho pendido, nítido aos meus olhos.

E bem na ponta , seio tentando

a rósea, a serena forma do pêssego

em sua penugem puro e obsceno!

Havia vento, (não sei)

mas devia haver

quando o urubu, tétrico

e hirto no seu desequilíbrio,

pousou sobre a planta

e o fruto bicou,

e o fruto bicou

bem no jacto de luz.



ELEGIA DA CHUVA AO ANOITECER

 

Bem difícil é o caminho na bruma

ao anoitecer, sem que a alma sinta a mancha

da memória, ou saudade

difícil de definir,

coando-se pelos galhos.

 

Bem difícil é suportar a chuva

ao anoitecer, sem que os pés se molhem

ou a alma se encharque de lembranças

da infância,

guardada em velhos baús.

 

Porque é difícil, ai,

marchar sobre a terra

quando as fomes do céu se rompem

e tudo inundam.

 

Quando morre um homem,

alguma coisa se vai

mas todo ele fica, na libertação dos gestos

que memorizam no sangue

a lembrança de um adjetivo

muito comum aos vivos se referindo aos monos.

 

O próprio morto esquece talvez

que o seu caminho ao anoitecer era, sem dúvida,

o mais consentâneo com as faces

ruborizadas no silêncio,

o pensamento inconfessável

equívoco demais para escorrer dos galhos.

 

E o morro, então,

lá do mundo aninhado no mais fundo

de nós – que ainda vivemos,

soluça implorando a Deus na penumbra do juízo

o legado melhor que os vivos lhe deixaram:

 

Requiescal in pace.

 

 

ENQUANTO O VENTO RODA

 

Enquanto o vento roda lá fora

e uma folha amarela bate na vidraça

a candeia ali dentro flui essa flor de luz

em torno da mesa

e o chantre conversa com a esposa

enquanto compõe sua música. Tranquilidade

de fazer o pão para todos

sem estar de candeia às avessas

nem acendê-la para deixar-la embaixo da cama.

Mais irmão ainda, o cão

se enrola no meio das pernas

e ele o deixa ficar assim

um cachorro astuto

prisioneiro do sono e do tempo

como um romance. doce paz

e instante dourado

que duram enquanto lá fora desatam-se os ventos

e ruge a destruição – estremeção do mundo

sem cão nem gato, rato

roendo a perfeição

enquanto a música harmoniza as puras dissonâncias

e entre marido e mulher a candeia

incendeia o aqui

mas habita sem tempo

o centro da harmonia.

 

 

EM QUE LUGAR FICOU

 

Em que lugar ficou

o cruzeiro no meio do caminho

com a ermida mais adiante onde a estrada bifurca?

Já não sei.

Sei que ficou

passando a geografia para a mente

e no fundo de mim o fim da tarde

emoldurando um roble e a montanha posta do lado,

mais longe

a densa natureza da pedra e o ar fino

prende ainda ali o inverno frio

freiras fiapos de outono

e é a retidão de álamo a paisagem vazia

imóveis

dentro de mim. Não sei

nem quero saber:

essa estrada

essa curva e esse quadro

parado no fundo de mim

caminho de partida

ficando

enquanto o auto arfa e para

lentamente

arqueja e jogue a última pulsação

antes que eu baixe e te tome nos braços

meu amor

não vai até o fim da tarde.

Beijo fundamentalmente a tua boca

com um beijo radical

esse quadro que ficou ali

ignorar

não vai até o fim da tarde

e o guardamos para sempre

apócrifo no pó dos nossos nomes.




TARŌ OKAMOTO (Japão, 1911-1996). Filho do cartunista Ippei Okamoto e da escritora Kanoko Okamoto. Estudou na Sorbonne nos anos 1930 e criou muitas obras de arte, após a II Guerra Mundial. Foi um artista e escritor prolífico até sua morte. Entre os artistas com os quais Okamoto se associou durante a sua estadia em Paris estiveram André Breton e Kurt Seligmann, este último uma autoridade surrealista em magia e que conheceu os pais de Okamoto durante uma viagem ao Japão, em 1936. Okamoto também se associou com Pablo Picasso, Man Ray, Robert Capa e sua parceira, Gerda Tarō, que adotou o primeiro nome de Okamoto como seu próprio sobrenome. Em 1964, Tarō Okamoto publicou um livro intitulado Shinpi Nihon (Mistérios no Japão). Seu interesse em mistérios japoneses foi provocado por uma visita feita ao Museu Nacional de Tóquio. Depois de ficar intrigado com a cerâmica Jōmon que encontrou lá, ele viajou por todo o Japão para investigar o que entendia como o mistério que se encontra sob a cultura japonesa e, em seguida, publicou Nihon Sai hakkenGeijutsu Fudoki (Redescoberta do JapãoTopografia de Arte). Tarō Okamoto é o artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura, e sua presença entre nós se deu graças à generosidade do bailarino e tradutor Daniel Aleixo. Sugerimos visitar o Museu de Arte Tarō Okamoto: https://taro-okamoto.or.jp.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 259 | janeiro de 2025

Artista convidado: Tarō Okamoto  (Japão, 1911-1996)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 





  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário