DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA
Agulha Revista de Cultura
ROMANCE
Fruto de solidão
preso à fronde
do vento,
lua, tu nos dás
a medida do eterno,
essa altura que
jogas
contra o espaço
celeste
em nós refere
a terra,
que em nossa
ânsia integras.
E ao nosso amor
integras
tudo o que não
sofremos,
tudo o que não
tivemos
e apenas pressentimos,
em tua marcha
sentimos
tudo o que não
teremos
e tudo o que
já viveram
corações noutros
tempos.
Flanco de solidão,
maçã casta e
sensual
presa ao ramo
oscilante
entre a alma
e o carnal,
em ti, suprema
altura,
os olhos vão
reunindo
as trilhas do
abandono
e alguns ecos
da infância.
Pata branca de
touro
extraviada no
azul.
A DAMA DE ELCHE
Seus olhos
pararam no limiar.
Mas a morte
participa também
do mistério da vida,
e essas amêndoas
que mantém
explícitas ao
nada, anunciam
outra árvore
em nós.
Toda a feição
já se concentra
no que os olhos
não dizem. Antes
fossem fechados,
como os lábios
na dureza do mento,
e a ciência ou
a razão que nos perturba
não deixariam
no berloque aguerrido
essa espantosa
serenidade gélida de amor.
Mulher-senhora.
Mãe?
Nos adornos
da espera, (nossa
a dúvida) fica
a vida
que freme, e
os abismos
que a beleza
flanqueiam. Até que os pés
alados
despertem a princesa.
Então,
Deus a recolhe,
e roça
nossas parcas
medidas. A morte
desancora. Pela
rigidez
da inacessível
máscara, escorre
como as chuvas
o seu íntimo
trabalho de existir.
AMOR
Dentro da noite,
o som escuro de um monjolo
–
pilão como nós chamávamos –
e a azenha mais distante, denunciavam
a clareza do riacho.
A fantástica visão do passado,
memória contando histórias!
Da janela fechada
uma frincha de luz ia incidir
no galho pendido, nítido aos meus olhos.
E bem na ponta –,
seio tentando –
a rósea, a serena forma do pêssego
em sua penugem –
puro e obsceno!
Havia vento, (não sei)
mas devia haver
quando o urubu, tétrico
e hirto no seu desequilíbrio,
pousou sobre a planta
e o fruto bicou,
e o fruto bicou
bem no jacto de luz.
ELEGIA DA CHUVA AO ANOITECER
Bem difícil é o caminho na bruma
ao anoitecer, sem que a alma sinta a mancha
da memória, ou saudade
difícil de definir,
coando-se pelos galhos.
Bem difícil é suportar a chuva
ao anoitecer, sem que os pés se molhem
ou a alma se encharque de lembranças
da infância,
guardada em velhos baús.
Porque é difícil, ai,
marchar sobre a terra
quando as fomes do céu se rompem
e tudo inundam.
Quando morre um homem,
alguma coisa se vai
mas todo ele fica, na libertação dos gestos
que memorizam no sangue
a lembrança de um adjetivo
muito comum aos vivos se referindo aos monos.
O próprio morto esquece talvez
que o seu caminho ao anoitecer era, sem dúvida,
o mais consentâneo com as faces
ruborizadas no silêncio,
o pensamento inconfessável
equívoco demais para escorrer dos galhos.
E o morro, então,
lá do mundo aninhado no mais fundo
de nós – que ainda vivemos,
soluça implorando a Deus na penumbra do juízo
o legado melhor que os vivos lhe deixaram:
Requiescal in pace.
ENQUANTO O VENTO
RODA
Enquanto o vento
roda lá fora
e uma folha amarela
bate na vidraça
a candeia ali dentro
flui essa flor de luz
em torno da mesa
e o chantre conversa
com a esposa
enquanto compõe sua
música. Tranquilidade
de fazer o pão para
todos
sem estar de candeia
às avessas
nem acendê-la para
deixar-la embaixo da cama.
Mais irmão ainda, o
cão
se enrola no meio
das pernas
e ele o deixa ficar
assim
um cachorro astuto
prisioneiro do sono
e do tempo
como um romance.
doce paz
e instante dourado
que duram enquanto
lá fora desatam-se os ventos
e ruge a destruição
– estremeção do mundo
sem cão nem gato,
rato
roendo a perfeição
enquanto a música
harmoniza as puras dissonâncias
e entre marido e
mulher a candeia
incendeia o aqui
mas habita sem tempo
o centro da
harmonia.
EM QUE LUGAR FICOU
Em que lugar ficou
o cruzeiro no meio
do caminho
com a ermida mais
adiante onde a estrada bifurca?
Já não sei.
Sei que ficou
passando a geografia
para a mente
e no fundo de mim o
fim da tarde
emoldurando um roble
e a montanha posta do lado,
mais longe
a densa natureza da
pedra e o ar fino
prende ainda ali o
inverno frio
freiras fiapos de
outono
e é a retidão de
álamo a paisagem vazia
imóveis
dentro de mim. Não
sei
nem quero saber:
essa estrada
essa curva e esse
quadro
parado no fundo de
mim
caminho de partida
ficando
enquanto o auto arfa
e para
lentamente
arqueja e jogue a
última pulsação
antes que eu baixe e
te tome nos braços
meu amor
não vai até o fim da
tarde.
Beijo
fundamentalmente a tua boca
com um beijo radical
esse quadro que
ficou ali
ignorar
não vai até o fim da
tarde
e o guardamos para
sempre
apócrifo no pó dos
nossos nomes.
TARŌ OKAMOTO (Japão, 1911-1996). Filho do cartunista Ippei Okamoto e da escritora Kanoko Okamoto. Estudou na Sorbonne nos anos 1930 e criou muitas obras de arte, após a II Guerra Mundial. Foi um artista e escritor prolífico até sua morte. Entre os artistas com os quais Okamoto se associou durante a sua estadia em Paris estiveram André Breton e Kurt Seligmann, este último uma autoridade surrealista em magia e que conheceu os pais de Okamoto durante uma viagem ao Japão, em 1936. Okamoto também se associou com Pablo Picasso, Man Ray, Robert Capa e sua parceira, Gerda Tarō, que adotou o primeiro nome de Okamoto como seu próprio sobrenome. Em 1964, Tarō Okamoto publicou um livro intitulado Shinpi Nihon (Mistérios no Japão). Seu interesse em mistérios japoneses foi provocado por uma visita feita ao Museu Nacional de Tóquio. Depois de ficar intrigado com a cerâmica Jōmon que encontrou lá, ele viajou por todo o Japão para investigar o que entendia como o mistério que se encontra sob a cultura japonesa e, em seguida, publicou Nihon Sai hakken – Geijutsu Fudoki (Redescoberta do Japão – Topografia de Arte). Tarō Okamoto é o artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura, e sua presença entre nós se deu graças à generosidade do bailarino e tradutor Daniel Aleixo. Sugerimos visitar o Museu de Arte Tarō Okamoto: https://taro-okamoto.or.jp.
Agulha Revista de Cultura
Número 259 | janeiro de 2025
Artista convidado: Tarō Okamoto (Japão, 1911-1996)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
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