DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA
Agulha Revista de Cultura
GRITO
Não, não irei sem grito.
Minha voz nesse dia subirá.
E eu me erguerei também.
Solitária. Definida.
As portas adormecidas abrirão
passagem para o mundo
Meus sonhos, meus fantasmas,
meus exércitos derrotados,
sacudirão o silêncio de convenção
e as máscaras de piedade
compungida.
Dispensarei as rosas, as
violetas,
os absurdos véus sobre meu
rosto.
Serei eu mesma. Estarei
inteira sobre a mesa.
As mãos vazias e crispadas,
os olhos acordados,
a boca vincada de amargor.
Não. Não irei sem grito.
Abram as portas adormecidas,
levantem as cortinas,
abaixem as vozes
e as máscaras –
que eu vou sair inteira.
Eu mesma. Solitária.
Definida.
RETRATO
Chego junto do espelho. Olho
meu rosto.
Retrato de uma moça sem beleza.
Dois grandes olhos tristes
como agosto,
olhando para tudo com tristeza!
Pequeno rosto oval. Lábios
fechados
para não revelar o meu segredo...
Os cabelos mostrando, sem
cuidados,
Uns fios brancos que chegaram
cedo.
A longa testa aberta, pensativa.
No meio um traço, leve, vertical,
indicando uma ideia muito
viva
e os sérios pensamentos:
– o meu mal!...
O corpo bem magrinho e pequenino.
– Sete palmos de altura, com certeza. –
Tamanho de qualquer guri
menino
que a idade, a gente fica
na incerteza!
E nada mais. A alma? Ninguém
vê.
O coração? Coitado! está
bem doente.
Não ama. Não odeia. Já não
crê...
E a tudo vive alheio, indiferente!...
Meu retrato. Eis aí: Bem
igualzinho.
O espelho é meu amigo. Nunca
mente.
No meu quarto, ele é o móvel
mais velhinho.
E sabe desde quando estou
descrente!...
GRILO
Um grilo fere
o silêncio com seu
canto.
Fere ouvidos
fere alma
pensamento
e solidão.
Risca o vidro
da janela.
Traça desenhos
no ar. Vai
crescendo
de insistência.
Parece agulha
de vidro. Fina
lâmina cortante
abrindo sulcos
no ar.
Vai o canto
se adensando
de mistura
com a chuva
Vai o canto
se adensando
de mistura
com o vento.
Grilo e chuva
na janela.
Grilo e vento
na vidraça.
Vento e chuva,
grilo e vento
levaram meu pensamento
e o desfolharam
no ar.
FLORESTA
De olhos fechados
mergulho em teu ventre.
Perfumes se encontram
no meu rosto. Braços
apanham meus cabelos.
Braços leves, pesados,
amorosos ou rudes,
Braços de cedro
ou espinheiro,
de parasitas
ou cravos selvagens.
No ar e na boca
um gosto de erva
amanhecida. Um gosto
de coisa lavada.
Um ar de chuva
e terra. Um gosto
de mundo amanhecendo.
Oh, enveredar
por esse mundo livre
e ser uma entre as árvores
que formam o volume
do teu rosto.
Enveredar por esse mundo
livre.
Conhecer a geografia
do teu peito. Misturar-me
à conversa das folhas
e adivinhar o casamento
secreto das raízes!
CANÇÃO DA CHUVA
Cai uma chuva tão fina
que quase nem molha a gente.
É uma música em surdina
que apenas a alma sente.
Junto meu rosto à vidraça
e olho a rua sem pensar.
Fico em estado de graça,
como quem vai comungar.
Senhora dos mundos vivos,
Nossa Senhora da Vida,
quantos dias negativos
na minha estrada perdida!
Senhora tu não devias
permitir tantos enganos.
Há excesso de alegrias,
e excesso de desenganos.
Por onde andaram meus passos
vi sinais de desalentos.
Vaguei por muitos espaços
e senti todos os ventos.
Ventos do sul, vento norte,
ventos do leste e do oeste,
tão diversos como a sorte
que tu, na vida, nos deste.
Senhora dos mundos vivos,
Nossa Senhora da Vida –
quantos dias negativos
na minha estrada perdida!
TARŌ OKAMOTO (Japão, 1911-1996). Filho do cartunista Ippei Okamoto e da escritora Kanoko Okamoto. Estudou na Sorbonne nos anos 1930 e criou muitas obras de arte, após a II Guerra Mundial. Foi um artista e escritor prolífico até sua morte. Entre os artistas com os quais Okamoto se associou durante a sua estadia em Paris estiveram André Breton e Kurt Seligmann, este último uma autoridade surrealista em magia e que conheceu os pais de Okamoto durante uma viagem ao Japão, em 1936. Okamoto também se associou com Pablo Picasso, Man Ray, Robert Capa e sua parceira, Gerda Tarō, que adotou o primeiro nome de Okamoto como seu próprio sobrenome. Em 1964, Tarō Okamoto publicou um livro intitulado Shinpi Nihon (Mistérios no Japão). Seu interesse em mistérios japoneses foi provocado por uma visita feita ao Museu Nacional de Tóquio. Depois de ficar intrigado com a cerâmica Jōmon que encontrou lá, ele viajou por todo o Japão para investigar o que entendia como o mistério que se encontra sob a cultura japonesa e, em seguida, publicou Nihon Sai hakken – Geijutsu Fudoki (Redescoberta do Japão – Topografia de Arte). Tarō Okamoto é o artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura, e sua presença entre nós se deu graças à generosidade do bailarino e tradutor Daniel Aleixo. Sugerimos visitar o Museu de Arte Tarō Okamoto: https://taro-okamoto.or.jp.
Agulha Revista de Cultura
Número 259 | janeiro de 2025
Artista convidado: Tarō Okamoto (Japão, 1911-1996)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário