quarta-feira, 30 de abril de 2025

ALINE WENDPAP | Sala de cinema, cinco filmes

 


1. Ewé de Òsányìn: O segredo das folhas (Brasil, 2021) |
Direção: Pâmela Peregrino.

Apresentada por Ìtàn – Cinema Negro de Animação e pelo coletivo Ekàn, este musical de animação belíssimo é baseado no livro Òsànyín: Os segredos e Mistérios das Folhas Sagradas de Alzení Tomáz, que aliás participa da equipe como produtora.

A narrativa apresenta a história de um menino que, desde o nascimento, tem a particularidade de ter folhas crescendo em seu corpo e a capacidade de curar. Por conta disso sofre discriminação na escola, assim ele corre e foge para a floresta. Na Caatinga, ela conhece seres encantados de tradições indígenas e negras e caminha em uma aventura de autoconhecimento. Sua busca a leva a Òsányìn, o Orisà das folhas, que apresenta o poder das usinas e a importância da preservação ambiental.

A abertura já é uma obra-prima à parte, mas serve para indicar quão arrebatadora é a produção, que, começando pela fumaça dos créditos iniciais, gera todo o ar de mistério que envolve a trama, assim como as cores vibrantes em tantas variações de verde, seguindo pelo movimento de câmera suave que vai deslindando o cenário detalhado, culminando com a música sob a direção de Marron, que certamente potencializa a já pujante direção de Pâmela Peregrino. O cordel dá um charme muito especial à produção e a escolha desta linguagem para apresentar o personagem e o cerne da questão parece ser muito apropriada, pois, além de poupar várias cenas de contextualização, também dá uma quebra e funciona bem como ponto de virada.

Quem já fez, pelo menos, um exercício de animação sabe o trabalho que dá, toda cena neste contexto, mas fazer isso com precisão e esmero torna tudo ainda mais complexo. E, cada um dos 22 minutos e 28 segundos desta animação é muito bem pensado e executado. Há sim algumas barrigas, entretanto, elas são mais no aspecto do tempo de algumas cenas e não da técnica. Em minha opinião, algumas partes poderiam ser mais suscintas, como na duração das músicas, mas nada que comprometa o resultado final, até porque as músicas são contagiantes.

Muito interessante como eles conseguem unir diversas formas de animação, desde o stop motion, passando pelo desenho, dentre outras. Os efeitos especiais são lindos, especialmente os que apresentam a magia, ainda que aparentem simplicidade denotam também processos de transições das trocas de técnicas altamente bem executadas.

Recomendo muito, porque, além de lindo, com música contagiante, a temática abordada é de muito engajamento e necessária para a luta contra os diversos tipos de preconceitos que infelizmente ainda temos de enfrentar.

 

2. Celeste (Brasil, 2021) | Direção: Eduardo Butakka

A partir da exibição, na edição de abril, da Sessão “Realizadores de Mato Grosso”, ocorrida no Cine Teatro Cuiabá em 19 de abril de 2022, tive contato com o curta Celeste, de Eduardo Butakka. Na ocasião mencionada, o público presente pode conferir ainda, outras produções deste artista plural, realizadas sempre em parceria com o também multi talentoso Thyago Mourão, bem como, o filme Lágrimas de Normah, do Coletivo MT Queer. Foi lindo e emocionante poder presenciar um debate com trocas tão positivas, após as exibições audiovisuais.

O curta em questão, escrito e dirigido por Butakka, apresenta Celeste, uma artista em isolamento social que tenta se adaptar aos shows virtuais e atingir um público. Porém, vamos percebendo as dificuldades, que certamente não se resumem à Celeste, mas provavelmente atinge a maioria dos artistas do palco, que precisam se encaixar em um mundo ao qual nunca pertenceram.


Neste emaranhado, a pergunta proclamada por Celeste ressoa para fora da tela, e adentra nossas mentes: para que serve a arte? De certa maneira, é este o fio condutor do filme, que em um único plano sequência nos mostra a grandeza de Eduardo como intérprete, algo que eu particularmente já sabia e até já escrevi sobre em crítica a respeito de seu espetáculo solo Se perguntarem não fui eu, mas que desta vez foi reconhecida internacionalmente com o prêmio de ‘Melhor Ator em Filme LGBTQ’, no Best Actor Award New York, evento, de Qualificação IMDb e de exibição anual, que celebra atores de todo o mundo atuando em filmes independentes.

Além disso, Celeste foi considerado o Melhor curta LGBTQIA+ no Cult Critic Movie Awards, foi também selecionado para o Lift-Off Global Network e para o 8º Curta Neblina – Festinal Latino-Americano de Cinema. Todos em 2021. Tudo isso graças a visão além do alcance do produtor executivo Thyago Mourão, que motivou e incentivou o diretor a inscrever o curta em tais festivais.

Surgido de maneira quase glauberiana, ou seja, com uma ideia na cabeça e uma câmera na mão, o curta convence muito, pela sinceridade. Pois como salienta Butakka, em entrevista para o site PNB online (06.07.21): Apesar de Celeste não ser uma obra autobiográfica, há uma pouca da minha própria experiência na obra. Minha e de tantos artistas. Eu estava me preparando para apresentar uma temporada de uma peça teatral em São Paulo no início do ano passado. Então, ter os planos frustrados foi bem difícil. Eu tive todos os estágios do luto, como eu costumo dizer. A negação, a raiva, a tristeza e finalmente a aceitação. O próprio curta é resultado disso.

Os elementos técnicos como a maquiagem, o figurino, os objetos de cena, a luz, assinada por Priscila Freitas e a edição realizada por Rato, também contribuem para a grandeza da obra, que faz valer o ditado: menos é mais, pois a sutileza e a simplicidade, atreladas a um senso estético apurado, tornam a produção ainda mais digna de aplausos.

A qualidade sonora é mais um ponto a ser ressaltado. Constituída primeiro a partir da voz muito clara e dicção perfeita de Butakka, captada com destreza, sem ruídos ou interferências. Soma-se a isso o uso de uma pequenina caixinha de música, que acompanha o suave cantarolar de Celeste e nos leva à um devaneio muito leve e agradável, ainda que breve.

Entretanto, o mais impressionante, na minha opinião, são as pausas… os silêncios, nestes intervalos vazios, preenchidos apenas por pesadas respirações, sentimos toda a profundidade da dor e da angústia de toda uma classe, quiçá de toda a humanidade, que – no auge da pandemia – não sabia o que fazer, e, nem ao menos se ia estar viva até o próximo espetáculo, ou até a próxima live.

Fiquem atentos, pois creio que em breve haverá mais exibições desta obra prima do audiovisual mato-grossense, que, por enquanto, segue participando de outros festivais pelo Brasil e pelo mundo.

 


3. Antes do mundo acabar (Brasil, 2021) | Direção: Lucas Lemos.

O filme sobre o qual discorrei neste texto é Antes do Mundo Acabar, roteirizado e dirigido por Lucas Lemos e estrelado Lucas Fortes (como Pedro), Eros Sgorlon (como Geovane) e Caio Augusto Ribeiro (como Ricardo). Realizado com recursos provenientes da Lei Aldir Blanc, ele é ideal para a coluna de junho, porque este é o mês de comemoração do orgulho LGBTQIA+, que surge em referência ao conflito no bar Stonewall, em Nova York, em junho de 1969, quando um grupo resolveu enfrentar a constante violência policial sofrida pelos homossexuais.

O curta de pouco mais de vinte minutos conta a história de Pedro, que ganha vida pela interpretação cativante e um tanto quanto cômica de Lucas Fortes. Pedro é jovem periférico, gordo e fã de Rita Von Hunty, que o inspira na implantação de um canal no YouTube, para discutir questões sociais, gênero e LGTQI+. Porém, um esbarra na limitação financeira para filmar e produzir. É aí que entra em cena o casal de classe média, Geovane, que é maquiador e Ricardo que é músico, para ajudar o amigo “quebrado” a realizar o sonho de ter o canal.

Neste ponto começa o imbróglio da narrativa, pois o filme se passa em um momento de agravamento da pandemia da Covid-19. E, enquanto Geovane nem pestaneja para oferecer ajuda a Pedro, o entojado Ricardo (vivido de maneira ímpar por Caio Ribeiro), só o faz após intensa insistência do companheiro e mesmo assim, um pouco a contragosto.

Após isso e para que tal empreitada se realize mais facilmente Pedro fica hospedado no apartamento do casal, por 15 dias, para que possam organizar seu canal no YouTube. Todavia, a convivência diária demonstra em cada pequeno ato as diferenças de classes (como bem nos explica a musa inspiradora de Pedro, Rita Von Hunty, em seu canal) entre Pedro e o casal, mas traz junto uma sintonia entre todos, só quebrada pelo grande ponto de virada do curta, que é a descoberta, por Ricardo (após uma noite animada entre os três), de que Pedro vive com HIV. Eis a grande questão do filme, na minha opinião: Pedro teria escondido a informação? Ou Ricardo estava tão imerso em sua arrogância que não viu/soube?! Assistam e tirem suas próprias conclusões, para quem sabe discutirmos sobre isso em alguma oportunidade.

A realização é assinada pela Salve Filmes, que mesmo sendo uma jovem produtora, tem delineado uma bela e assertiva trajetória. A produção de Isabelle Fanaia, assistida por Emília Top’Tiro é precisa e impressiona, vide as obras de arte que preenchem a cena e enchem os olhos dos espectadores, especialmente na cena do jantar do trio, fato que também deve ser atribuído ao trabalho de Ana Carolina de Mello, que assina a direção de arte, juntamente com o figurino. A fotografia de João Pedro Régis e Jorge Queiroz também chama a atenção pela qualidade, já característica dos dois.

Essa é uma das muitas produções recentes do cinema mato-grossense, que vale a pena ser vista, comentada e publicizada. Fiquem de olho, pois está participando de alguns festivais pelo Brasil.

 

4. Como Ser Racista em 10 Passos (Brasil, 2018) | Direção: Isabela Ferreira.

O curta, de nome sugestivo, concebido e dirigido por Isabela Ferreira, é uma das produções mato-grossenses mais surpreendentes e das mais comentadas em 2018. Primeiro, porque com seu baixíssimo orçamento (visto se tratar de um filme de estudante), a equipe conseguiu desenvolver um produto de qualidade técnica considerável – ressaltando-se a trilha sonora e a fotografia – e, segundo, porque, para além do desempenho técnico, é uma produção potente em suas problematizações, o que cativou crítica e público.

Fato que se expressa pelas vitórias alcançadas, pois venceu os prêmios de Melhor Ficção pelo Júri Oficial da III Mostra de Cinema Negro e do júri popular da 17ª MAUAL (Mostra de Audiovisual Universitário e Independente da América Latina), além de destaques em outras mostras e festivais por Mato Grosso e pelo Brasil.

Desde o título temos um indício da forma como o curta se divide, já que apresenta 10 esquetes reveladores de situações corriqueiras e, em sua maioria, bastante constrangedoras, não apenas para aqueles que as sofrem, como também para quem as comete. Vários temas são apresentados, todavia, nenhuma questão é concluída, o que dá maior capacidade reflexiva ao curta, exatamente como pretendeu a diretora.

Isabela joga com o público de maneira tão perspicaz, que por vezes parece que os temas estão sendo apenas jogados no ar, de maneira aleatória, talvez até sem maiores pretensões, como quem bate e afaga em seguida. Esse jogo, de tratar de assuntos pesados de maneira simplória, gera no espectador uma desconfortante leveza, tal como a da faxineira que é ignorada pela mulher toda paramentada de vestimentas africanas (numa possível alusão à apropriação cultural), mas não está muito aí para isso.

Os entrecruzamentos se tornam mais explícitos ao final, que é quando temos uma dimensão maior das consequências do racismo em nossa sociedade. Na sequência em que vemos as manchetes, o apresentador de telejornal anunciando a morte de um menino negro na favela carioca, e no texto sobre a cor da violência, conectamos instantaneamente as peças e, desde a questão da higiene e limpeza à questão do branqueamento da população mato-grossense, passando por preconceitos arraigados, tais como: um menino, que em uma brincadeira de polícia e ladrão, aponta o mais negro para representar o ladrão, simplesmente porque acha que este tem cara de ladrão, verificamos que todos estes fatores culturais forjam uma naturalização do discurso racista.


Porém, o discurso do empoderamento negro é um dos trunfos da produção, que em momento algum traz o negro em posição de subalternidade, mas sim ridiculariza, através de elementos como a comicidade, os ângulos e enquadramentos da câmera, os preconceituosos de plantão.

 

5. Três tipos de medo (Brasil, 2016) | Direção: Bruno Bini.

Como forma de emanar boas energias, prestar minha solidariedade e homenagear Bruno Bini, diretor cuiabano e aquariano, que faz aniversário no mesmo dia (03/02) desta que vos escreve – internado na UTI de um hospital de Cuiabá, com problemas respiratórios e suspeita de Corona vírus, pois retornou recentemente de uma turnê pela Europa, onde estava divulgando Loop, seu filme mais recente – escrevo hoje sobre outro filme dele, Três tipos de medo, premiado em mais de 10 festivais, exibido pela TV pública, porém sem muitos comentários ou textos críticos escritos por aqui.

Ímpar, como os demais trabalhos de Bruno, este curta é fruto da percepção aguçada e olhar cinematográfico dele, para o cotidiano urbano e violento de Cuiabá. Já que foram as notícias a respeito da prisão do traficante “Sapinho”, e a mobilização popular para pagar um advogado e liberá-lo, que inspiraram a construção do roteiro, também assinado por Bini. Um fato importante, e que chamou atenção do cineasta, foi a classificação do bandido como justiceiro do crime pela população do bairro Novo Colorado em Cuiabá, que não se sentia protegia pela Polícia Militar. Já aqui é possível imaginar um diálogo com Tropa de Elite, como escreveu alguém em um comentário sobre o curta na internet.

A expressão Três tipos de medo, utilizada por vezes em tom humorístico, dá título à obra e, dentro do contexto da narrativa, desvela as tensões dos três personagens, que fazem a perfeita triangulação da história. Dona Antônia (Juçara Nacioli), avó, que por temer pela vida do neto Clayton (Pedro Lafoz), que estuda à noite, mobiliza a comunidade para levantar recursos e providenciar a soltura do traficante “Sapinho”, defensor da paz na comunidade. Leonardo (Giovani Araújo), advogado que, ao ser procurado por vó Antônia, encara o dilema entre aceitar ou não a causa, visto que está prestes a se tornar pai (e precisa do dinheiro), mas ao mesmo tempo se depara com sérios riscos, além de dilema ético. E Roberto (Romeu Benedicto), policial, que motivado pela raiva devido a morte do filho, prende “Sapinho” na tentativa de fazer justiça com as próprias mãos. Ele e sua esposa (Mazé Oliveira) vivem a tensão com o risco que esta prisão, um tanto quanto arbitrária, de um traficante tão poderoso traz.

O trabalho com os atores foi intenso, provocando interpretações realistas, como a de Jonathan Haagensen, eletrizantes como a de Romeu Benedicto, bem construídas e premiadas, como a de Giovani Araújo (um dos atores mais vistos em filmes de Bini), que saiu vencedor nas mostras Catarinense e Mercosul de 2016. Tocantes como a de Mazé Oliveira, que mesmo aparecendo pouco, transmite toda a dor de uma mãe que perdeu o filho e preocupa-se com o destino do marido, ou ainda, emocionantes como a de Juçara Nacioli, que, com seu personagem, faz um mix de força e ternura para conseguir salvaguardar o neto. Inclusive, uma das cenas mais belas desta produção é o momento em que ela canta para acalentar a tensão estabelecida anteriormente, detalhe que a canção foi criada por ela de improviso, no set.

A direção é bem conduzida, assim como a edição (também feita por Bruno Bini), que intercala cenas alucinantes, como a da perseguição inicial com cenas meigas como as do casal acompanhando a gravidez. Tudo isso converge para prender a atenção do espectador do início ao fim.

O cenário, juntamente com o figurino de Bárbara Rosa constroem as atmosferas, tanto de tensão e violência, quanto os de vida privada. O que demonstra todo o trabalho e dedicação da diretora de arte Carol Araújo e sem dúvida da produtora Keiko Okamura.

Dito tudo isso sobre os aspectos técnicos do curta, é uma pena que poucos cuiabanos conheçam a vitalidade e força do cinema e audiovisual mato-grossense. No entanto, ele (o cinema/audiovisual) tem o mérito de ser detentor de no mínimo três tipos de coragem: a coragem de criar a partir do nada (esta produção mesmo contou com recursos do próprio cineasta para ser concluída), a coragem de continuar (mesmo com os cortes, a falta de incentivo, de público e de difusão) e a coragem de ser diferente e particular (não se rendendo ao que é feito por aí). Como Bruno é cineasta que compartilha destes três tipos de coragem, logo elas o moverão para os sets! #forçabruno.

 

 


ALINE WENDPAP (Cuiabá, 1983). Primeira Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO da UFMT, Mestre em Educação pela mesma Universidade, Bacharel em Comunicação Social – Habilitação: Radialismo (UFMT), integrou o Parágrafo Cerrado, coletivo dedicado a leituras de cenas de espetáculos. É autora do livro A Televisão sob olhar das crianças cuiabanas (2008).






RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.



 


Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)

Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)

Editores:

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