quarta-feira, 30 de abril de 2025

ANA KARLA FARIAS | “Não se esmaguem com palavras as entrelinhas”: o não-dito em Agnès Varda e Clarice Lispector



Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo.

CLARICE LISPECTOR

 

À meia-noite da terça-feira, na cidade insone, meu amigo Ulisses discorria sobre seu fascínio pela música e por João Gilberto, confidenciando-me de que a melhor maneira de tocar Bossa Nova é de madrugada, entrecortando o silêncio. Como uma espécie de oração para quem é ateu, disse-me. Desde então, fiquei pensando na potência do silêncio, aquilo que se esconde nas entrelinhas da escrita ou no subterrâneo do pensamento, por não ter encontrado palavras suficientes para se manifestar. A fala de Ulisses ficou reverberando como moscas desorientadas ziguezagueando sobre minha cabeça, tanto que passei a questionar a ambivalência daquilo que emudecemos e sobre o fracasso da linguagem em narrar o que se sente ou relatar a experiência do vivido.

Que há algo de espetacular no silêncio, como se os aspectos mais interessantes da literatura decorressem daquilo que a palavra não dá conta de exprimir, disso não tenho dúvidas. A voz do meu amigo agora se soma à concepção clariceana: o melhor ainda não foi escrito, o melhor está nas entrelinhas. O silêncio que significa difere do silenciamento, aquele que historicamente oprime grupos sociais minorizados politicamente e dita quem está autorizado a falar e sobre o que falar. Enquanto mulheres, a título de exemplo, fomos moldadas a engolir tiranias em silêncio, que se expressam, a posteriori, em forma de sintomas no corpo e como adoecimento psíquico.

Na minha pesquisa acadêmica, tenho me debruçado muito sobre o silêncio enquanto imagem sonora nos filmes-ensaio de Marguerite Duras. Para além da disjunção imagético-sonora, ela recorre à tela escura como recusa da representação ou coo desconstrução narrativa do cinema tradicional. Como artista que vivenciou o trauma da guerra por trás das persianas, à margem dos campos bélicos; Duras ressalta o silêncio como forma de linguagem potencializada pelas mulheres nas frestas de um discurso falocêntrico. As mulheres que ficaram sozinhas, experimentando a angústia da espera e sendo dilaceradas pelo exílio interior inventam uma linguagem própria, que difere da masculina.

Teóricas francesas como Kaplan (1995), sob influência do pensamento lacaniano, concebem a linguagem como um instrumento masculino para a manutenção da organização social e da hierarquização de poder do homem sobre a mulher. Então, se a linguagem, da forma como está cristalizada, é essencialmente masculina, como encontrar no cinema ou na literatura um espaço para as vivências e experiências das mulheres? Tal qual problematizou Kaplan, se as mulheres silenciarem estarão predispostas a sofrer um apagamento histórico, mas se começarem a falar e a escrever como fazem os homens, entrarão na história subjugadas e alienadas.

Restaria a elas, desse modo, reinventar o cinema, a literatura, uma nova forma de comunicação, rompendo com uma linguagem linear, falocêntrica e já formada para construir narrativas a partir da subjetividade feminina. Como pondera Kaplan (1995), a única coisa que sobra à mulher é encontrar um espaço vazio, a terra de ninguém à qual ela pelo menos pode chamar de sua. Nesse contexto, fiquei às voltas comigo mesma, pensando a marteladas, que manifestar o inexpressivo é também um modo de criar. Assim, o silêncio para as mulheres deixa de ser apenas um mero sinônimo de ausência de fala para reverberar, construindo sentido e plurissignificações. Trata-se de encontrar na bifurcação, nas frestas, no desvio das formas já dadas, uma nova escrita e um novo fazer fílmico que representem a produção artística das mulheres.

Quando em meus estudos me debrucei sobre a cinematografia de Agnès Varda, Chantal Akerman e Marguerite Duras, ficou mais perceptível que as mulheres, na busca por um espaço de representação, cruzam os limites da linguagem para rearranjar as coisas em novas configurações. No cine-ensaio, nota-se a crescente importância de um dos elementos constituintes da imagem sonora na matéria fílmica, para além da música, fala e ruídos, qual seja: o silêncio. Esse silêncio que significa, diferindo de um mero emudecimento, parece simbolizar um meio de expressão situado além das demarcações opressivas da linguagem tipicamente masculina. Para Kaplan (1995), o silêncio configura-se como uma forma pela qual as mulheres podem resistir à opressão da linguagem.


Na minha dissertação de mestrado em cinema e literatura na Unicamp, realizei um encontro inédito entre a cinescrita da belgo-francesa Agnès Varda e a literatura da escritora Clarice Lispector. Na cinescrita e escritura dessas artistas multifacetadas que não cessam de devir, a arte se configura como uma verdadeira experimentação e potencialização do processo de criação. Há uma vontade criadora e uma necessidade interior em rebentar as comportas que limitam as formas do fazer fílmico e da escritura. Como poderia, então, a mulher carregar suas vivências para o centro da narrativa se o discurso majoritário é dado pelo homem?

A partir da combinatória de diversas práticas semióticas, amalgamando uma multiplicidade de matérias de composição, Varda constrói sua cinescritura por meio das influências da literatura, fotografia, música, artes plásticas. O que condiz com a formação eclética da cineasta, fotógrafa e artista visual. Assim, ao mesmo tempo em que ela intensifica o efeito visual através do desenho sonoro, como a música e a fala, ela também lança uma busca cuidadosa em revelar o que acontece nas entrelinhas, no espaço lacunoso daquilo que não pode ser visto ou não pode ser facilmente percebido. Em meio aos diálogos, há sempre uma pausa, um não-dito que atribuem sentido à narrativa.

Lispector dizia que o estado de graça nos possibilita enxergar a profunda beleza, antes inatingível das pessoas e do nosso entorno. Quando me deparei com As praias de Agnès, espécie de filme inventário de Varda, notei, que através dos momentos de silêncio da voz humana, tendo apenas a sinfonia do mar ao fundo, a cineasta/narradora/personagem consegue captar aquilo que só se pode compreender a partir da recusa do discurso verbal. Na primeira sequência do filme-ensaio, Varda, em quadro, caminha por entre as praias belgas na tentativa de reavivar a memória da infância, uma vez que ali ela passava suas férias. Diante da imensidão do mar, o silêncio contemplativo é entrecortado somente pelo som ambiente do gorjeio das gaivotas ou das águas.

Sem necessidade de esboçar palavras, Varda se entrega àquela paisagem marítima, como se ali se integrasse à natureza, atingindo a plenitude das coisas. Para muitas cineastas, a liberdade estético-formal do cinema experimental e ensaístico representou um caminho possível para distanciar-se do modelo pronto e das representações opressivas e fetichizadas do cinema tradicional. Para Kaplan (1995), os signos do cinema convencional estavam carregados de uma ideologia patriarcal que servia de sustentação para as estruturas sociais falocêntricas. Assim, experimentando novos processos narrativos, as mulheres “buscavam um escape para suas experiências, sentimentos e pensamentos mais íntimos”. É no gesto ensaístico que elas encontram a expressão do modo experimental de pensar e agir, criando configurações outras do fazer fílmico a partir de seu potencial imaginativo.

Já para Orlandi (2007), com ou sem o uso de palavras, o homem está condicionado a significar diante do mundo e da sua relação com o simbólico, chegando-se à hipótese de que o silêncio constitui um elemento fundante: o silêncio é a matéria significante por excelência, um continuum significante. O real da significação é o silêncio. O que significa que mesmo não expressando uma linguagem articulada em palavras, há o pensamento, a introspecção e a contemplação, o não-dito que produz sentido, reverbera e comunica.

Em As Praias de Agnès, não se pode esperar uma ótica linear do tempo, já que a narradora-personagem está sempre a relacionar o fato passado com o presente, a partir de suas imagens de arquivo que ajudam a rememorar. No filme-ensaio de Varda, sinto mais nítida a compreensão de que a memória não é um processo fechado, encerrado em si. A realizadora ao se colocar em cena, retomando o lugar do passado por meio de estratégias narrativas inventivas como encenações, instalações, atos performativos, entre outros recursos, desvela ao espectador uma restauração do olhar sobre o passado.

O passado se atualiza no presente, coexistindo simultaneamente com ele, numa ruminação cíclica. Tanto que a primeira evocação de Demy se dá quando Varda realiza a exposição no Festival de Avignon (2007) e diante das fotografias ali expostas de atores e atrizes da Companhia de Teatro de Jean Vilar, ela nota que todos aqueles colegas e amigos queridos já faleceram, sendo ela a única ainda viva. Imbuída pelos sentimentos de dor, melancolia e nostalgia, a cineasta ou cinescritora, como gostava de ser chamada, remete à memória do marido. Segundo ela, o mais querido dos mortos (2008).


Como espectadora deparo-me com Varda, em tela, levando rosas e begônias aos artistas falecidos, quando se recorda de Demy: “Não há morte que não me lembre a dele”. Corta-se, então, para a cena seguinte na qual a cineasta deposita flores no túmulo do marido. Na lacuna deixada pela palavra, ou seja, pela voz da narradora, instaura-se o silêncio, pleno de sentimento, que simboliza a comoção e a dor da perda da cineasta pelo marido falecido. Compreendo que Varda usa o filme-ensaio para acessar esse lugar do passado, transitando pela zona ambivalente entre o lembrar e o esquecer. A dor do luto ainda em processo de elaboração, tão presente na vida das mulheres, por vezes, enterrada no subterrâneo do inconsciente, vem à tona em As praias de Agnès, a partir das coisas não-ditas que, ainda assim, reverberam. Por meio dessa pausa e trecho silencioso, a cineasta descortina um momento doloroso do passado que transborda para o tempo presente, de então. Neste momento, a voz de Orlandi (2007) parece sussurrar ao meu ouvido: Sem silêncio não há sentido, sendo que o silêncio não é apenas um acidente que intervém ocasionalmente: ele é necessário à significação. A linguagem empurra o que ela não é para o nada. Mas o silêncio significa esse nada se multiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais silêncio se instala, mais possibilidades de sentidos se apresentam.

Se Varda nos mostra que o cinema está na vida cotidiana, nas histórias não contadas, feitas de coisas não ditas, penso que na literatura feita por mulheres, como Lispector, o extraordinário também está nos movimentos automáticos e nos silêncios do cotidiano. Assim como Varda, lançou-se na busca pela construção da própria linguagem, encontrando nas fissuras do discurso patriarcal, um modo de expressar o indizível, há na escritura clariceana uma ponte que se estende para o silêncio. Aquilo que fica nas entrelinhas entre uma margem e outra encontra seu caminho. Conforme lembra Gotlib (2013), na obra clariceana, a palavra configura apenas um mal necessário, uma vez que a melhor forma de representação do objeto seria mesmo a ausência do veículo, ou seja, o silêncio.

No processo criativo de seu livro-experimento ou antilivro como ela mesma denominou, Lispector dedicou três anos de sua vida, escrevendo, rasurando e reescrevendo Água viva. Com dimensões fragmentárias, híbridas e abertas, essa obra caleidoscópica é decorrente do reaproveitamento de fragmentos de escritos da própria autora já publicados no Jornal do Brasil, como também de anotações avulsas. Diz-se que Lispector se autoplagiava nesse trabalho de colagem dos seus recortes. Como um processo narrativo para se atingir o silêncio, muito se fala no emprego do recurso da repetição de palavras, recorrentes nas obras clariceanas.

Segundo Olga de Sá, o uso voluntário da repetição teria como intuito gerar um desgaste das palavras, de modo a silenciá-las mais do que enfatizá-las. Porque o silêncio seria o caminho possível de alcançar o indizível, já que diferente da natureza escorregadia das palavras, o silêncio não trai e não diz de menos: O silêncio que só se anuncia não é o silêncio amplificado, hiperbólico, da retórica. (…) O discurso de Clarice aponta para o silêncio enquanto grau zero da escrita, porque, teoricamente, ela não acredita no poder da palavra. A escolha estilística de Lispector por empregar reiteradas vezes os mesmos termos e frases, servindo-se das palavras para desgastá-las, também chamou a atenção de Benedito Nunes que aponta para o fato de haver, na escritura da autora um circuito entre a palavra e o silêncio. Ou seja, onde termina a repetição começa o silêncio. Nesse jogo entre palavras repetidas e o silêncio que permeiam a escritura clariceana, em Água viva, a repetição de termos surge realçando para então desgastar um mesmo significado, como é o caso das expressões: atrás do pensamento, it, é-se, gruta, entre outras. Benedito Nunes (1995), crítico literário e estudiosos da obra clariceana, também aponta para a repetição enquanto recurso que intensifica o silêncio das palavras. Nesse sentido, haveria, além do silêncio hiperbólico que a retórica distingue, uma espécie de silêncio enfático produzido pela recorrência intensificadora tanto de termos e frases quanto, especificamente, das conexões lógicas do discurso, incluindo-se entre elas a própria negação.

Água viva traz em seu processo constitutivo uma forte referência à imagem-pensamento, dialogando com a pintura abstrata, desde a epígrafe. Há nele uma vontade criadora da autora em se utilizar da comunicação não-verbal, mostrando um gesto de recusa insistente em não depender da palavra, em face de sua impotência para atingir aquilo que reside atrás do pensamento. É no atrás do pensamento tão buscado pela voz narrativa de Água viva que reside o imagético, ou seja, a gênese do pensamento. Aos olhos da autora é como se os aspectos mais potentes da literatura e a força de sua escritura brotassem do silêncio, aquilo que não encontrou palavras suficientes para se materializar.


Tecendo esse livro lacunoso, Lispector parece recortar palavras no ímpeto de criar silêncios. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio. Logo a aproximação com a técnica da pintura teria a função estratégica de acessar e comunicar o de dentro das pessoas, aquele signo que se faz invisível e impalpável. Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas (…). Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras. Fica atrás do pensamento.

O circuito entre palavra e não-dito em Água viva também pode encontrar respaldo no momento histórico da época. Embora não haja referências expressas e tangíveis ao regime ditatorial na obra, não se pode relegar o contexto histórico-social no qual o livro fora confeccionado e publicado, qual seja: no início dos anos de 1970, em pleno governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). O ditador assumiu a Presidência da República, intensificando a repressão e censura contra os movimentos de esquerda, opositores e imprensa.

Ainda que a obra não escancare um posicionamento político militante, não se pode negar que há uma liberdade de criação e radicalização de um projeto estético que rompe com as convenções literárias da época, recusando uma arte meramente decorativa, como também se notabiliza na obra uma escrita sempre à beira do indizível, conforme observa Hegenberg (2018), esclarecendo que Lispector não era indiferente aos abusos da ditadura civil-militar e que Água viva resguarda uma postura ética de resistência em face de sua estética e forma radicais. caminho de Clarice é o de fazer do não-acontecimento a suspeita de que sempre há algo de não-dito. Em meio à ditadura militar, a sugestão de que há algo importante sendo silenciado pode ter sido uma reação às mais concretas contingências.

Como um livro carregado de sensorialidade e liberdade ensaística para experimentar ou para se abster do começo e fim e situar-se no meio, dialogando com outras expressões artísticas no intuito de encontrar sua própria linguagem, Água viva, denominado por Benedito Nunes de improviso ficcional, aponta nas entrelinhas, nas lacunas do não-dito, algo que se perfaz mais precioso e relevante do que aquilo que se enuncia: o tom dos sentimentos, o halo dos objetos, o âmago de tudo, o limite verbal de toda experiência, que ainda é a palavra. Se o silêncio, desde tempos imemoriais, era usado como recurso para se atingir maior expressividade em determinada passagem de uma obra, nos mais diversos âmbitos artísticos, em Água viva, ele se torna um elemento estruturante. Dessa forma, aquilo que se está por dizer não representa uma mera ausência de discurso, pois, o silêncio é um recurso crucial para que a linguagem signifique. Nos dizeres de Orlandi, ao contrário do que pensa o imaginário social ao tentar aproximar o silêncio do lugar subalterno em que se encontram o vazio e o nada, o silêncio não só significa, como tem uma significância própria, que não pode ser julgada como análoga nem complementar ao modo de significar das palavras.

Dia desses, estive presente em um colóquio na Faculdade de Educação da Unicamp que versava sobre o memoricídio [1] feminino, o que resultou no apagamento histórico e exclusão das mulheres do cânone literário. Em uma das falas que mais me atravessou estava a de uma professora que atentava para o fato de que as narrativas ainda são muito centradas no homem branco, sudestino, abastado, cis e heterossexual, embora se difunda a noção errônea de que todas as histórias já foram contadas. Por conseguinte, ela questionava: se todas as histórias já foram ditas, onde estão as histórias das mulheres operárias? Onde estão as histórias das donas de casa? Das mães solos? Das mulheres indígenas? Das mulheres negras e periféricas? Das mulheres LGBTQI+? Das mulheres com deficiência?

De imediato, meu pensamento remeteu às cenas-fragmentos do longa-metragem de Chantal Akerman, intitulado Jeanne Dielman. O filme ambientado em 1975, discorre sobre o cotidiano simples e repetitivo de uma mãe solo e dona de casa. Durante três horas de filme, quase nada acontece de grandioso porque o acontecer se dar no de dentro das personagens, da casa, do íntimo. Como diz o meu orientador, professor Elinaldo Teixeira, o de dentro é uma dobra do de fora e somos interiores ao tempo. Assim, na ficção dirigida por Akerman, cada hora passada de forma arrastada corresponde a um dia na vida daquela personagem que realiza gestos automatizados como lavar louça, preparar o jantar para o filho adolescente, pôr e retirar a mesa e, por fim, tricotar.

Contudo, a um modo bem clariceano, a personagem protagonista, por debaixo da mansa aparência das coisas, dá sinais de descontentamento e de não-pertencimento àquele lugar social, àquele espaço circunscrito ao doméstico, a um status quo que a estratifica. Ao romper com a casca do cotidiano, há ali uma mulher que se percebe atravessada pelos devires-outros e linhas de fuga, por um tornar-se múltipla, o oposto radical de si. Como a Ana do conto clariceano, Amor, que na hora perigosa da tarde, depara-se com sua visão de epifania. Mergulhamos na sua desmontagem interna em que ela transcende para voltar transformada do processo epifânico, acrescida de algo novo.

Nessa viagem exploratória de si, o olhar de Ana cruza com a figura de um cego mascando chicles, o que acarreta uma iluminação experimentada a partir de um episódio banal do cotidiano. Ambas as personagens (Jeanne e Ana) são imbuídas por um sentimento de estranheza ou um mal-estar corrosivo que se instalam nas entrelinhas, no não-dito. Em Jeanne Dielman e em Ana, por detrás da mãe e dona de casa devotadas, há uma história subterrânea, feita de escuridão e turbulência, que precisa submergir, precisa vir à tona. São mulheres feitas de uma consistência em fuga, de incabências, feitas para se derramar.

Agora já passa da meia-noite de quarta-feira, estou diante da tela em branco, tentando atribuir forma ao caos através do ato da escrita. Ulisses enviou mensagem, dizendo, entre outras coisas, que anda cansado e com tosse. Logo, não nos veremos no bar onde ele prometera cantar Neil Young. Pode ser o tempo seco, respondi-lhe, desejando-lhe melhoras no quadro de saúde. Meu pensamento vem em jorro, fugindo de uma sequência linear com início, meio e fim. Ele vai orbitando e ressoando em outros temas, transitando entre a esfera privada e política, expandindo o signo central.

Então, passada a pausa digressiva, retomo ao que realmente interessa, este texto. Perpassando pelas vozes de autoras, aqui supracitadas, que se entranham à minha, penso que ao escrever e cinescrever, Lispector e Varda vão evocando silêncios e questionando o ato da escrita enquanto dependente de palavras. Elas reinventam uma língua, códigos e regulamentos próprios para dizer de si, do mundo ou apenas para expressar o que não é mais enunciável. Ou seja, exprimir as imagens como gêneses do pensamento, aquilo que escapa numa fração de segundos e só existe nas entrelinhas ou no corpo como sintoma do que está por ser dito. É preciso desfigurar a linguagem, dominada por um discurso masculino, para caminhar em direção ao silêncio. Segundo Varda, somente perto do mar, emudecendo as palavras e o frêmito da vida agitada, ela consegue sentir melhor os detalhes, já para Lispector, o não-dito é o único capaz de acessar o it e o mais íntimo do ser. Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e, no entanto, vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão.


NOTA

1. Termo cunhado por Constância Duarte, pesquisadora da obra de Nísia Floresta Brasileira Augusta.




ANA KARLA FARIAS. Natural do Rio Grande do Norte, atualmente, reside em Campinas/SP. Analista de comunicação, jornalista com formação na UERN, autora dos livros A árvore dos frutos proibidos e outros contos, À deriva de mim, Nas frestas da história: Nísia Floresta e Paixão, um animal que hiberna, especialista em Comunicação, Semiótica e Linguagens Visuais (USCS), especialista em Produção de Documentários (UFRN), mestra em Multimeios (Unicamp), tendo a pesquisa financiada pela Capes e doutoranda em Multimeios (Unicamp). Pesquisa o material de arquivo na construção dos filmes-ensaio de Marguerite Duras e da literatura mais experimental de Clarice Lispector. Roteirista e codiretora do documentário A flor teimosa da Algaroba, colaboradora na revista cinematográfica Littera.7, ministrou cursos de cinema e literatura ensaísticos no CPF Sesc\SP, Casa do Lago (Unicamp) e Centro Cultural Astrolábio.




RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.




 


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