quarta-feira, 30 de abril de 2025

ANDRI CARVÃO | Escambo literário & outras trocas

 


1.
Henry, June e eu: delírios eróticos – Anaïs Nin

Aos 7 anos, a francesa Anaïs Nin (1903-1977) decide ser escritora, assinando Anaïs Nin, membro da Academia Francesa. Aos 11, começa a escrever o seu famoso diário, de 1914 a 1977, totalizando cerca de 35 mil páginas. Como sua ficção não gerava maiores interesses por parte do público leitor tanto quanto as páginas de seus diários, Anaïs Nin passa a publicar trechos destes ou a ficcionalizar a sua vida. Desse modo, Henry, June e eu: delírios eróticos é um romance extraído de seus diários íntimos, onde relata o período em que a autora francesa conheceu e se relacionou com o escritor americano Henry Miller. O livro mantém a forma de diário em primeiríssima pessoa. No interior dos capítulos, nomeados por meses daquele longínquo ano de 1931, Anaïs Nin compila bilhetes e trocas de cartas entre ela e Henry Miller, dentre outras personagens mencionadas no livro. Nossas contendas: ele em sua linguagem, eu na minha. Nunca uso as palavras dele. Acho que meu registro é mais inconsciente, mais instintivo.

No sétimo ano de casada com o banqueiro Hugh Guiller, o casal se propõe a viver um relacionamento aberto. Não sabem como começar, porque têm dúvidas sobre o quão positivo ou prejudicial seria para a relação do casal, pois se amam apesar das brigas constantes.

Em dezembro de 1931, o escritor americano Henry Miller entra na vida do casal Anaïs e Hugh. Trata-se do período parisiense a que se refere o escritor americano no incensado Trópico de câncer, publicado na França em 1934 e proibido nos EUA até 1961.

 

Conheci Henry Miller. (…) Quando ele saltou do carro e se dirigiu para a porta onde eu estava esperando, vi um homem de que gostei. Em seus escritos ele é extravagante, viril, animal, magnificente. É um homem a quem a vida embriaga, pensei. É como eu.

 

Além de Miller e do marido de Anaïs, chamado de Hugo no livro, outra figura masculina de destaque é o amigo e confidente Eduardo, que se declara a ela, porém sem ser correspondido. Eduardo a aconselha sobre a iniciação nas práticas do seu desejo de orgias junto ao marido.

 

A vida de instintos liberados é composta de camadas. A primeira camada leva à segunda, a segunda à terceira e assim por diante. No final leva a prazeres anormais. – Como Hugo e eu poderíamos preservar o nosso amor nesta liberação dos instintos ele não sabia. Experiências, sem as alegrias do amor, dependem de distorções e perversões para o prazer. Prazeres anormais matam o gosto pelos normais.

 

Duas coisas excitam Anaïs Nin num homem: o beijo e a imaginação. E Miller a excita das duas maneiras. Embora confesse que, no primeiro encontro, para mostrar a ele as provas de seu romance de estreia, é atacada de tal forma (ele, forte e viril e ela tão frágil, uma virgem prostituta, conforme suas palavras), que quase é estuprada pelo desejo intenso e pela brutalidade de Miller, de modo que naquele momento, consegue se desvencilhar.

O que parece uma brincadeira, como os primeiros jogos sexuais com John e Drake, seus relacionamentos extraconjugais, se intensifica com relação a Henry Miller. A curiosidade pelo estrangeiro lhe desperta o desejo. Anaïs reconhece a sua libido em Miller, o que a leva a June, companheira do escritor. Hugo sente ciúme de Miller, teme perder Anaïs e tem repulsa por June. Henry é violência e June, destruição.

 

Henry (…) tem grandes ódios. Eu não. Tudo comigo ou é veneração e paixão ou pena e compreensão. Raramente odeio, embora quando odeie, odeie com furor assassino. Por exemplo agora, odeio o banco e tudo ligado a ele. Também odeio pinturas holandesas, chupar pênis, festas e tempo frio chuvoso. Mas estou mais preocupada com o amor.

 

E mais adiante:

 

June dissera que ele estava inquieto, porque tem mais ciúme de mulheres do que de homens. June, inevitavelmente, semeia loucura. Henry, que me considerava uma pessoa ‘rara’, agora me odeia. Hugo, que raramente odeia, odeia June.

 

Henry Miller chega em Paris sem um tostão no bolso. Vive miseravelmente com sua companheira June. Anïs Nin se envolve com o escritor e o homem Henry Miller e, assim, passa a financiar a vida e a carreira literária dele com o dinheiro do marido banqueiro. A relação entre os dois amantes, leva a escritora francesa a se interessar por June, formando o triângulo amoroso a que Hugo não participa fisicamente, excitado apenas por tomar conhecimento.

 

Um rosto surpreendentemente branco, olhos ardentes, June Mansfield, a esposa de Henry. Quando ela veio em minha direção da escuridão do meu jardim até a luz da entrada, vi pela primeira vez a mulher mais linda da Terra.

(…)

No final da noite eu era como um homem, terrivelmente apaixonado por seu rosto e corpo, que prometia tanto, e odiava o eu criado nela por outros. Outros sentem por causa dela; e por causa dela, outros escrevem poesia; por causa dela, outros odeiam; outros, como Henry, amam-na apesar deles mesmos.

 

O sexo entre Anaïs e Henry é aditivado por longas conversas sobre literatura, filosofia, poesia e afins. Henry Miller é um homem mais velho e, por isso, mais experiente do que a jovem Anaïs Nin; enfim, o tipo de homem que ela tanto deseja. Esse relacionamento de corpo e alma com o escritor americano, a faz perder gradativamente o interesse pelo espírito burocrata de seu marido Hugo. (…) eu não pude suportar Hugo lendo os jornais e falando sobre trustes e um dia bem-sucedido. Ela o considera um homem sem alma e se tortura por deixar de amá-lo. Domingo. Hugo vai jogar golfe. Visto-me ritualisticamente e comparo a alegria em me vestir para Henry com minha tristeza em me vestir para banqueiros idiotas e reis do telefone. Para Anaïs Nin, (…) uma vida padronizada não é vida.

Anaïs, jovem educada na melhor tradição europeia, se sente atraída pelo fato de June ser uma mulher extravagante, cheia de opiniões e, de certa forma, tão tagarela, irrefreável quando começa a falar sobre a sua experiência de vida tão peculiar. Fato este que, com certeza, estimulou o relacionamento de June com Miller, por ela se apresentar como um verdadeiro repositório de estórias.

 

O que me deixou doente agora? June. June e sua atração sinistra. Ela já tomou drogas; amou uma mulher; fala na linguagem de tiras quando conta histórias. E no entanto conservou aquele incrível e ultrapassado sentimentalismo.

 

June teve um caso com a escultora Jean, algo que ela não consegue resolver, que permanece no limbo de sua consciência. Esse amor mal resolvido de June é motivo de ciúmes e de brigas intensas com Henry. Como na Quadrilha de Drummond: – June tinha lágrimas nos olhos quando falou de sua generosidade. – E eu pude ver que ele a amava por isso. Em seu romance está claro que a generosidade de June não se estendia a ele – ela o torturava constantemente – mas a Jean, porque ela era obcecada por Jean. E o que faz a Henry? Ela o humilha, deixa-o carente, destrói sua saúde, atormenta-o – e ele floresce; escreve seu livro.

Semelhante ao que faz por Henry, Anaïs cobre June de presentes, além de ser generosa com dinheiro. Nossos medos de desagradar uma à outra, de nos desapontarmos mutuamente eram os mesmos. June despeja um caminhão de experiências e Anaïs retribui cobrindo-a de joias e vestidos. O luxo não é uma necessidade para mim, mas coisas bonitas e boas são.

Enfim, Anaïs Nin e Henry Miller estão embriagados pela paixão: a paixão pela Literatura, a paixão pelos livros escritos e a escrever, apaixonados pela vida. O amor de apenas um homem ou uma mulher é uma prisão. Estão incestuosamente irmanados pelo sexo, numa verdadeira confusão, ou melhor, numa masturbação mental entre paixão/sexo/amor. A dor é algo a ser dominado, não estimulado.

Anaïs Nin devora os romances recém-escritos por Henry Miller: Moloch e Primavera negra. Henry Miller retribui lendo excertos dos diários e o estudo de Anaïs Nin sobre a obra de D. H. Lawrence (autor de O amante de Lady Chaterley). Escrever não é, para nós, uma arte, mas respirar. Influenciada pelo casal Henry e June, Anaïs mergulha na leitura de Dostoiévski.

 


Estou presa numa armadilha, entre a beleza de June e o gênio de Henry. De maneira diferente, sou dedicada a ambos, uma parte de mim vai para cada um deles. Mas amo June loucamente, insensatamente. Henry me dá vida, June me dá morte. Devo escolher, e não consigo. Para mim, dar a Henry todos os sentimentos que tenho tido com relação a June é o mesmo que dar meu corpo e alma para ele.

 

Tudo vai às tontas, até que June volta para a América – para os braços da escultora Jean?

 

– Sim, eu a odeio – diz Henry –, porque vejo por suas anotações que nós somos dois ingênuos nas mãos dela, que você está iludida, que existe uma direção perniciosa, destrutiva para as mentiras dela. Perfidamente, elas têm a intenção de deformar-me aos seus olhos, e você aos meus. Se June voltar, ela nos envenenará um contra o outro. Eu temo isso.

 

Anaïs abraça Henry com as pernas, como a se agarrar a uma tábua de salvação em pleno naufrágio.

 

As melhores mentiras são meias-verdades.

 

Há anos desejo (esta é a palavra adequada) Henry e June de Anaïs Nin. Quando adolescente mergulhei profundamente até me afogar na obra de Henry Miller. Foi difícil me desvencilhar. Há anos não leio nada do autor. Mas é inegável que tenha deixado marcas, cicatrizes literárias. A descoberta e o interesse pela obra da autora francesa, partiu da versão cinematográfica de Henry e June, estrelada por Maria de Medeiros como Anaïs Nin e Uma Thurman como June Mansfield, que assisti pela metade no Corujão, durante a madrugada. Há tempos procuro a edição da L&PM Pocket, mas, por fim, encontrei no Skoob e me contentei lendo essa edição da Círculo do Livro.

 

2. Depressões | Herta Müller

Depressões é um livro de contos da escritora romena Herta Müller (1953), Prêmio Nobel de Literatura de 2009.

Em “O discurso fúnebre” um filho ou uma filha narra em primeira pessoa o velório, o caixão no meio da sala, e o cortejo até o enterro do pai. A partir dos retratos de família nas paredes o narrador ou narradora relata a história desse pai; o passar do tempo, da infância à vida adulta, como num álbum de família.

Na segunda parte do conto, um dos dois homenzinhos bêbados, que baixam o caixão para a cova com uma corda, assume a primeira pessoa na narrativa e conta à criança a vida pregressa de seu pai durante a guerra: as mortes e o estupro de uma mulher russa numa plantação de nabos junto a mais quatro soldados. Desde então, “nabos” se tornou sinônimo do que o seu pai trazia entre as pernas, as armas dos soldados. O canto estridente de uma cantora de ópera lembra os gritos da mulher estuprada. As mulheres, nabos…

É então que o conto assume uma atmosfera onírica de delírio e pesadelo.

No conto “O banho suábio”, uma família toma banho na mesma banheira, um de cada vez: o pequeno Arni, o pai, a avó, o avô. A água negra da banheira demora para esfriar.

Em “Minha família”, temos um rosário de misérias.

Tanto em “Banho suábio” como em “Minha família” há o recurso da repetição em contos anafóricos que soam como a poesia contemporânea.

O livro de Herta Müller é composto por 15 contos, sendo o mais longo o conto ou novela que dá título à coletânea.

Em “Depressões”, temos um besouro no ouvido e dentro do ouvido um zumbido. Ela comia flores de acácia e outras flores comestíveis, e o avô sempre pontual “E você não quer ficar boba, quer?”; “E você não quer ficar muda, quer?”, diz como forma de alertá-la sobre o perigo de comer flores por conter moscas negras dentro delas. Ela brinca de papai e mamãe no celeiro e dá à luz bonecas e bebês de sabugo de milho. Veste os gatos com roupas de bonecas para niná-los. Caça borboletas, moscas, andorinhas, cachorros mortos. “E de onde veio a primeira borboleta, vovô? E pare já com tanta pergunta boba, ninguém sabe, e vá brincar.”

O pai não tocou na esposa na noite de núpcias. O pai não tocou na esposa durante a colheita de cerejas. Seu pai a espancava e espancava também a esposa, sua mãe.

As superstições do avô.

As gralhas, os gatos, os cachorros são todos enxotados por homens e mulheres.

Os passarinhos cantam sempre a mesma canção e quando se vão, deixam a mesma merda branca.

Vacas. O dia em que a vaca a chifrou e o ódio que sentiu.

Gralhas, mariposas, salamandras, ratos, galinhas, ovelhas, sapos, cobras, libélulas – a vida no campo.

A descoberta da morte, os mortos saqueados, o velório em casa “(…) o último defunto vigia o cemitério até a próxima pessoa morrer.”

Vivências. A presença do quintal, do jardim, da roça, da igreja, a festa na paróquia, os afazeres domésticos das mulheres e os homens na taberna. O milho, a gritaria das crianças saindo da escola, a neve e a primavera, urtigas e a passagem do tempo, nascimento, vida e morte entre crianças, adultos e velhos. Primavera, verão, outono e neve.

A bruxa da aldeia, “bruxa” porque fazia tudo diferente das demais. Os espantalhos vestidos com ternos dos maridos recheados de palha e sem cabeças. A fome no ar.

Vovô anda pelo quintal falando sozinho.

Na casinha, ela chora escondida. Mamãe batia se a descobrisse chorando escondida.

A sexualidade infantil. A descoberta de Heine, seu primo, ao compartilhar o urinol. O medo dos raios que iluminam o quarto onde deitam-se juntos.

“Deixe estar, então nós vamos nos casar.”

“Mas você é meu primo.”

Gansos, andorinhas, pardais, o veterinário, o dentista. O padre e o prefeito não se entendem por conta do sino enferrujado.

A narradora, Käthe, seu pai e sua mãe no carro pelo campo a caminho da casa da velha.

“O ar quente da barriga de Käthe tem o cheiro de peras podres.”

“Seu andar (o do pai) cheira a peras podres.”

Ela e Käthe ficam na casa da velha, enquanto o pai e a tia saem de carro.

“Vejo a calcinha azul de Käthe com a mancha amarela de peras podres entre suas coxas.”

As duas são primas.

O carro retorna sem os caixotes.

“O assento ainda está quente das coxas da tia e tem cheiro de peras podres.”

Ao chegarem em casa, seu pai atira o dinheiro na mesa. Sua mãe está remendando as meias dele.

Depressões é o livro de estreia de Herta Müller, autora romena de língua alemã. Os contos abarcam o período do final da Segunda Guerra Mundial até os anos 80 numa região entre Romênia, Sérvia e Hungria, ainda sob o regime socialista. A linguagem, além de anafórica, apresenta enumerações de animais e vegetais. A narrativa não linear com começo, meio e fim, prefere trazer o leitor para o meio do turbilhão como quem pega o bonde andando e precisa se adaptar. A escritora mais sugere através de imagens e pequenos movimentos cotidianos do que explicita. A poesia está presente nas entrelinhas.

 


3. Os manuscritos perdidos | Charlotte Brontë

Os manuscritos perdidos não é um livro de Charlotte Brontë (1816-1855) ou uma biografia da autora de Jane Eyre, mas sobre a família Brontë.

A matriarca Maria Brontë se casa com o reverendo do presbitério de Haworth, Patrick Brontë, dando início a saga de uma das famílias mais influentes da literatura mundial – as irmãs Brontë: Charlotte Brontë (autora de Jane Eyre), Emily Brontë (de O morro dos ventos uivantes) e Anne Brontë (de Agnes Grey). Além do trio de escritoras, Maria deu à luz a mais três filhos: as primogênitas Maria e Elizabeth, que faleceram ainda crianças, e Branwell, o único varão, pintor que não se tornou conhecido como as irmãs escritoras, mas foi responsável pelo famoso retrato das irmãs Brontë.

Branwell era parceiro de Charlotte na criação do reino imaginário de Angria, enquanto Emily e Anne criaram uma ilha no Pacífico Norte batizada de Gondal. Estes mundos fazem parte da juvenília, a obra imatura produzida pelas irmãs Brontë durante a infância e adolescência. Ao contrário das irmãs famosas, Branwell não deixou uma obra marcante.

O livro Os manuscritos perdidos é uma compilação de relatos produzidos por especialistas na obra da família Brontë sobre este que é um verdadeiro achado recente (2015!): o livro The remains of Henry Kirke White, obra do poeta promissor falecido precocemente aos 21 anos, selecionada pelo poeta Robert Southey.

O reverendo Patrick Brontë, patriarca da família, se orgulhava de ter conhecido e auxiliado o jovem poeta durante a universidade. Sua esposa, Maria Brontë, possuía um exemplar de The remains. Esta obra, juntamente a outros pertences da mamãe Brontë num baú, havia sido salva das águas em decorrência de um naufrágio. Após a morte de Maria, o viúvo reverendo Patrick Brontë preservou o volume como uma relíquia da família, um memento mori da esposa. Seus filhos, influenciados pela leitura incessante do livro do poeta romântico Henry Kirke White, deixaram manuscritos de poemas e esboços de romances (como o embrião de O morro dos ventos uivantes, p. ex.), além de anotações sobre os poemas às margens das páginas e desenhos ao longo de todo o volume. O pai enterrou a esposa e todos os seus seis filhos que faleceram jovens. Com o desaparecimento do último integrante da família Brontë, o livro The remains of Henry Kirke White passou de mão em mão de colecionadores até ser negociado por um dono de sebo dos E.U.A. diretamente com o Brontë Parsonage Museum na Inglaterra, retornando assim depois de mais de um século à residência da família Brontë na cidade de Haworth em 2015.

O livro Os manuscritos perdidos, além de narrar a trajetória da família Brontë, traz material ricamente ilustrado com páginas do livro The remains of Henry Kirke White, trechos de manuscritos das irmãs, desenhos de Branwell e fotos de livrinhos miniaturas, produzidos pelas escritoras.

Os manuscritos perdidos é composto por um prefácio da atriz britânica Judi Dench, presidente da Sociedade Brontë, além de textos das maiores especialistas sobre a vida e a obra da família Brontë: Ann Dinsdale (Perdido e encontrado), Barbara Heritage (A arqueologia do livro), Emma Butcher (Uma visita a Haworth: unindo fantasia à realidade), Sarah E. Maier (Cristais partidos: rapazes, sede de sangue e beleza) e Ann-Marie Richardson (Reinventando o céu).

Encontrei por acaso este Os manuscritos perdidos num estande giratório de uma banca de jornal, a Banca do Raul, no largo da Vila Carrão em São Paulo. Um verdadeiro achado! Tão incrível quanto um manuscrito amarelado numa garrafa em alto mar…

 

4. Perto do coração selvagem | Clarice Lispector

O que eu já havia lido de Clarice Lispector antes de ler Perto do coração selvagem? Laços de família (contos, 1960), A legião estrangeira (contos, 1964), A mulher que matou os peixes (infantil, 1968), Água viva (romance sem romance, 1973) e A hora da estrela (novela, 1977). A hora da estrela foi o livro com o qual entrei em contato com a obra da autora. Li três vezes este romance curto (ou novela), última obra publicada por Clarice alguns meses antes de sua morte. A primeira vez li ainda adolescente, por curiosidade, e porque tinha a intenção de conhecer pelo menos a obra principal de cada autor das literaturas brasileira e universal. Depois reli por conta da lista de leituras obrigatórias para o vestibular. E, por fim, para uma disciplina de Literatura Brasileira da faculdade. Recomendo A menor mulher do mundo, conto do livro Laços de família para quem quer se iniciar na obra da autora. Li, reli e tresli este conto e, desde a primeira leitura, ele nunca mais saiu da minha cabeça.

Perto do coração selvagem é o livro de estreia da escritora brasileira Clarice Lispector, nascida em Chechelnyk na Ucrânia (1920-1977). Publicado em 1943, quando a autora contava 23 anos de idade, embora reze a lenda que tenha escrito o romance aos 17 anos.

O título do livro é inspirado em frase do livro Retrato do artista quando jovem de James Joyce, sugerida pelo escritor Lúcio Cardoso para a epígrafe do romance: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz perto do selvagem coração da vida.”

Perto do coração selvagem narra em terceira pessoa a história de Joana. A infância com o pai, a quem, numa das primeiras passagens do livro, mostra um poema de sua autoria. A personagem é uma menina precoce, dotada de uma imaginação muito fértil, o que causa a preocupação paterna – “o que vai ser de Joana?”.

Intercalando capítulos narrativos, quando a ação da história acontece, com capítulos de fluxo da consciência, onde Clarice tece a vida interior das personagens, seus sentimentos mais íntimos, suas percepções e pensamentos. Na ação seguinte, o tio de Joana a leva para sua casa na praia. Lá chegando, ela é recebida pela tia que diz a meia voz algo como “pobre orfãzinha”. Joana corre em direção à praia e se atira na areia com o rosto coberto de lágrimas. Há um comentário narrativo que pode ser um pensamento da menina (discurso indireto livre) dizendo que ela “perdeu o pai, mas ganhou a praia”, como uma espécie de compensação. A princípio a recepção dos tios é calorosa, mas com o passar do tempo o convívio na casa se torna um tanto conturbado. O mutismo de Joana incomoda sua tia, que a vê como uma aparição, um espírito ruim, uma espécie de demônio que aparece de repente quando menos se espera. No quarto com o esposo, a tia propõe enviar a menina para um internato. Joana escuta a conversa de passagem pela porta entreaberta. À mesa, durante a refeição, a menina quebra o silêncio perguntando quando vai ser levada para o internato. A tia se mostra surpresa, como se Joana não pudesse simplesmente ter escutado sua conversa.

No internato, sua relação com as outras crianças também é bem difícil. Há um salto temporal e Joana já é adolescente, com cerca de 15 anos, e está na casa de seu professor de Literatura. O professor exerce certo fascínio sobre a menina, mas ele é casado. Quando sua esposa se aproxima do marido por trás e toca em seu ombro olhando e sorrindo para Joana, esta percebe que não é bem-vinda ali e que não tem a menor chance com o professor.


Há um novo salto temporal e Joana já é uma jovem adulta, na casa dos 20 anos. É quando ela conhece Otávio que está noivo de Lídia. Ele deixa a noiva grávida e se casa com Joana. Um dia antes do casamento de Otávio e Joana, ela resolve visitar seu antigo professor. Ele está decadente, velho, gordo, doente, separado da esposa e, talvez por tudo isso, o professor não lhe interessa mais. Dormindo com Otávio, Joana tem sobressaltos durante a noite. “Será que ele seria capaz de me matar?” Lídia envia um bilhete a Joana a convidando para sua casa. Ao visitá-la, Joana encontra Lídia numa gravidez bem avançada. Na sala de visitas, o silêncio mútuo é constrangedor. Joana se levanta com intenção de ir embora. “Então estamos conversadas.” Lídia procura tranquilizar a outra: “Não, nós precisamos conversar.” Joana: “Você quer falar sobre ele (Otávio)?” O diálogo segue com certa rispidez, mas de maneira ponderada, educado até certo ponto, sutil, mas sem evitar o “climão” que se estabelece entre as partes. Lídia diz que nasceu para se casar, ter filhos, constituir família e que de repente viu seu sonho ser roubado. Joana confessa que não se via como uma mulher casada, simplesmente aconteceu, e, como não ama Otávio, ou pelo menos não o suficiente, como mulher, merece ter um filho. Então ela sugere que só quer engravidar e depois devolve Otávio para Lídia. Lídia diz que Joana é uma pessoa muito má. Talvez por conta de todas as perdas em tão tenra idade, órfã de pai e mãe. Talvez por seu caráter introspectivo de guardar tudo para si. Talvez ainda por se sentir tão deslocada no mundo. Talvez por tudo isso Joana não seja má, mas amarga.

A recepção crítica do livro comparou a escrita de Clarice Lispector a de autores como Virginia Woolf e Marcel Proust, o que irritou a autora, porque ela ainda não conhecia as obras de tais autores.

 

5. Primeiras estórias | Guimarães Rosa

Primeiras estórias (1962), apesar do título iniciático, é o terceiro livro publicado pelo escritor brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967), após Sagarana (1946) e o clássico Grande sertão: veredas (1956).

Assim como é comum em sua obra, aqui nessas estórias primeiras do nosso Rosa, já nos deliciamos com os achados do autor em neologismos por aglutinação, tais como: “enxadachim” (espadachim de enxada = trabalhador rural); “engenhingonça” (geringonça engenhosa); e “boquinãoabrir” (em oposição a boquiaberto), só para citar alguns exemplos brotados do poliglota Rosa, mestre das palavras.

Como contar um conto sem aumentar um ponto? E sem spoiler! Ou melhor: como contar um conto sem entregar os pontos? Ainda mais em se tratando de contos curtos. Embora não seja a regra nas paragens do mineiro Guima Rosa, talvez o único autor brasileiro a ombrear com Machado de Assis. Contos curtos sim, sintéticos quanto a escolha das palavras, como é tão caro à poesia – prosa lírica de Rosa.

Não cabe aqui resenhar todos os contos, talvez apenas tecer algumas breves sinopses, ou resumi-los ao tema principal de cada narrativa. Primeiras estórias é composto por 21 contos, dos quais apresentarei uma pequena amostra.

A começar pelo título, Primeiras estórias é grafado com ‘e’ pelo autor para diferenciar de história. Embora sinônimos no dicionário, Rosa afirma assim a particularidade da ficção do contador de estórias com ‘e’ em relação ao registro de época da história com ‘h’ feito pelo historiador.

Há a descoberta do mundo pelo menino ao visitar os tios no conto “As margens da alegria”.

Em “A menina de lá”, Nhinhinha de 4 anos diz disparates poéticos muito avançados para a sua idade. E, como se não bastasse, a menina Nhinhinha prevê o futuro e conquista a fama de milagreira.

Há também um interessante ensaio sobre o espelho em “O espelho”.

E os três caboclos mal-encarados montados a cavalo em “Famigerado”! O ofendido avança no arraial de cenho carregado, porém aberto ao diálogo.

“– Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é: fasmisgerado”. Palavra usada por “um moço do Governo”. E o cabra sem saber se era elogio ou difamação necessita esclarecimento. Embora seja um matador aposentado, o cabra de muitas mortes nas costas pode voltar à ativa dependendo do significado.

“O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo.” 

 Já em “Os irmãos Dagobé”, temos o velório de Damastor Dagobé, o mais velho de quatro irmãos facínoras.

Damastor é uma espécie de patriarca ditador do que restou da família: irmãos numa casa sem pais. Mentor dos “meninos”, Damastor Dagobé destrincha seu “inventário de maldades” enquanto a chuva cai lá fora.

“Eis que eis:”

Liojorge é o responsável por enviar Damastor “para o sem-fim dos mortos”. ‘D’ de coisa ruim.

 Derval Dagobé – o caçula;

Doricão Dagobé – o do meio; e

Damastor Dagobé – o primogênito finado “mandão e cruel” que deixa dinheiro e nenhuma saudade. Mas, ao fim e ao cabo, depois do chorar/rir do velório ao enterro, vem o acerto de contas – a vingança! –, porque sendo irmãos de quem são, os Dagobé não levam desaforo para casa.

“Se e se?”

E não é que o doido se oferece para carregar o caixão!

 Primeiras estórias apresenta pelo menos duas pequenas obras primas do conto brasileiro: “Sorôco, sua mãe, sua filha” e o famigerado “A terceira margem do rio”.

Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, Sorôco leva ambas de braços dados “uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro.” para entregá-las à viagem final na estação de trem com destino ao sanatório. No caminho, sua mãe e sua filha entoam juntas a canção da desrazão, de modo que ao partirem no trem da estação, Sorôco desnorteado, sem olhar para trás, volta para casa cantando para si a canção familiar, acompanhado por toda a cidade como em romaria que segue seus passos cantarolando a, já agora, sua canção.

Por fim, esse que é um dos meus contos favoritos da vida, o qual retomo a leitura de tempos em tempos: “A terceira margem do rio”, o mais célebre (famigerado) dessa coletânea dos primeiros escritos do autor de Grande sertão: veredas.

O pai decide viver numa canoa amarrada a uma árvore e ancorada (amarrada) no meio do rio. Sendo ela (a canoa) a tal terceira margem, uma terceira via: nem tanto ao chão nem tanto ao mar; nem numa margem nem na outra; nem terra nem céu; nem água ou ar; uma opção o caminho do meio. No meio do caminho o que vale é a jornada.

Nada de pescarias ou caçadas, preocupação da esposa. A canoa seria a sua nova morada. Canoa de pau de vinhático feita por encomenda.

“Cê vai, ocê fique, você nunca volte.”

O pai ao relento, exposto às intempéries do tempo, envelhece na floresta: de cabelos brancos e desgrenhados, barba comprida, todo peludo, com aspecto de bicho, quase nu. A mulher desiste de esperar e se muda com uma das filhas. A outra filha se casa e parte com o marido. Só fica o filho com a missão de levar o de comer e roupas ao pai. Pouco do muito que o pai toca já basta para a sua subsistência. Até o esperado dia em que a canoa, seu berço e sua campa, lhe serve de condução para o outro lado.

 “Pai, o senhor está velho”, grita o filho já grisalho, à margem da vida de seu progenitor. “Já fez o seu tanto… Agora, o senhor vem, não carece mais… O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!…” (p. 42) Arrependimento (ou medo) pela rebeldia de não seguir os passos do pai? O pai nunca mais se viu. Metáfora da hereditariedade da vida quando se deposita o filho na mesma “canoinha de nada” que o conduzirá através desse rio à ilha dos mortos.

“A terceira margem do rio” é peça grandiosa em mera meia dúzia de páginas. “A terceira margem do rio” (repito tal qual um slogan, só para reforçar) virou filme, série, novela, quadrinhos, pintura, música de Caetano e Milton. Quem toma conhecimento não esquece; conto que acompanha a vida do leitor. A terceira margem, esse entrelugar.

 “A terceira margem do rio” do Guima Rosa é um CONTO BELÍSSIMO!, para dizer o mínimo. Se não conhece ou não teve a oportunidade de ler – para tudo! –, para de ler esse textículo agora e vai logo ler essa estória, disponível na web caso não tenha o livro. O tempo urge, o tempo ruge! “(…) rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.”

 

 


ANDRI CARVÃO
. Formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.






RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.





 


Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)

Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025




∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




 

Nenhum comentário:

Postar um comentário