1. Henry, June e eu: delírios eróticos – Anaïs Nin
Aos 7 anos, a francesa Anaïs Nin
(1903-1977) decide ser escritora, assinando Anaïs
Nin, membro da Academia Francesa. Aos 11, começa a escrever o seu famoso diário,
de 1914 a 1977, totalizando cerca de 35 mil páginas. Como sua ficção não gerava
maiores interesses por parte do público leitor tanto quanto as páginas de seus diários,
Anaïs Nin passa a publicar trechos destes ou a ficcionalizar a sua vida. Desse modo,
Henry,
June e eu: delírios eróticos é um romance extraído de seus diários íntimos,
onde relata o período em que a autora francesa conheceu e se relacionou com o escritor
americano Henry Miller. O livro mantém a forma de diário em primeiríssima pessoa.
No interior dos capítulos, nomeados por meses daquele longínquo ano de 1931, Anaïs
Nin compila bilhetes e trocas de cartas entre ela e Henry Miller, dentre outras
personagens mencionadas no livro. Nossas contendas: ele em sua linguagem, eu na minha. Nunca uso as palavras
dele. Acho que meu registro é mais inconsciente, mais instintivo.
No sétimo ano de casada com o banqueiro
Hugh Guiller, o casal se propõe a viver um relacionamento aberto. Não sabem como
começar, porque têm dúvidas sobre o quão positivo ou prejudicial seria para a relação
do casal, pois se amam apesar das brigas constantes.
Em dezembro de 1931, o escritor
americano Henry Miller entra na vida do casal Anaïs e Hugh. Trata-se do período parisiense a que se refere o escritor
americano no incensado Trópico de câncer, publicado na França em 1934 e proibido
nos EUA até 1961.
Conheci Henry Miller. (…) Quando ele saltou do carro e se dirigiu para a porta onde eu estava
esperando, vi um homem de que gostei. Em seus escritos ele é extravagante, viril,
animal, magnificente. É um homem a quem a vida embriaga, pensei. É como eu.
Além de Miller e do marido de Anaïs,
chamado de Hugo no livro, outra figura masculina de destaque é o amigo e confidente
Eduardo, que se declara a ela, porém sem ser correspondido. Eduardo a aconselha
sobre a iniciação nas práticas do seu desejo
de orgias junto ao marido.
A vida de instintos liberados é composta de camadas. A primeira camada
leva à segunda, a segunda à terceira e assim por diante. No final leva a prazeres
anormais. – Como Hugo e eu poderíamos preservar o nosso amor nesta liberação dos
instintos ele não sabia. Experiências, sem as alegrias do amor, dependem de distorções
e perversões para o prazer. Prazeres anormais matam o gosto pelos normais.
Duas coisas excitam Anaïs Nin num
homem: o beijo e a imaginação. E Miller a excita das duas maneiras. Embora confesse
que, no primeiro encontro, para mostrar a ele as provas de seu romance de estreia,
é atacada de tal forma (ele, forte e viril e ela tão frágil, uma virgem prostituta, conforme suas palavras),
que quase é estuprada pelo desejo intenso e pela brutalidade de Miller, de modo
que naquele momento, consegue se desvencilhar.
O que parece uma brincadeira, como
os primeiros jogos sexuais com John e Drake, seus relacionamentos extraconjugais,
se intensifica com relação a Henry Miller. A curiosidade pelo estrangeiro lhe desperta
o desejo. Anaïs reconhece a sua libido em Miller, o que a leva a June, companheira
do escritor. Hugo sente ciúme de Miller, teme perder Anaïs e tem repulsa por June.
Henry é violência e June, destruição.
Henry (…) tem
grandes ódios. Eu não. Tudo comigo ou é veneração e paixão ou pena e compreensão.
Raramente odeio, embora quando odeie, odeie com furor assassino. Por exemplo agora,
odeio o banco e tudo ligado a ele. Também odeio pinturas holandesas, chupar pênis,
festas e tempo frio chuvoso. Mas estou mais preocupada com o amor.
E mais adiante:
June dissera que ele estava inquieto, porque tem mais ciúme de mulheres
do que de homens. June, inevitavelmente, semeia loucura. Henry, que me considerava
uma pessoa ‘rara’, agora me odeia. Hugo, que raramente odeia, odeia June.
Henry Miller chega em Paris sem
um tostão no bolso. Vive miseravelmente com sua companheira June. Anïs Nin se envolve
com o escritor e o homem Henry Miller e, assim, passa a financiar a vida e a carreira
literária dele com o dinheiro do marido banqueiro. A relação entre os dois amantes,
leva a escritora francesa a se interessar por June, formando o triângulo amoroso
a que Hugo não participa fisicamente, excitado apenas por tomar conhecimento.
Um rosto surpreendentemente branco, olhos ardentes, June Mansfield,
a esposa de Henry. Quando ela veio em minha direção da escuridão do meu jardim até
a luz da entrada, vi pela primeira vez a mulher mais linda da Terra.
(…)
No final da noite eu era como um homem, terrivelmente apaixonado por
seu rosto e corpo, que prometia tanto, e odiava o eu criado nela por outros. Outros
sentem por causa dela; e por causa dela, outros escrevem poesia; por causa dela,
outros odeiam; outros, como Henry, amam-na apesar deles mesmos.
O sexo entre Anaïs e Henry é aditivado
por longas conversas sobre literatura, filosofia, poesia e afins. Henry Miller é
um homem mais velho e, por isso, mais experiente do que a jovem Anaïs Nin; enfim,
o tipo de homem que ela tanto deseja. Esse relacionamento de corpo e alma com o
escritor americano, a faz perder gradativamente o interesse pelo espírito burocrata
de seu marido Hugo. (…) eu não pude suportar Hugo lendo os jornais e falando sobre trustes
e um dia bem-sucedido. Ela o considera um homem sem alma e se tortura
por deixar de amá-lo. Domingo. Hugo vai jogar golfe. Visto-me ritualisticamente e comparo
a alegria em me vestir para Henry com minha tristeza em me vestir para banqueiros
idiotas e reis do telefone. Para Anaïs Nin, (…) uma
vida padronizada não é vida.
Anaïs, jovem educada na melhor
tradição europeia, se sente atraída pelo fato de June ser uma mulher extravagante,
cheia de opiniões e, de certa forma, tão tagarela, irrefreável quando começa a falar
sobre a sua experiência de vida tão peculiar. Fato este que, com certeza, estimulou
o relacionamento de June com Miller, por ela se apresentar como um verdadeiro repositório
de estórias.
O que me deixou doente agora? June. June e sua atração sinistra. Ela
já tomou drogas; amou uma mulher; fala na linguagem de tiras quando conta histórias.
E no entanto conservou aquele incrível e ultrapassado sentimentalismo.
June teve um caso com a escultora
Jean, algo que ela não consegue resolver, que permanece no limbo de sua consciência.
Esse amor mal resolvido de June é motivo de ciúmes e de brigas intensas com Henry.
Como na Quadrilha de Drummond: – June tinha lágrimas nos olhos
quando falou de sua generosidade. – E eu pude ver que ele a amava por isso. Em seu
romance está claro que a generosidade de June não se estendia a ele – ela o torturava
constantemente – mas a Jean, porque ela era obcecada por Jean. E o que faz a Henry?
Ela o humilha, deixa-o carente, destrói sua saúde, atormenta-o – e ele floresce;
escreve seu livro.
Semelhante ao que faz por Henry,
Anaïs cobre June de presentes, além de ser generosa com dinheiro. Nossos
medos de desagradar uma à outra, de nos desapontarmos mutuamente eram os mesmos.
June despeja um caminhão de experiências e Anaïs retribui cobrindo-a de joias e
vestidos. O luxo não é uma necessidade para mim, mas coisas bonitas e boas são.
Enfim, Anaïs Nin e Henry Miller
estão embriagados pela paixão: a paixão pela Literatura, a paixão pelos livros escritos
e a escrever, apaixonados pela vida. O amor de apenas um homem ou uma mulher é uma prisão. Estão
incestuosamente irmanados pelo sexo, numa verdadeira confusão, ou melhor, numa masturbação
mental entre paixão/sexo/amor. A dor é algo a ser dominado, não estimulado.
Anaïs Nin devora os romances recém-escritos
por Henry Miller: Moloch e Primavera negra. Henry Miller retribui lendo excertos dos
diários e o estudo de Anaïs Nin sobre a obra de D. H. Lawrence (autor de O amante
de Lady Chaterley). Escrever não é, para nós, uma arte, mas respirar. Influenciada
pelo casal Henry e June, Anaïs mergulha na leitura de Dostoiévski.
Tudo vai às tontas, até que June
volta para a América – para os braços da escultora Jean?
– Sim, eu a odeio – diz Henry –, porque vejo por suas anotações que
nós somos dois ingênuos nas mãos dela, que você está iludida, que existe uma direção
perniciosa, destrutiva para as mentiras dela. Perfidamente, elas têm a intenção
de deformar-me aos seus olhos, e você aos meus. Se June voltar, ela nos envenenará
um contra o outro. Eu temo isso.
Anaïs abraça Henry com as pernas,
como a se agarrar a uma tábua de salvação em pleno naufrágio.
As melhores mentiras são meias-verdades.
Há anos desejo
(esta é a palavra adequada) Henry e June de Anaïs Nin. Quando adolescente mergulhei
profundamente até me afogar na obra de Henry Miller. Foi difícil me desvencilhar.
Há anos não leio nada do autor. Mas é inegável que tenha deixado marcas, cicatrizes
literárias. A descoberta e o interesse pela obra da autora francesa, partiu da versão
cinematográfica de Henry e June, estrelada por Maria de Medeiros como Anaïs
Nin e Uma Thurman como June Mansfield, que assisti pela metade no Corujão, durante
a madrugada. Há tempos procuro a edição da L&PM Pocket, mas, por fim, encontrei
no Skoob e me contentei lendo essa edição da Círculo do Livro.
2. Depressões | Herta Müller
Depressões é um livro de contos da escritora romena Herta Müller
(1953), Prêmio Nobel de Literatura de 2009.
Em “O discurso fúnebre” um filho
ou uma filha narra em primeira pessoa o velório, o caixão no meio da sala, e o cortejo
até o enterro do pai. A partir dos retratos de família nas paredes o narrador ou
narradora relata a história desse pai; o passar do tempo, da infância à vida adulta,
como num álbum de família.
Na segunda parte do conto, um dos
dois homenzinhos bêbados, que baixam o caixão para a cova com uma corda, assume
a primeira pessoa na narrativa e conta à criança a vida pregressa de seu pai durante
a guerra: as mortes e o estupro de uma mulher russa numa plantação de nabos junto
a mais quatro soldados. Desde então, “nabos” se tornou sinônimo do que o seu pai
trazia entre as pernas, as armas dos soldados. O canto estridente de uma cantora
de ópera lembra os gritos da mulher estuprada. As mulheres, nabos…
É então que o conto assume uma
atmosfera onírica de delírio e pesadelo.
No conto “O banho suábio”, uma
família toma banho na mesma banheira, um de cada vez: o pequeno Arni, o pai, a avó,
o avô. A água negra da banheira demora para esfriar.
Em “Minha família”, temos um rosário
de misérias.
Tanto em “Banho suábio” como em
“Minha família” há o recurso da repetição em contos anafóricos que soam como a poesia
contemporânea.
O livro de Herta Müller é composto
por 15 contos, sendo o mais longo o conto ou novela que dá título à coletânea.
Em “Depressões”, temos um besouro
no ouvido e dentro do ouvido um zumbido. Ela comia flores de acácia e outras flores
comestíveis, e o avô sempre pontual “E você não quer ficar boba, quer?”; “E
você não quer ficar muda, quer?”, diz como forma de alertá-la sobre
o perigo de comer flores por conter moscas negras dentro delas. Ela brinca de papai
e mamãe no celeiro e dá à luz bonecas e bebês de sabugo de milho. Veste os gatos
com roupas de bonecas para niná-los. Caça borboletas, moscas, andorinhas, cachorros
mortos. “E de onde veio a primeira borboleta, vovô? E pare já com tanta pergunta
boba, ninguém sabe, e vá brincar.”
O pai não tocou na esposa na noite
de núpcias. O pai não tocou na esposa durante a colheita de cerejas. Seu pai a espancava
e espancava também a esposa, sua mãe.
As superstições do avô.
As gralhas, os gatos, os cachorros
são todos enxotados por homens e mulheres.
Os passarinhos cantam sempre a
mesma canção e quando se vão, deixam a mesma merda branca.
Vacas. O dia em que a vaca a chifrou
e o ódio que sentiu.
Gralhas, mariposas, salamandras,
ratos, galinhas, ovelhas, sapos, cobras, libélulas – a vida no campo.
A descoberta da morte, os mortos
saqueados, o velório em casa “(…) o último defunto vigia o cemitério até a próxima pessoa morrer.”
Vivências. A presença do quintal,
do jardim, da roça, da igreja, a festa na paróquia, os afazeres domésticos das mulheres
e os homens na taberna. O milho, a gritaria das crianças saindo da escola, a neve
e a primavera, urtigas e a passagem do tempo, nascimento, vida e morte entre crianças,
adultos e velhos. Primavera, verão, outono e neve.
A bruxa da aldeia, “bruxa” porque
fazia tudo diferente das demais. Os espantalhos vestidos com ternos dos maridos
recheados de palha e sem cabeças. A fome no ar.
Vovô anda pelo quintal falando
sozinho.
Na casinha, ela chora escondida.
Mamãe batia se a descobrisse chorando escondida.
A sexualidade infantil. A descoberta
de Heine, seu primo, ao compartilhar o urinol. O medo dos raios que iluminam o quarto
onde deitam-se juntos.
“Deixe estar, então nós vamos nos
casar.”
“Mas você é meu primo.”
Gansos, andorinhas, pardais, o
veterinário, o dentista. O padre e o prefeito não se entendem por conta do sino
enferrujado.
A narradora, Käthe, seu pai e sua
mãe no carro pelo campo a caminho da casa da velha.
“O ar quente da barriga de Käthe
tem o cheiro de peras podres.”
“Seu andar (o do pai) cheira a peras podres.”
Ela e Käthe ficam na casa da velha,
enquanto o pai e a tia saem de carro.
“Vejo a calcinha azul de Käthe com
a mancha amarela de peras podres entre suas coxas.”
As duas são primas.
O carro retorna sem os caixotes.
“O assento ainda está quente das
coxas da tia e tem cheiro de peras podres.”
Ao chegarem em casa, seu pai atira
o dinheiro na mesa. Sua mãe está remendando as meias dele.
Depressões é o livro de estreia de Herta Müller, autora romena
de língua alemã. Os contos abarcam o período do final da Segunda Guerra Mundial
até os anos 80 numa região entre Romênia, Sérvia e Hungria, ainda sob o regime socialista.
A linguagem, além de anafórica, apresenta enumerações de animais e vegetais. A narrativa
não linear com começo, meio e fim, prefere trazer o leitor para o meio do turbilhão
como quem pega o bonde andando e precisa se adaptar. A escritora mais sugere através
de imagens e pequenos movimentos cotidianos do que explicita. A poesia está presente
nas entrelinhas.
Os manuscritos perdidos não é um livro de Charlotte Brontë
(1816-1855) ou uma biografia da autora de Jane Eyre, mas sobre
a família Brontë.
A matriarca Maria Brontë
se casa com o reverendo do presbitério de Haworth, Patrick Brontë, dando início
a saga de uma das famílias mais influentes da literatura mundial – as irmãs Brontë:
Charlotte Brontë (autora de Jane Eyre), Emily Brontë
(de O morro dos ventos uivantes) e Anne Brontë (de Agnes Grey). Além do trio de escritoras, Maria deu à luz
a mais três filhos: as primogênitas Maria e Elizabeth, que faleceram ainda crianças,
e Branwell, o único varão, pintor que não se tornou conhecido como as irmãs escritoras,
mas foi responsável pelo famoso retrato das irmãs Brontë.
Branwell era parceiro de
Charlotte na criação do reino imaginário de Angria, enquanto Emily
e Anne criaram uma ilha no Pacífico Norte batizada de Gondal. Estes mundos fazem parte da juvenília, a obra imatura produzida pelas irmãs Brontë durante
a infância e adolescência. Ao contrário das irmãs famosas, Branwell não deixou uma
obra marcante.
O livro Os manuscritos perdidos é uma compilação de relatos produzidos
por especialistas na obra da família Brontë sobre este que é um verdadeiro achado
recente (2015!): o livro The remains of Henry Kirke White,
obra do poeta promissor falecido precocemente aos 21 anos, selecionada pelo poeta
Robert Southey.
O reverendo Patrick Brontë,
patriarca da família, se orgulhava de ter conhecido e auxiliado o jovem poeta durante
a universidade. Sua esposa, Maria Brontë, possuía um exemplar de The remains. Esta obra, juntamente a outros pertences da
mamãe Brontë num baú, havia sido salva das águas em decorrência de um naufrágio.
Após a morte de Maria, o viúvo reverendo Patrick Brontë preservou o volume como
uma relíquia da família, um memento mori da esposa.
Seus filhos, influenciados pela leitura incessante do livro do poeta romântico Henry
Kirke White, deixaram manuscritos de poemas e esboços de romances (como o embrião
de O morro dos ventos uivantes, p. ex.), além de anotações
sobre os poemas às margens das páginas e desenhos ao longo de todo o volume. O pai
enterrou a esposa e todos os seus seis filhos que faleceram jovens. Com o desaparecimento
do último integrante da família Brontë, o livro The remains of Henry Kirke White
passou de mão em mão de colecionadores até ser negociado por um dono de sebo dos
E.U.A. diretamente com o Brontë Parsonage Museum
na Inglaterra, retornando assim depois de mais de um século à residência da família
Brontë na cidade de Haworth em 2015.
O livro Os manuscritos perdidos, além de narrar a trajetória da
família Brontë, traz material ricamente ilustrado com páginas do livro The remains of Henry Kirke White, trechos de manuscritos
das irmãs, desenhos de Branwell e fotos de livrinhos miniaturas, produzidos pelas
escritoras.
Os manuscritos perdidos é composto por um prefácio da
atriz britânica Judi Dench, presidente da Sociedade Brontë, além
de textos das maiores especialistas sobre a vida e a obra da família Brontë: Ann
Dinsdale (Perdido e encontrado), Barbara Heritage (A arqueologia do livro), Emma Butcher (Uma visita a Haworth: unindo fantasia à realidade), Sarah
E. Maier (Cristais partidos: rapazes, sede de sangue e beleza) e Ann-Marie
Richardson (Reinventando o céu).
Encontrei por acaso este
Os manuscritos perdidos num estande giratório de uma banca
de jornal, a Banca do Raul, no largo da Vila Carrão em São Paulo. Um
verdadeiro achado! Tão incrível quanto um manuscrito amarelado numa garrafa em alto
mar…
4. Perto do coração selvagem | Clarice
Lispector
O que eu já havia lido de Clarice
Lispector antes de ler Perto do coração selvagem? Laços de família (contos,
1960), A legião estrangeira (contos, 1964), A mulher
que matou os peixes (infantil, 1968), Água viva (romance sem
romance, 1973) e A hora da estrela (novela, 1977). A hora
da estrela foi o livro com o qual entrei em contato com a obra da autora.
Li três vezes este romance curto (ou novela), última obra publicada por Clarice
alguns meses antes de sua morte. A primeira vez li ainda adolescente, por curiosidade,
e porque tinha a intenção de conhecer pelo menos a obra principal de cada autor
das literaturas brasileira e universal. Depois reli por conta da lista de leituras
obrigatórias para o vestibular. E, por fim, para uma disciplina de Literatura Brasileira
da faculdade. Recomendo A menor mulher do mundo, conto do livro Laços
de família para quem quer se iniciar na obra da autora. Li, reli e tresli
este conto e, desde a primeira leitura, ele nunca mais saiu da minha cabeça.
Perto do coração selvagem é o livro de estreia da escritora brasileira Clarice
Lispector, nascida em Chechelnyk na Ucrânia (1920-1977). Publicado em 1943, quando
a autora contava 23 anos de idade, embora reze a lenda que tenha escrito o romance
aos 17 anos.
O título do livro é inspirado em
frase do livro Retrato do artista quando jovem de James Joyce, sugerida
pelo escritor Lúcio Cardoso para a epígrafe do romance: “Ele
estava só. Estava abandonado, feliz perto do selvagem coração da vida.”
Perto do coração selvagem narra em terceira pessoa a história de Joana. A infância
com o pai, a quem, numa das primeiras passagens do livro, mostra um poema de sua
autoria. A personagem é uma menina precoce, dotada de uma imaginação muito fértil,
o que causa a preocupação paterna – “o que vai ser de Joana?”.
Intercalando capítulos narrativos,
quando a ação da história acontece, com capítulos de fluxo da consciência, onde
Clarice tece a vida interior das personagens, seus sentimentos mais íntimos, suas
percepções e pensamentos. Na ação seguinte, o tio de Joana a leva para sua casa
na praia. Lá chegando, ela é recebida pela tia que diz a meia voz algo como “pobre
orfãzinha”. Joana corre em direção à praia e se atira na areia com o
rosto coberto de lágrimas. Há um comentário narrativo que pode ser um pensamento
da menina (discurso indireto livre) dizendo que ela “perdeu o pai, mas ganhou a praia”,
como uma espécie de compensação. A princípio a recepção dos tios é calorosa, mas
com o passar do tempo o convívio na casa se torna um tanto conturbado. O mutismo
de Joana incomoda sua tia, que a vê como uma aparição, um espírito ruim, uma espécie
de demônio que aparece de repente quando menos se espera. No quarto com o esposo,
a tia propõe enviar a menina para um internato. Joana escuta a conversa de passagem
pela porta entreaberta. À mesa, durante a refeição, a menina quebra o silêncio perguntando
quando vai ser levada para o internato. A tia se mostra surpresa, como se Joana
não pudesse simplesmente ter escutado sua conversa.
No internato, sua relação com as
outras crianças também é bem difícil. Há um salto temporal e Joana já é adolescente,
com cerca de 15 anos, e está na casa de seu professor de Literatura. O professor
exerce certo fascínio sobre a menina, mas ele é casado. Quando sua esposa se aproxima
do marido por trás e toca em seu ombro olhando e sorrindo para Joana, esta percebe
que não é bem-vinda ali e que não tem a menor chance com o professor.
A recepção crítica do livro comparou
a escrita de Clarice Lispector a de autores como Virginia Woolf e Marcel Proust,
o que irritou a autora, porque ela ainda não conhecia as obras de tais autores.
5. Primeiras estórias | Guimarães Rosa
Primeiras estórias (1962), apesar do título iniciático, é o terceiro livro
publicado pelo escritor brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967), após Sagarana
(1946) e o clássico Grande sertão: veredas (1956).
Assim como é comum em sua obra,
aqui nessas estórias primeiras do nosso Rosa, já nos deliciamos com os achados do
autor em neologismos por aglutinação, tais como: “enxadachim” (espadachim
de enxada = trabalhador rural); “engenhingonça” (geringonça engenhosa); e “boquinãoabrir”
(em oposição a boquiaberto), só para citar alguns exemplos brotados do poliglota
Rosa, mestre das palavras.
Como contar um conto sem aumentar
um ponto? E sem spoiler! Ou melhor: como contar um conto sem entregar os
pontos? Ainda mais em se tratando de contos curtos. Embora não seja a regra nas
paragens do mineiro Guima Rosa, talvez o único autor brasileiro a ombrear com Machado
de Assis. Contos curtos sim, sintéticos quanto a escolha das palavras, como é tão
caro à poesia – prosa lírica de Rosa.
Não cabe aqui resenhar todos os
contos, talvez apenas tecer algumas breves sinopses, ou resumi-los ao tema principal
de cada narrativa. Primeiras estórias é composto por 21 contos, dos quais
apresentarei uma pequena amostra.
A começar pelo título, Primeiras
estórias
é grafado com ‘e’ pelo autor para diferenciar de história.
Embora sinônimos no dicionário, Rosa afirma assim a particularidade da ficção do
contador de estórias com ‘e’ em relação ao registro de época da história
com ‘h’ feito pelo historiador.
Há a descoberta do mundo pelo menino
ao visitar os tios no conto “As margens da alegria”.
Em “A menina de lá”, Nhinhinha
de 4 anos diz disparates poéticos muito avançados para a sua idade. E, como se não
bastasse, a menina Nhinhinha prevê o futuro e conquista a fama de milagreira.
Há também um interessante ensaio
sobre o espelho em “O espelho”.
E os três caboclos mal-encarados
montados a cavalo em “Famigerado”! O ofendido avança no arraial de cenho carregado,
porém aberto ao diálogo.
“– Vosmecê agora me faça a boa obra
de querer me ensinar o que é: fasmisgerado”. Palavra usada por “um
moço do Governo”. E o cabra sem saber se era elogio ou difamação necessita
esclarecimento. Embora seja um matador aposentado, o cabra de muitas mortes nas
costas pode voltar à ativa dependendo do significado.
“O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo.”
Já em “Os irmãos Dagobé”, temos o velório de Damastor
Dagobé, o mais velho de quatro irmãos facínoras.
Damastor é uma espécie de patriarca
ditador do que restou da família: irmãos numa casa sem pais. Mentor dos “meninos”,
Damastor Dagobé destrincha seu “inventário de maldades” enquanto a chuva cai lá fora.
“Eis que eis:”
Liojorge é o responsável por enviar
Damastor “para o sem-fim dos mortos”. ‘D’ de coisa ruim.
Derval Dagobé – o caçula;
Doricão Dagobé – o do meio; e
Damastor Dagobé – o primogênito
finado “mandão e cruel” que deixa dinheiro e nenhuma saudade.
Mas, ao fim e ao cabo, depois do chorar/rir do velório ao enterro, vem o acerto
de contas – a vingança! –, porque sendo irmãos de quem são, os Dagobé não levam
desaforo para casa.
“Se e se?”
E não é que o doido se oferece
para carregar o caixão!
Primeiras estórias apresenta pelo menos duas pequenas obras
primas do conto brasileiro: “Sorôco, sua mãe, sua filha” e o famigerado “A terceira
margem do rio”.
Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”,
Sorôco leva ambas de braços dados “uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório.
Era uma tristeza. Parecia enterro.” para entregá-las à viagem final
na estação de trem com destino ao sanatório. No caminho, sua mãe e sua filha entoam
juntas a canção da desrazão, de modo que ao partirem no trem da estação, Sorôco
desnorteado, sem olhar para trás, volta para casa cantando para si a canção familiar,
acompanhado por toda a cidade como em romaria que segue seus passos cantarolando
a, já agora, sua canção.
Por fim, esse que é um dos meus
contos favoritos da vida, o qual retomo a leitura de tempos em tempos: “A terceira
margem do rio”, o mais célebre (famigerado) dessa coletânea dos primeiros escritos
do autor de Grande sertão: veredas.
O pai decide viver numa canoa amarrada
a uma árvore e ancorada (amarrada) no meio do rio. Sendo ela (a canoa) a tal terceira
margem, uma terceira via: nem tanto ao chão nem tanto ao mar; nem numa margem nem
na outra; nem terra nem céu; nem água ou ar; uma opção o caminho do meio. No meio
do caminho o que vale é a jornada.
Nada de pescarias ou caçadas, preocupação
da esposa. A canoa seria a sua nova morada. Canoa de pau de vinhático feita por
encomenda.
“Cê vai, ocê fique, você nunca volte.”
O pai ao relento, exposto às intempéries
do tempo, envelhece na floresta: de cabelos brancos e desgrenhados, barba comprida,
todo peludo, com aspecto de bicho, quase nu. A mulher desiste de esperar e se muda
com uma das filhas. A outra filha se casa e parte com o marido. Só fica o filho
com a missão de levar o de comer e roupas ao pai. Pouco do muito que o pai toca
já basta para a sua subsistência. Até o esperado dia em que a canoa, seu berço e
sua campa, lhe serve de condução para o outro lado.
“Pai, o senhor está velho”, grita o filho já grisalho, à margem da vida de seu progenitor. “Já fez
o seu tanto… Agora, o senhor vem, não carece mais… O senhor vem, e eu, agora mesmo,
quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!…”
(p. 42) Arrependimento (ou medo) pela rebeldia de não seguir os passos do pai? O
pai nunca mais se viu. Metáfora da hereditariedade da vida quando se deposita o
filho na mesma “canoinha de nada” que o conduzirá através desse rio à ilha dos
mortos.
“A terceira margem do rio” é peça
grandiosa em mera meia dúzia de páginas. “A terceira margem do rio” (repito tal
qual um slogan, só para reforçar) virou filme, série, novela, quadrinhos,
pintura, música de Caetano e Milton. Quem toma conhecimento não esquece; conto que
acompanha a vida do leitor. A terceira margem, esse entrelugar.
“A terceira margem do rio” do Guima Rosa é um CONTO
BELÍSSIMO!, para dizer o mínimo. Se não conhece ou não teve a oportunidade de ler
– para tudo! –, para de ler esse textículo agora e vai logo ler essa estória,
disponível na web caso não tenha o livro. O tempo urge, o tempo ruge!
“(…) rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.”
ANDRI CARVÃO. Formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)
Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
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