1. O infinito não cabe no jardim
O olhar da poesia
não é mecânico, rígido e claro. Em Abrir a boca da cobra (Círculo de poemas, 2023), de Sofia
Mariutti, os olhos desse eu que observa o mundo relembram-nos disso. Seus poemas
demonstram o poder multifocal dessa visão, capaz de ver os bichos diminutos que
habitam casas e jardins, de aproximar-se dos bichos que estão longe de nós em sua
natureza indevassável, ou até mesmo rever o passado e captar o futuro, percebendo
o finito e o infinito que há em tudo.
Esse olhar da poeta,
no entanto, não é o olhar que utilizamos no dia a dia, e nem suas palavras são correspondentes
fiéis das coisas enunciadas. Assim, o bestiário complexo que surge desde o título
– a cobra, a orca, a lagarta, o crocodilo e por aí vai – possui uma identidade múltipla,
sendo ao mesmo tempo a coisa e outra coisa. Por serem feitos de palavras, esses
animais carregam consigo a imagem próxima do bicho que existe e das acepções subterrâneas
fundadas em nossos diferentes círculos sociais.
Um bom exemplo dessa
capacidade de ver e ver além está no poema em que dois pássaros pretos caem do chuveiro
na cabeça do sujeito lírico, encerrando-se com os versos “talvez consiga me livrar/
mas minha cabeça// seguirá sempre/ cheia de penas”. O uso do termo “penas” é atravessado
por sentidos que ampliam a visão do incidente insólito. Assim, os pássaros pretos
– como aves de mau agouro, como não lembrar do corvo de Poe? – e a imagem do banho
– momento de isolamento e desnudamento em que sentimentos tantas vezes podem vir
à tona – são arrematados pelas penas dos pássaros, trazendo ao poema o profundo
sentido de um sujeito cujas perdas e faltas, as penas, são vistas como inseparáveis
de sua constituição enquanto ser vivo.
Porém não apenas
no que é concreto se experiencia essa visão do aqui e do além, a via de mão dupla
se percebe também na relação da poeta com o tempo. Nos versos exemplares “– O mundo
dos dinossauros/ nunca acaba” percebe-se como a ideia de passado, presente e futuro
é formada por esse amálgama de tempo em que as imagens sobrevivem. Assim, não é
possível ler o agora com a simplicidade que o desconecta do que já passou nem do
futuro que virá, pois o passado ainda está aqui e o que vai acontecer já está em
marcha desde muito antes.
Há um símbolo que
representa essa continuidade do tempo e dos seus retornos, a da cobra mordendo o
próprio rabo. Nesse sentido, a poesia de Sofia se faz ativa ao buscar abrir a boca
da cobra, não que assim possa romper definitivamente o retornar de certos tempos,
mas ao menos procura agir diante da impassibilidade dos que apenas observam a vida
sem que haja luta. Logo, os últimos versos da obra transmitem essa atitude de dizer
e do cuidar (“Não te deixo cair na água/ Não deixo.”).
Ao ritualizar essas
palavras, ao proferir os versos que abrem a boca da cobra, que impedem que a menina
do poema caia na água, a poesia de Mariutti – com seus gestos de água, símbolo da
mudança e da adaptação – atravessam a pedra dos sentidos mais imediatos para falar
do que vai onde os olhos não chegam. Quem olha para as retinas dessa poesia feita
de presente e ao mesmo tempo tão antiga quanto as retinas do tubarão-da-groenlândia,
vê-se diante de camadas e camadas de existência, vê-se diante das próprias penas,
vê-se um pouco amparado diante das águas profundas do ser. São de imagens que a
história se faz, enuncia a poeta, nem sempre as vemos (“Todos apreciam a floração
dos ipês// o que ninguém escuta/ é o grito”), mas há a poesia e sua luta de trazê-las
à tona, mesmo que em fragmentos desse infinito que não cabe no jardim.
2. As muitas faces de Ana
O romance Ana
(Editora Macondo, 2022), de Simone Brantes, captura trechos dispersos
da vida da protagonista que dá nome à obra. Diferentemente de uma história com começo
meio e fim, típica dos romances realistas, a trama construída por Brantes é tecida
por retalhos. Ainda que pareçam peças soltas, não se enganem, é da mesma colcha
– a vida – que se retira a matéria-prima dos acontecimentos narrados.
Abrindo mão dos engessados
esquemas de causa e consequência, cada parte do romance se prende aos anteriores
e aos próximos pelo viver dessa protagonista. Não que não haja aprendizados e mudanças,
o que torna a personagem em questão mais do que apenas uma boneca sem alma que vive
como um joguete nas mãos do narrador.
Porém, assim como
na vida chamada real, o conhecimento que temos de Ana vem também de modo fragmentado.
Não temos menção a datas precisas, embora a alusão a alguns eventos históricos ajude
a localizar vagamente certas passagens do romance. Isso ocorre porque o importante
não é em qual tempo, mas o atravessar desse tempo.
Há ambiguidade em
cada vez que uma parte termina, pois não sabemos ao certo quanto tempo se passou:
dias, meses, anos. Tais medidas também são aludidas de modo impreciso, o que se
sabe é que há uma lacuna entre uma parte e outra, e que durante esses momentos não
narrados a vida de Ana prosseguiu sem que saibamos exatamente como.
A cada nova passagem,
somos apresentados a novos personagens, alguns retornam, alguns desaparecem, marcando
o ritmo da vida de Ana, com suas descobertas, ganhos e perdas. Observamos a falta
de maturidade de Ana diante de sua sexualidade, seu espanto diante de sentimentos
como ciúmes, saudades, amor e paixão – os quais muitas vezes vêm misturados uns
aos outros, também para ela impossível o discernimento.
Sobre o nome “Ana”,
podem ser evocadas duas personagens homônimas que partilham com a protagonista de
Brantes algumas características. A primeira “Ana” é a de Clarice Lispector, presente
no conto “Amor”. Essa Ana vive sua vida pacata de dona de casa, cuida dos filhos,
da casa, do marido, para assim suplantar seus desejos mais íntimos. Tal ordem, no
entanto, é posta em xeque quando, de dentro de um bonde, vê um cego mascando chicletes.
Jogadas no perigo de viver, para além das referências que possuíam (uma como dona
de casa, a outra na vida interiorana da Serra), as duas Anas se dão conta do risco
que existe nas relações humanas, que o amor traz consigo beleza e terror, ambiguidades
da vida as quais são impossíveis de serem desfeitas.
Já a segunda Ana,
é Ana de Amsterdã, da peça Calabar – de Chico Buarque e Ruy Guerra. Assim como na
música “Ana de Amsterdã”, presente no musical, a Ana de Brantes experimenta muitos
corpos, uns apenas passam por elas, outros são capazes de despertar sentimentos
profundos. No caso da Ana de Amsterdã, temos Bárbara, a mulher viúva de Calabar
e que se torna seu amor; com a Ana do romance, temos Marina, também uma presença
importante para a personagem de Brantes. Aliás, a intertextualidade é citada no
romance quando Ana expressa o desejo de proteger Marina “do mal, dos ventos e da
chuva” (p. 179) em muito semelhante ao trecho da canção “Bárbara”, cujo sujeito
lírico é Ana de Amsterdã, que diz “deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva”.
Assim, se não é apenas
uma moça que passa pela vida de Ana, pode-se dizer que também Ana não é sempre a
mesma moça durante o romance. Sua vivência vai acumulando novos modos de olhar e
se relacionar com o amor e suas expectativas. Como anuncia o poema ao final, retomando
a epígrafe de Guimarães Rosa, contar é sempre fragmento. Essa história é a história
que se dá a ver, sem que saibamos das outras histórias de Ana. Contar é sempre escolher,
muito fica oculto por aquilo que não foi dito. Do final de Ana – feliz ou infeliz,
o que é comum em histórias de pendor comercial – não temos nenhuma certeza, pois
é do trajeto – ou trechos dele – que se ocupa Brantes nesse romance em que o enigma
é mais interessante que sua própria resposta.
3. O desaparecido e o encoberto
Em Deus
não dirige o destino dos povos (Editora Caiaponte, 2023), romance de
Marcelo Labes, há como em Paraízo-Paraguay, do mesmo autor, a construção de uma narrativa
que toma como base elementos históricos. Se em Paraízo havia a revelação
de um segredo familiar a partir de um acesso de falar ininterrupto da personagem
Olga, o qual retira das sombras questões acerca da Guerra do Paraguai, aqui nesse
novo trabalho há o olhar que busca detectar as transformações e permanências do
integralismo em momentos-chave da história brasileira.
Desse modo, enquanto
lê as páginas recebidas, Tomás busca em Florianópolis (cidade onde vive) e em Blumenau
(cidade referida nas páginas) documentos e pessoas que possam ajudar a recompor
as linhas perdidas da trama histórica. Aos poucos, no entanto, Tomás percebe que
certas lacunas não são fruto apenas da distância temporal entre o rapaz e o material
recebido – os documentos se referem a um período de tempo que vai dos anos1940 ao
fim dos anos 1980, e o romance se passa por volta de 2018 –, mas que muitos arquivos
foram deliberadamente destruídos a fim de que tais acontecimentos fossem esquecidos.
Quanto mais avança
na leitura, mais torna-se clara a conexão entre eventos temporalmente distantes.
Tomás passa a entender a diluição do integralismo dentro dos sistemas de poder da
sociedade brasileira. A derrocada do fascismo e nazismo na Europa apesar de ter
sido interpretada como consequência para a extinção do integralismo – movimento
brasileiro homólogo aos movimentos do Velho Mundo – revela-se o motivo que levou
seus integrantes a alterar o modus operandi da facção.
Ao final, a escolha
de Tomás – jornalista que só escreve obituários e notas sociais de famosos – para
receber a misteriosa caixa se mostra parte do jogo de mostrar e esconder que o integralismo
vem propondo desde que baixou bandeiras, escondeu símbolos e calou seus gritos de
Anauê,
tornando mais complexa a relação entre o movimento e a sociedade brasileira. A tal
ponto que a ascensão de Jair Bolsonaro em 2018, com seu lema que recicla ideais
integralistas, não foi imediatamente associada ao movimento pela população em geral.
Logo, as causas do
destino trágico do protagonista passam despercebidas, pois não há em seu passado
as marcas de uma atuação política que justificasse seu desaparecimento, um crime
sem digitais, bem ao gosto do integralismo encoberto. A ironia final reside no fato
de que, a menos que a busca pela verdade rompa a paralisia do silêncio, ninguém
irá escrever o obituário de Tomás. Seu nome, mesmo conhecido, ficará submerso em
dúvidas (onde está? está vivo ou morto? por que desapareceu?); enquanto o integralismo,
ainda que sem usar seu nome, continuará agindo em nossas histórias.
4. Por detrás de olhos mansos
Em A pediatra
(2021, Companhia das Letras), de Andréa del Fuego, acompanhamos Cecília,
a pediatra do título, em sua vida por São Paulo. Diferentemente do lugar-comum que
nos leva a imaginar uma médica nessa área de atuação como bondosa e maternal, a
personagem criada por Andréa se mostra, num primeiro momento, repelente a esses
clichês. Cecília, filha de um também pediatra, deixa claro em diversas passagens
do romance que sua escolha profissional está alinhada mais à vida prática do que
à vocação. Assim, ter seguido os passos do pai se alinha mais à facilidade econômica
disponível do que a um desejo mais profundo. O que não faz com que a médica seja
negligente; pelo contrário, apesar da apatia que demonstra em relação aos pequenos
pacientes, enumerados como simples fatos da rotina, não se furta a receitar o remédio
correto ou encaminhá-los para um especialista. Afinal, como ela diz, se a criança
piora, é um problema a mais para resolver.
Além desse cotidiano
no hospital, há sua vida privada. Logo no início da obra, separa-se do marido e
engata um romance clandestino com Celso, o pai de um dos recém-nascidos que atendera
enquanto neonatologista. Mantém uma distância segura de seu pai, mesmo que este
trabalhe no mesmo andar que ela no hospital. Trata Deise, sua empregada, com aparente
cordialidade.
Tudo isso pareceria
assim, sem problemas, se visto pelo lado de fora por um narrador incapaz de devassar
seus pensamentos. O grande ganho deste romance é o uso da primeira pessoa. O olhar
restrito de Cecília em relação ao mundo que a rodeia faz com que seus julgamentos
e hipóteses revelem pouco a pouco seus preconceitos, principalmente de classe.
Diante de certas
situações, o primeiro movimento da narradora é projetar – a partir de sua visão
de mundo – as causas que levaram àquele acontecimento ou inferir os desdobramentos
no futuro a partir de estereótipos, os quais muitas vezes são desmentidos pelo próprio
desenrolar da narrativa.
Desse modo, a escrita
de Andréa del Fuego se faz a partir de duas pistas: em uma corre o pensamento de
Cecília, e na outra a realidade a despeito de suas impressões preconceituosas. Preconceito,
aqui, no sentido primeiro de possuir um conceito preestabelecido para cada coisa
que acontece no mundo.
A pista da realidade
é o local onde o preconceito pouco a pouco se mostra ineficaz para dar conta de
explicar a rede de causas e efeitos, as quais nós – meros humanos – somos incapazes
de apreender. De repente, até mesmo as convicções que a personagem tinha a respeito
de si própria se tornam mais inseguras, tornando-a mais complexa. Ao final, já não
sabemos tão bem quem é Cecília e do que ela é capaz, inverteu-se o paradigma: da
certeza absoluta com que um carro atropela e mata um animal, passa-se para a estrada
aberta do impalpável desconhecido.
5. Dentro da boca do silêncio
Há na superfície
das coisas uma aparente promessa de realidade, como se os cincos sentidos pudessem,
como queria Descartes, dar conta de nos revelar a verdade do mundo. Porém a certeza
advinda da experimentação sensorial foi sendo, pouco a pouco, sendo posta sob suspeita
por figuras como Freud, com seus estudos sobre o inconsciente. Dessa maneira, acreditar
que meus sentidos são capazes de saber com precisão acerca do mundo ao meu redor
foi sendo dinamitada, uma vez que a subjetividade das ações humanas impede que saibamos
com absoluto rigor não apenas o que é a realidade que nos rodeia, como também quem
somos de fato.
Por isso é preciso
que a busca de entrar em contato com o alheio e com o mais íntimo não se limite
apenas ao que os sentidos podem fornecer, nem é possível confiar que o que eles
captam sejam a verdade em si mesma. Desse modo, a poesia é um campo em que as palavras
e a visão do mundo são postas em dificuldade, para que a partir desse desalinho
se veja e sinta o que não se apresenta obviamente em superfície. Em Voz
para cavar por dentro (Ofícios Terrestres, 2024), de Kuzman, a escolha
do título se mostra acertada para direcionar os impasses descritos acima, os quais
se apresentam na obra.
A voz que cava por
dentro se constitui em imagem oportuna na medida em que propõe a ideia de que uma
voz é capaz de partir de dentro para cavar aquilo de que fala. A imagem da terra,
simbolizada pelo marrom presente na capa, é importante ao trazer à tona a questão
do subterrâneo, tanto do solo quanto do próprio ser. Dessa maneira, a poesia é ferramenta
eficaz para as pesquisas de si e do outro – do eu e do mundo.
Cavar por dentro
é descobrir o que há de trágico e lírico, de terrível e belo, de odioso e amável.
Nisso se mostra o vigor da voz do poeta, no que tem de corajosa ao não se desviar
dos percalços que constituem a identidade do eu nem a compartilhada identidade do
mundo.
6. A desordem dos dias
Quando Édipo chegou
às portas de Tebas e se deparou com a Esfinge, esta lhe propôs um enigma. O que
de manhã tem quatro pernas, de tarde tem duas e à noite tem três? Édipo então responde
que é o homem, que em sua existência passa da infância (engatinha de quatro), para
a maturidade (anda com duas pernas) e ao fim chega à velhice (caminha com uma bengala,
as três pernas). A vida humana, portanto, é aproximada em analogia ao passar do
tempo de um dia.
Da mesma forma, mais
de dois mil anos depois, o livro Antes do amanhã (Carlini & Caniato, 2024), de Edson
Flávio Santos, incorpora à sua estrutura essa ideia de que o tempo da vida humana
pode ser associado ao tempo de um só dia. Nesse sentido, o amanhã que dá título
à obra não se refere apenas ao dia que vem depois, mas ao que vem depois da vida.
Portanto, antes do amanhã é a história do que se passa antes do que não é mais a
vida, ou seja, antes da morte. Mas voltemos ao antes do antes, voltemos às partes
que constituem esse livro de narrativas curtas.
A primeira parte,
“Aurora”, tem como temática o início da vida, a infância. No entanto, a imagem que
se tem não é de idílio, mas sim personagens que passam por traumas difíceis de superar,
como a rejeição. Desse modo, tem-se que desde que nasce o ser humano está sujeito
a passar por turbulências emocionais que só poderão ser entendidas – talvez – na
vida adulta.
As demais partes
do livro “Meio-dia”, “Nona hora”, “Ocaso” e “Meia-noite” vão tecendo, através do
discurso poético do autor, as complicações da vida quanto mais ela avança. Temos
a solidão como um dos motes principais, seja a solidão de quem nunca se viu acompanhado,
seja a solidão de quem amou e perdeu seu companheiro. O modo como a sociedade contemporânea
lida com os afetos é retratada, por vezes, com acidez e ironia – o vazio das redes
sociais, o sexo casual, o assassinato após um encontro com alguém que se conheceu
em um aplicativo.
Por fim, temos a
parte intitulada “Canavial ou Vida que fenece”, na qual cada narrativa acompanha
um momento da vida de Cícero no canavial em que decide trabalhar mesmo em idade
mais avançada para poder sustentar a família. Ao migrar, o homem deixa pra trás
os entes queridos, e a sua vida vai se mostrando a cada dia menos valiosa aos olhos
dos que detêm o poder. Ao ver um dos trabalhadores – um jovem – morrer e ser tratado
como indigente no momento da morte, Cícero vai compreendendo que a vida vale pouco.
O homem que havia chegado com esperanças, vai perdendo seus traços benevolentes
– se deixa viciar pelo álcool, torna-se violento diante das injustiças do mundo.
A cana boa se amarga em cana ruim.
Na escrita de Santos,
algo está fora do lugar, como já se anuncia desde a capa, na qual se vê uma xícara
de ponta-cabeça. Assim, a normalidade e a rotina são esmiuçadas pelo olhar de narradores
que não se deixam levar por ilusões fáceis, pois sabem o que é há de terrível e
tortuoso na complexa prática do viver.
7. Lâmina na retina
A poesia, quando
atravessa a língua, transforma a palavra em lâminas. Assim é a poesia de Dheyne
de Souza em seu Lâminas (2020, Martelo). Quando lemos seus versos, sentimos
que as palavras ali estão afiadas e, se tocamos desprevenidos sua forma, nos cortamos
um pouco. E é preciso que nos cortemos. Diferentemente da linguagem do cotidiano,
referencial e objetiva, a linguagem neste livro está – em diversos momentos – interessada
em dar a ver os mecanismos que compõem a linguagem poética. Dessa maneira, tal poesia
não busca contar uma história, ou transmitir uma mensagem de modo convencional,
mas aposta na criação das imagens para provocar sentidos, por isso lâminas no plural,
pois poemas assim não podem se abrigar na univocidade do sentido. São significados
e sentimentos vários os que se produzem quando lemos versos como:
coração nublado
abre as cortinas
essas veias
tempestam
A partir da concisão
de elementos e da justaposição de adjetivos incomuns, os versos acima abrem na língua
caminhos que podem ser percorridos a fim de se chegar a interpretações, mesmo que
nenhuma delas seja a correta ou a definitiva. O jogo poético é o da aproximação
com essas pontas afiadas, abrindo as pétalas dessas flores de metal. Se num primeiro
momento há o incômodo de não estar em contato com palavras que digam imediatamente
o que transmitem, a persistência do olhar sobre tais versos faz com que o estranhamento
possa aos poucos se desfazer, não de todo, mas o suficiente para que reconheçamos
linhas e contornos que formam desenhos reconhecíveis. O trecho do poema a seguir
tematiza muito bem esse gesto da poeta:
tem um lado do lago que esconde
a língua
das margens que nomeiam as entranhas,
foz em que dormem os pequenos medos,
com suas nadadeiras arredias
[…]
Percebemos nos versos
acima que a palavra é posta como algo que não se dá a ver de imediato. Há signos
que corroboram tal ocultamento, como “esconde” e “entranhas”; assim, o próprio poema
assume sua não referencialidade, sua não objetividade. Na imagem do lago, é no que
está no interior dele (na foz) que a poesia está empenhada em atingir. O poema pede,
portanto, que o olhar do leitor não se restrinja à superfície imediata das palavras,
mas que a partir da sugestão imagética reconheça outras mensagens entranhadas em
termos que num primeiro momento remetem a uma materialidade apenas física, como
em “língua”, “lago”, “entranhas” “nadadeiras”.
Tal ambiguidade se
torna mais perceptível no poema “boletim”, como nota-se nos versos:
na aridez dos dias
dorme
sob lençóis úmidos
um olho trêmulo
outro lúcido
o poema
Assim, o livro de
Dheyne corta de dentro pra fora o estabelecido pelo uso corrente dos termos. Tal
escolha, porém, não quer dizer que os poemas sejam alienados de seu tempo. Quando
a poesia se esquiva do sentido literal das palavras, há um movimento também político
de negação da referencialidade da vida, da burocracia, do engessamento do cotidiano.
Tal movimento pode aparecer apenas como sugestão, a partir do gesto de recusa de
restringir uma palavra a um só significado, ou de modo mais explícito (como nos
poemas “milhares de minuto de silêncio” e “80 tiros”), mas ainda através do uso
da linguagem poética para criar um novo caminho que remete ao real sem ser dele
uma mera cópia. Feito lâmina na retina, há o corte e o incômodo, para depois percebermos
que é desaprendendo a ver que vemos melhor.
8. Um silêncio é muitos silêncios
Há muitas formas
de submergir, assim descobrimos ao ler A mulher submersa (2020, Urutau), de Mar Becker. Física
ou culturalmente, as mulheres foram sempre levadas a submergir, a se ocultar, por
isso aqui a imagem não apenas do mar, mas também das sombras, do escuro, da ausência
são recorrentes. É uma marca que trazem todas. Desde as mulheres incendiadas pela
igreja, as que se suicidaram em águas, as que foram mortas pelo fato de serem mulheres
e de desejarem e, mais do que isso, de exporem seus desejos. Mas também as que foram
submersas no silêncio, vivas mas caladas, vivas mas afogadas nas tramas de suas
próprias vozes interditadas.
É dessa mulher que
Mar nos fala, no singular, pois uma mulher submersa são todas. Pelos poemas são
recorrentes as imagens que recuperam esse sentido de submergir, como “abismo”, “estéril”,
“calar”, “sombra” entre muitas outras. Ao longo dos poemas elas surgem nomeadas
“Safo”, “Eva”, “Virginia” ou citadas a partir de seus textos, algumas são reveladas
ao final do livro, outras devem ter sido submersas de tal forma que se tornaram
também parte da poeta, indissociável de sua voz. Uma voz é muitas vozes: um silêncio
é muitos silêncios.
E é no silêncio que
tantas vezes se comunicam “nada precisa ser dito/ tudo se sabe/ se adivinha” ou
“mas uma mulher ama a outra em silêncio”, como se fosse preciso estar sempre se
explicando ou se justificando a um homem, mas não para as mulheres que se entendem
a partir de si mesmas, a partir de suas submersões estão irmanadas. Por isso aqui
as mulheres são múltiplas, não apenas escritoras canônicas, não apenas escritoras,
mas mulheres de vários lugares, de vários tempos, são as mulheres que acordam cedo
com suas crianças no colo no centro de São Paulo e é Agar no deserto levando Ismael.
Mulheres ao mesmo tempo remotas e atuais, continuadas a partir de si mesmas. Como
nos mostra o poema que termina “nessa hora será tarde. já a terá fecundado/ já terá
continuado nossa linhagem má/ numa filha”.
Porém há o paradoxo
do amor em relação ao homem. Pois sabe-se que ali está o principal fator de tantas
submersões. “amar o homem que tu és apesar do homem”, nos diz Mar Becker em poema
que mostra tanto a possibilidade de relacionamento com um homem e a impossibilidade
de esquecer que é um homem ali. Não esquecer das tantas mulheres que padeceram,
pois havia um homem do outro lado para dar a sentença de crime nenhum.
Para falar dessa
mulher, a poeta utiliza-se do corpo, do sexo, do desejo, da linguagem, do silêncios
pontos em comum a todas. O sangue da menstruação, a imagem de um animal-enigma (ave,
crisálida, peixe), o lado escuro e o lado luminoso expostos e complementares. Falar
da mulher submersa para falar da mulher que emerge, falar para dizer tantos silêncios.
Por isso são poucas as referências temporais e espaciais, como se esse poema pudesse
ter sido escrito hoje ou há dois mil anos, pois desde ali já haviam mulheres sendo
submersas.
Com uma voz poética
ao mesmo tempo própria e que ao mesmo tempo não se esquece das outras vozes que
já falaram ou que não puderem falar, Mar Becker inscreve seu nome e suas palavras
e ao fazê-lo, ao contrário do mar que tudo apaga, escreve também o nome daquelas
outras mulheres também submersas.
É um livro para ser
lido aos poucos, enquanto a água sobe pelos pés, para que quando estejamos quase
submersos, já tenhamos perdido o medo de nos afogar.
9. O perigo e o caos
Quando li os dois
livros anteriores de André Balbo – Eu queria que este livro tivesse orelhas (Oito e meio,
2018) e Agora posso acreditar em unicórnios (Reformatório, 2021),
este último com resenha nesta coluna –, atentei para o caráter dialógico dos contos
com outras obras de arte e para a intratextualidade recorrente em ambos. Neste novo
volume do autor, Sem os dentes da frente (Aboio, 2024), o estilo de Balbo
se mantém, não por falta de imaginação, mas como aprofundamento vertical diante
das possibilidades que ainda podem ser alcançadas a partir de sua técnica de contista.
Como afirmei em outra
resenha, a busca pela originalidade se dissolve e se mostra menos importante em
relação ao tema do que em relação à forma. Logo, mesmo que contos como “Búfalos
em náusea” explicitem o ponto de partida de seu enredo, o conto “O búfalo” de Clarice
Lispector, a escrita de Balbo reencena outros caminhos possíveis para a história
da mulher que ia ao zoológico para encontrar o ódio.
Do mesmo modo, um
conto pode virar a chave para o lado avesso da escrita de sua matriz. Em “Casa vazia”
temos o paulatino desaparecimento dos objetos da casa da personagem até que o vazio
a leve também ao desaparecimento, em contrapartida ao conto do argentino Julio Cortázar,
“Casa tomada”, no qual o aparecimento de intrusos no imóvel do casal de irmãos os
obriga a abandoná-lo.
Outro recurso interessante
mobilizado pelo autor é a criação de uma nova história a partir de elementos comuns
a outras obras. O conto “Híbridos”, que contém o caso dos meninos nascidos com cauda
de macaco os quais são segregados socialmente, toma de empréstimo personagens e
situações do anime Dragon ball. Anime este que reaparece no desejo do narrador
de “Sem os dentes da frente”, à espera da mãe e observando a briga que se dará entre
o valentão da escola e o menino doente – com um desfecho que altera a lógica prevista
para essa situação.
O modo fantástico
como Balbo desenvolve suas narrativas, no entanto, não torna seus contos meras peças
virtuosísticas como se quisesse apenas demonstrar a capacidade de sua imaginação
e de sua técnica. Estas sempre deram mostras de estarem em grau elevado, sendo a
cada livro mais e mais afinadas e refinadas por este autor que conhece o gênero
com o qual trabalha e por isso pode a cada texto aprofundar-se nas possibilidades
ainda – e eternamente – obscuras de sua confecção.
O fantástico em Balbo
se alia a esses recursos de arte para também dar a ver o que no cotidiano nos aliena
de nós. Relações humanas, de classe, de gênero, preconceitos enraizados, violências
normalizadas são expostos por essa retina que vai além da epiderme do real para
visualizar o estranho entranhado em nós. Sua capacidade de se deixar levar pelo
insólito não o torna um escritor alheio aos problemas ao redor, antes permite que
sua arte ultrapasse a mera descrição anatômica das coisas para tocar o que vai na
veia que pulsa abaixo da casca do agora. E percebe no presente as linhas do passado,
as premissas do futuro, como se pudesse com sua palavra pressentir o perigo e o
caos.
10. Vestindo a pele da onça
No romance O som
do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021), Micheliny Verunschk
tem na matéria histórica a base para a escrita de sua obra. O fato histórico é o
rapto de duas crianças indígenas brasileiras por cientistas alemães no século XIX
– Iñe-e, pertencente ao povo miranha, e Juri, do povo juri. Apesar de as duas crianças
serem de povos inimigos, tal fato é ignorado pelos europeus quando as levam – junto
com outras crianças indígenas, as quais não sobrevivem à viagem – para a Alemanha.
Sob o olhar europeu, as particularidades de cultura e a diversidade dos povos americanos
são apagadas, pois colocadas sob a sombra de uma mesma palavra – como índio, selvagem,
ou outras que nada dizem sobre os povos em si, mas dizem muito dos europeus.
Como todo romance,
este também é dotado de um narrador e de um ponto de vista. É sabido que a escolha
de tal categoria narrativa é fundamental no momento de se contar uma história –
e por muitas vezes é um dos pontos decisivos para questões que a arte moderna trouxe
à cena com muito vigor no século passado: como narrar?
Se o ponto de vista
adotado por um romance nunca é inocente, então o momento de direcionar o foco narrativo
é ao mesmo tempo estético e ético. No caso da história contada por Micheliny, poderia
ter sido adotado o ponto de vista dos alemães, dos indígenas ou uma neutralidade
artificial. Poderia ter sido usada a primeira ou a terceira pessoa para a voz que
narra.
Como dito, cada escolha
estética vai trazer consigo um viés ético. Logo, se o ponto de vista adotado fosse
os dos alemães (em primeira ou terceira pessoa), a tendência seria aproximar o relato
da história oficial, uma vez que – do ponto de vista histórico – os brancos europeus
quase sempre tiveram a hegemonia no momento de colocar no papel a História. Obviamente,
mesmo tal escolha poderia ser mediada por um romancista preocupado em não corroborar
com o discurso oficial, podendo ser utilizados recursos como a ironia, o que exigiria
do leitor o movimento de interpretar aquilo que está escrito de modo não literal.
Também poderia ter
sido usada a primeira pessoa do ponto de vista das crianças indígenas. O que, além
de fixar os acontecimentos ao olhar subjetivo das personagens, reduziria o campo
de ação crítico do romance – saberíamos da história apenas a partir de impressões
e não teríamos uma visão do conjunto. Poderia ser feito, se a escolha fosse adensar
na interioridade e na sensação de desorientação diante dos fatos. Porém este também
não foi o método adotado pela romancista.
A escolha, aqui,
foi pela terceira pessoa, mas com um grau elevado de aproximação com as crianças.
Assim, o discurso do narrador é pautado por uma empatia estética, ou seja, as palavras
utilizadas, as imagens criadas, as analogias, etc. são buscadas no campo das referências
compartilhadas pelas crianças indígenas. Dessa maneira, ainda que não seja o olhar
direto de Iñe-e ou Juri, é uma visão que segue rente ao seu modo de entender e representar
o mundo.
Com isso, ao mesmo
tempo em que se filia ao lado das crianças, o narrador tem a liberdade de saber
mais, de poder explicar aquilo que seria limitado pelo uso da primeira pessoa. Pode
recuar e avançar no tempo, percorrer longas distâncias. Pode, sobretudo, lançar
seu rugido de onça, que ecoa, trovoa, atravessa o ar da história paralisada e mostra
que uma história possui mais peles do que aquela com a qual a vestiu o europeu.
Não é uma história lisa e sem marcas, mas sim cheia de ranhuras, tortuosidades,
manchas escuras e claras, pele de onça.
CAIO AUGUSTO LEITE (São Paulo, 1993). Doutorando em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) com tese sobre os 4 romances de Lygia Fagundes Telles, é mestre pela mesma universidade com dissertação sobre A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector. Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros Samba no escuro (2013), A repetição dos pães (2017), Terra trêmula (2020); e publicou as plaquetes numa janela acesa a noite não entra (Edição do autor, 2020; poemas), a cicatriz antes da ferida (2020), abismos mínimos (2020), Silêncio de frutas sem verão (2020), 30 poemas de domingo (2020), Aceno para outras ilhas (poemas para poetas) (2020) e outras.
RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)
Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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