quarta-feira, 30 de abril de 2025

CAIO AUGUSTO LEITE | As armas secretas: dez resenhas

 


1. O infinito não cabe no jardim

O olhar da poesia não é mecânico, rígido e claro. Em Abrir a boca da cobra (Círculo de poemas, 2023), de Sofia Mariutti, os olhos desse eu que observa o mundo relembram-nos disso. Seus poemas demonstram o poder multifocal dessa visão, capaz de ver os bichos diminutos que habitam casas e jardins, de aproximar-se dos bichos que estão longe de nós em sua natureza indevassável, ou até mesmo rever o passado e captar o futuro, percebendo o finito e o infinito que há em tudo.

Esse olhar da poeta, no entanto, não é o olhar que utilizamos no dia a dia, e nem suas palavras são correspondentes fiéis das coisas enunciadas. Assim, o bestiário complexo que surge desde o título – a cobra, a orca, a lagarta, o crocodilo e por aí vai – possui uma identidade múltipla, sendo ao mesmo tempo a coisa e outra coisa. Por serem feitos de palavras, esses animais carregam consigo a imagem próxima do bicho que existe e das acepções subterrâneas fundadas em nossos diferentes círculos sociais.

Um bom exemplo dessa capacidade de ver e ver além está no poema em que dois pássaros pretos caem do chuveiro na cabeça do sujeito lírico, encerrando-se com os versos “talvez consiga me livrar/ mas minha cabeça// seguirá sempre/ cheia de penas”. O uso do termo “penas” é atravessado por sentidos que ampliam a visão do incidente insólito. Assim, os pássaros pretos – como aves de mau agouro, como não lembrar do corvo de Poe? – e a imagem do banho – momento de isolamento e desnudamento em que sentimentos tantas vezes podem vir à tona – são arrematados pelas penas dos pássaros, trazendo ao poema o profundo sentido de um sujeito cujas perdas e faltas, as penas, são vistas como inseparáveis de sua constituição enquanto ser vivo.

Porém não apenas no que é concreto se experiencia essa visão do aqui e do além, a via de mão dupla se percebe também na relação da poeta com o tempo. Nos versos exemplares “– O mundo dos dinossauros/ nunca acaba” percebe-se como a ideia de passado, presente e futuro é formada por esse amálgama de tempo em que as imagens sobrevivem. Assim, não é possível ler o agora com a simplicidade que o desconecta do que já passou nem do futuro que virá, pois o passado ainda está aqui e o que vai acontecer já está em marcha desde muito antes.

Há um símbolo que representa essa continuidade do tempo e dos seus retornos, a da cobra mordendo o próprio rabo. Nesse sentido, a poesia de Sofia se faz ativa ao buscar abrir a boca da cobra, não que assim possa romper definitivamente o retornar de certos tempos, mas ao menos procura agir diante da impassibilidade dos que apenas observam a vida sem que haja luta. Logo, os últimos versos da obra transmitem essa atitude de dizer e do cuidar (“Não te deixo cair na água/ Não deixo.”).

Ao ritualizar essas palavras, ao proferir os versos que abrem a boca da cobra, que impedem que a menina do poema caia na água, a poesia de Mariutti – com seus gestos de água, símbolo da mudança e da adaptação – atravessam a pedra dos sentidos mais imediatos para falar do que vai onde os olhos não chegam. Quem olha para as retinas dessa poesia feita de presente e ao mesmo tempo tão antiga quanto as retinas do tubarão-da-groenlândia, vê-se diante de camadas e camadas de existência, vê-se diante das próprias penas, vê-se um pouco amparado diante das águas profundas do ser. São de imagens que a história se faz, enuncia a poeta, nem sempre as vemos (“Todos apreciam a floração dos ipês// o que ninguém escuta/ é o grito”), mas há a poesia e sua luta de trazê-las à tona, mesmo que em fragmentos desse infinito que não cabe no jardim.

 

2. As muitas faces de Ana

O romance Ana (Editora Macondo, 2022), de Simone Brantes, captura trechos dispersos da vida da protagonista que dá nome à obra. Diferentemente de uma história com começo meio e fim, típica dos romances realistas, a trama construída por Brantes é tecida por retalhos. Ainda que pareçam peças soltas, não se enganem, é da mesma colcha – a vida – que se retira a matéria-prima dos acontecimentos narrados.

Abrindo mão dos engessados esquemas de causa e consequência, cada parte do romance se prende aos anteriores e aos próximos pelo viver dessa protagonista. Não que não haja aprendizados e mudanças, o que torna a personagem em questão mais do que apenas uma boneca sem alma que vive como um joguete nas mãos do narrador.

Porém, assim como na vida chamada real, o conhecimento que temos de Ana vem também de modo fragmentado. Não temos menção a datas precisas, embora a alusão a alguns eventos históricos ajude a localizar vagamente certas passagens do romance. Isso ocorre porque o importante não é em qual tempo, mas o atravessar desse tempo.

Há ambiguidade em cada vez que uma parte termina, pois não sabemos ao certo quanto tempo se passou: dias, meses, anos. Tais medidas também são aludidas de modo impreciso, o que se sabe é que há uma lacuna entre uma parte e outra, e que durante esses momentos não narrados a vida de Ana prosseguiu sem que saibamos exatamente como.

A cada nova passagem, somos apresentados a novos personagens, alguns retornam, alguns desaparecem, marcando o ritmo da vida de Ana, com suas descobertas, ganhos e perdas. Observamos a falta de maturidade de Ana diante de sua sexualidade, seu espanto diante de sentimentos como ciúmes, saudades, amor e paixão – os quais muitas vezes vêm misturados uns aos outros, também para ela impossível o discernimento.

Sobre o nome “Ana”, podem ser evocadas duas personagens homônimas que partilham com a protagonista de Brantes algumas características. A primeira “Ana” é a de Clarice Lispector, presente no conto “Amor”. Essa Ana vive sua vida pacata de dona de casa, cuida dos filhos, da casa, do marido, para assim suplantar seus desejos mais íntimos. Tal ordem, no entanto, é posta em xeque quando, de dentro de um bonde, vê um cego mascando chicletes. Jogadas no perigo de viver, para além das referências que possuíam (uma como dona de casa, a outra na vida interiorana da Serra), as duas Anas se dão conta do risco que existe nas relações humanas, que o amor traz consigo beleza e terror, ambiguidades da vida as quais são impossíveis de serem desfeitas.

Já a segunda Ana, é Ana de Amsterdã, da peça Calabar – de Chico Buarque e Ruy Guerra. Assim como na música “Ana de Amsterdã”, presente no musical, a Ana de Brantes experimenta muitos corpos, uns apenas passam por elas, outros são capazes de despertar sentimentos profundos. No caso da Ana de Amsterdã, temos Bárbara, a mulher viúva de Calabar e que se torna seu amor; com a Ana do romance, temos Marina, também uma presença importante para a personagem de Brantes. Aliás, a intertextualidade é citada no romance quando Ana expressa o desejo de proteger Marina “do mal, dos ventos e da chuva” (p. 179) em muito semelhante ao trecho da canção “Bárbara”, cujo sujeito lírico é Ana de Amsterdã, que diz “deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva”.

Assim, se não é apenas uma moça que passa pela vida de Ana, pode-se dizer que também Ana não é sempre a mesma moça durante o romance. Sua vivência vai acumulando novos modos de olhar e se relacionar com o amor e suas expectativas. Como anuncia o poema ao final, retomando a epígrafe de Guimarães Rosa, contar é sempre fragmento. Essa história é a história que se dá a ver, sem que saibamos das outras histórias de Ana. Contar é sempre escolher, muito fica oculto por aquilo que não foi dito. Do final de Ana – feliz ou infeliz, o que é comum em histórias de pendor comercial – não temos nenhuma certeza, pois é do trajeto – ou trechos dele – que se ocupa Brantes nesse romance em que o enigma é mais interessante que sua própria resposta.

 

3. O desaparecido e o encoberto

Em Deus não dirige o destino dos povos (Editora Caiaponte, 2023), romance de Marcelo Labes, há como em Paraízo-Paraguay, do mesmo autor, a construção de uma narrativa que toma como base elementos históricos. Se em Paraízo havia a revelação de um segredo familiar a partir de um acesso de falar ininterrupto da personagem Olga, o qual retira das sombras questões acerca da Guerra do Paraguai, aqui nesse novo trabalho há o olhar que busca detectar as transformações e permanências do integralismo em momentos-chave da história brasileira.


Diferentemente do outro romance, em que havia a voz de Olga, nesse as informações chegam ao jornalista Tomás – o protagonista – através de uma misteriosa caixa de documentos deixada na soleira de seu apartamento. A mudança do artifício narrativo, no entanto, não altera o caráter lacunar já observado anteriormente. Assim como a fala de Olga em Paraízo era repleta de elipses advindas da memória, também os documentos recebidos por Tomás possuem espaços em branco – devido tanto à vontade e impossibilidade de contar tudo de quem os escreveu como pela intervenção de quem os guardou e enviou, representada pela ausência de determinadas páginas.

Desse modo, enquanto lê as páginas recebidas, Tomás busca em Florianópolis (cidade onde vive) e em Blumenau (cidade referida nas páginas) documentos e pessoas que possam ajudar a recompor as linhas perdidas da trama histórica. Aos poucos, no entanto, Tomás percebe que certas lacunas não são fruto apenas da distância temporal entre o rapaz e o material recebido – os documentos se referem a um período de tempo que vai dos anos1940 ao fim dos anos 1980, e o romance se passa por volta de 2018 –, mas que muitos arquivos foram deliberadamente destruídos a fim de que tais acontecimentos fossem esquecidos.

Quanto mais avança na leitura, mais torna-se clara a conexão entre eventos temporalmente distantes. Tomás passa a entender a diluição do integralismo dentro dos sistemas de poder da sociedade brasileira. A derrocada do fascismo e nazismo na Europa apesar de ter sido interpretada como consequência para a extinção do integralismo – movimento brasileiro homólogo aos movimentos do Velho Mundo – revela-se o motivo que levou seus integrantes a alterar o modus operandi da facção.

Ao final, a escolha de Tomás – jornalista que só escreve obituários e notas sociais de famosos – para receber a misteriosa caixa se mostra parte do jogo de mostrar e esconder que o integralismo vem propondo desde que baixou bandeiras, escondeu símbolos e calou seus gritos de Anauê, tornando mais complexa a relação entre o movimento e a sociedade brasileira. A tal ponto que a ascensão de Jair Bolsonaro em 2018, com seu lema que recicla ideais integralistas, não foi imediatamente associada ao movimento pela população em geral.

Logo, as causas do destino trágico do protagonista passam despercebidas, pois não há em seu passado as marcas de uma atuação política que justificasse seu desaparecimento, um crime sem digitais, bem ao gosto do integralismo encoberto. A ironia final reside no fato de que, a menos que a busca pela verdade rompa a paralisia do silêncio, ninguém irá escrever o obituário de Tomás. Seu nome, mesmo conhecido, ficará submerso em dúvidas (onde está? está vivo ou morto? por que desapareceu?); enquanto o integralismo, ainda que sem usar seu nome, continuará agindo em nossas histórias.

 

4. Por detrás de olhos mansos

Em A pediatra (2021, Companhia das Letras), de Andréa del Fuego, acompanhamos Cecília, a pediatra do título, em sua vida por São Paulo. Diferentemente do lugar-comum que nos leva a imaginar uma médica nessa área de atuação como bondosa e maternal, a personagem criada por Andréa se mostra, num primeiro momento, repelente a esses clichês. Cecília, filha de um também pediatra, deixa claro em diversas passagens do romance que sua escolha profissional está alinhada mais à vida prática do que à vocação. Assim, ter seguido os passos do pai se alinha mais à facilidade econômica disponível do que a um desejo mais profundo. O que não faz com que a médica seja negligente; pelo contrário, apesar da apatia que demonstra em relação aos pequenos pacientes, enumerados como simples fatos da rotina, não se furta a receitar o remédio correto ou encaminhá-los para um especialista. Afinal, como ela diz, se a criança piora, é um problema a mais para resolver.

Além desse cotidiano no hospital, há sua vida privada. Logo no início da obra, separa-se do marido e engata um romance clandestino com Celso, o pai de um dos recém-nascidos que atendera enquanto neonatologista. Mantém uma distância segura de seu pai, mesmo que este trabalhe no mesmo andar que ela no hospital. Trata Deise, sua empregada, com aparente cordialidade.

Tudo isso pareceria assim, sem problemas, se visto pelo lado de fora por um narrador incapaz de devassar seus pensamentos. O grande ganho deste romance é o uso da primeira pessoa. O olhar restrito de Cecília em relação ao mundo que a rodeia faz com que seus julgamentos e hipóteses revelem pouco a pouco seus preconceitos, principalmente de classe.

Diante de certas situações, o primeiro movimento da narradora é projetar – a partir de sua visão de mundo – as causas que levaram àquele acontecimento ou inferir os desdobramentos no futuro a partir de estereótipos, os quais muitas vezes são desmentidos pelo próprio desenrolar da narrativa.

Desse modo, a escrita de Andréa del Fuego se faz a partir de duas pistas: em uma corre o pensamento de Cecília, e na outra a realidade a despeito de suas impressões preconceituosas. Preconceito, aqui, no sentido primeiro de possuir um conceito preestabelecido para cada coisa que acontece no mundo.

A pista da realidade é o local onde o preconceito pouco a pouco se mostra ineficaz para dar conta de explicar a rede de causas e efeitos, as quais nós – meros humanos – somos incapazes de apreender. De repente, até mesmo as convicções que a personagem tinha a respeito de si própria se tornam mais inseguras, tornando-a mais complexa. Ao final, já não sabemos tão bem quem é Cecília e do que ela é capaz, inverteu-se o paradigma: da certeza absoluta com que um carro atropela e mata um animal, passa-se para a estrada aberta do impalpável desconhecido.

 

5. Dentro da boca do silêncio

Há na superfície das coisas uma aparente promessa de realidade, como se os cincos sentidos pudessem, como queria Descartes, dar conta de nos revelar a verdade do mundo. Porém a certeza advinda da experimentação sensorial foi sendo, pouco a pouco, sendo posta sob suspeita por figuras como Freud, com seus estudos sobre o inconsciente. Dessa maneira, acreditar que meus sentidos são capazes de saber com precisão acerca do mundo ao meu redor foi sendo dinamitada, uma vez que a subjetividade das ações humanas impede que saibamos com absoluto rigor não apenas o que é a realidade que nos rodeia, como também quem somos de fato.

Por isso é preciso que a busca de entrar em contato com o alheio e com o mais íntimo não se limite apenas ao que os sentidos podem fornecer, nem é possível confiar que o que eles captam sejam a verdade em si mesma. Desse modo, a poesia é um campo em que as palavras e a visão do mundo são postas em dificuldade, para que a partir desse desalinho se veja e sinta o que não se apresenta obviamente em superfície. Em Voz para cavar por dentro (Ofícios Terrestres, 2024), de Kuzman, a escolha do título se mostra acertada para direcionar os impasses descritos acima, os quais se apresentam na obra.

A voz que cava por dentro se constitui em imagem oportuna na medida em que propõe a ideia de que uma voz é capaz de partir de dentro para cavar aquilo de que fala. A imagem da terra, simbolizada pelo marrom presente na capa, é importante ao trazer à tona a questão do subterrâneo, tanto do solo quanto do próprio ser. Dessa maneira, a poesia é ferramenta eficaz para as pesquisas de si e do outro – do eu e do mundo.


A voz se torna instrumento de destruição do silêncio que soterrava sentimentos variados. Nesse trajeto de dentro pra fora, imagens como as da noite, de seres marginais, de escombros e ruínas são atravessadas para que possam chegar à luz o que foi esquecido ou propositalmente legado ao obscurantismo da quietude. A poesia de Kuzman, como uma enxurrada, vai levando não apenas a terra de que é feita a vida, mas também seus detritos, seus resíduos que, por mais que pareçam inoportunos, constituem também a existência. Elementos estes sem os quais a vida se torna irremediavelmente incompleta e, portanto, apenas um engodo de aparente felicidade fácil.

Cavar por dentro é descobrir o que há de trágico e lírico, de terrível e belo, de odioso e amável. Nisso se mostra o vigor da voz do poeta, no que tem de corajosa ao não se desviar dos percalços que constituem a identidade do eu nem a compartilhada identidade do mundo.

 

6. A desordem dos dias

Quando Édipo chegou às portas de Tebas e se deparou com a Esfinge, esta lhe propôs um enigma. O que de manhã tem quatro pernas, de tarde tem duas e à noite tem três? Édipo então responde que é o homem, que em sua existência passa da infância (engatinha de quatro), para a maturidade (anda com duas pernas) e ao fim chega à velhice (caminha com uma bengala, as três pernas). A vida humana, portanto, é aproximada em analogia ao passar do tempo de um dia.

Da mesma forma, mais de dois mil anos depois, o livro Antes do amanhã (Carlini & Caniato, 2024), de Edson Flávio Santos, incorpora à sua estrutura essa ideia de que o tempo da vida humana pode ser associado ao tempo de um só dia. Nesse sentido, o amanhã que dá título à obra não se refere apenas ao dia que vem depois, mas ao que vem depois da vida. Portanto, antes do amanhã é a história do que se passa antes do que não é mais a vida, ou seja, antes da morte. Mas voltemos ao antes do antes, voltemos às partes que constituem esse livro de narrativas curtas.

A primeira parte, “Aurora”, tem como temática o início da vida, a infância. No entanto, a imagem que se tem não é de idílio, mas sim personagens que passam por traumas difíceis de superar, como a rejeição. Desse modo, tem-se que desde que nasce o ser humano está sujeito a passar por turbulências emocionais que só poderão ser entendidas – talvez – na vida adulta.

As demais partes do livro “Meio-dia”, “Nona hora”, “Ocaso” e “Meia-noite” vão tecendo, através do discurso poético do autor, as complicações da vida quanto mais ela avança. Temos a solidão como um dos motes principais, seja a solidão de quem nunca se viu acompanhado, seja a solidão de quem amou e perdeu seu companheiro. O modo como a sociedade contemporânea lida com os afetos é retratada, por vezes, com acidez e ironia – o vazio das redes sociais, o sexo casual, o assassinato após um encontro com alguém que se conheceu em um aplicativo.

Por fim, temos a parte intitulada “Canavial ou Vida que fenece”, na qual cada narrativa acompanha um momento da vida de Cícero no canavial em que decide trabalhar mesmo em idade mais avançada para poder sustentar a família. Ao migrar, o homem deixa pra trás os entes queridos, e a sua vida vai se mostrando a cada dia menos valiosa aos olhos dos que detêm o poder. Ao ver um dos trabalhadores – um jovem – morrer e ser tratado como indigente no momento da morte, Cícero vai compreendendo que a vida vale pouco. O homem que havia chegado com esperanças, vai perdendo seus traços benevolentes – se deixa viciar pelo álcool, torna-se violento diante das injustiças do mundo. A cana boa se amarga em cana ruim.

Na escrita de Santos, algo está fora do lugar, como já se anuncia desde a capa, na qual se vê uma xícara de ponta-cabeça. Assim, a normalidade e a rotina são esmiuçadas pelo olhar de narradores que não se deixam levar por ilusões fáceis, pois sabem o que é há de terrível e tortuoso na complexa prática do viver.

 

7. Lâmina na retina

A poesia, quando atravessa a língua, transforma a palavra em lâminas. Assim é a poesia de Dheyne de Souza em seu Lâminas (2020, Martelo). Quando lemos seus versos, sentimos que as palavras ali estão afiadas e, se tocamos desprevenidos sua forma, nos cortamos um pouco. E é preciso que nos cortemos. Diferentemente da linguagem do cotidiano, referencial e objetiva, a linguagem neste livro está – em diversos momentos – interessada em dar a ver os mecanismos que compõem a linguagem poética. Dessa maneira, tal poesia não busca contar uma história, ou transmitir uma mensagem de modo convencional, mas aposta na criação das imagens para provocar sentidos, por isso lâminas no plural, pois poemas assim não podem se abrigar na univocidade do sentido. São significados e sentimentos vários os que se produzem quando lemos versos como:

 

coração nublado

abre as cortinas

 

essas veias

tempestam

 

A partir da concisão de elementos e da justaposição de adjetivos incomuns, os versos acima abrem na língua caminhos que podem ser percorridos a fim de se chegar a interpretações, mesmo que nenhuma delas seja a correta ou a definitiva. O jogo poético é o da aproximação com essas pontas afiadas, abrindo as pétalas dessas flores de metal. Se num primeiro momento há o incômodo de não estar em contato com palavras que digam imediatamente o que transmitem, a persistência do olhar sobre tais versos faz com que o estranhamento possa aos poucos se desfazer, não de todo, mas o suficiente para que reconheçamos linhas e contornos que formam desenhos reconhecíveis. O trecho do poema a seguir tematiza muito bem esse gesto da poeta:

 

tem um lado do lago que esconde a língua

das margens que nomeiam as entranhas,

foz em que dormem os pequenos medos,

com suas nadadeiras arredias

[…]

 

Percebemos nos versos acima que a palavra é posta como algo que não se dá a ver de imediato. Há signos que corroboram tal ocultamento, como “esconde” e “entranhas”; assim, o próprio poema assume sua não referencialidade, sua não objetividade. Na imagem do lago, é no que está no interior dele (na foz) que a poesia está empenhada em atingir. O poema pede, portanto, que o olhar do leitor não se restrinja à superfície imediata das palavras, mas que a partir da sugestão imagética reconheça outras mensagens entranhadas em termos que num primeiro momento remetem a uma materialidade apenas física, como em “língua”, “lago”, “entranhas” “nadadeiras”.

Tal ambiguidade se torna mais perceptível no poema “boletim”, como nota-se nos versos:

 

na aridez dos dias

dorme

sob lençóis úmidos

um olho trêmulo

outro lúcido

 

o poema

 


Ao mesmo tempo em que há a aridez do cotidiano, há a umidade do sono, onde o poema dorme, possibilidade de refresco, de novidade diante da repetição do todo dia. Ao mesmo tempo em que há a lucidez, há a loucura (o trêmulo). O poema, desse modo, abriga em si a secura do real e o úmido do que se inventa, tem a referencialidade do que é lúcido e a perda da segurança daquilo que tremula.

Assim, o livro de Dheyne corta de dentro pra fora o estabelecido pelo uso corrente dos termos. Tal escolha, porém, não quer dizer que os poemas sejam alienados de seu tempo. Quando a poesia se esquiva do sentido literal das palavras, há um movimento também político de negação da referencialidade da vida, da burocracia, do engessamento do cotidiano. Tal movimento pode aparecer apenas como sugestão, a partir do gesto de recusa de restringir uma palavra a um só significado, ou de modo mais explícito (como nos poemas “milhares de minuto de silêncio” e “80 tiros”), mas ainda através do uso da linguagem poética para criar um novo caminho que remete ao real sem ser dele uma mera cópia. Feito lâmina na retina, há o corte e o incômodo, para depois percebermos que é desaprendendo a ver que vemos melhor.

 

8. Um silêncio é muitos silêncios

Há muitas formas de submergir, assim descobrimos ao ler A mulher submersa (2020, Urutau), de Mar Becker. Física ou culturalmente, as mulheres foram sempre levadas a submergir, a se ocultar, por isso aqui a imagem não apenas do mar, mas também das sombras, do escuro, da ausência são recorrentes. É uma marca que trazem todas. Desde as mulheres incendiadas pela igreja, as que se suicidaram em águas, as que foram mortas pelo fato de serem mulheres e de desejarem e, mais do que isso, de exporem seus desejos. Mas também as que foram submersas no silêncio, vivas mas caladas, vivas mas afogadas nas tramas de suas próprias vozes interditadas.

É dessa mulher que Mar nos fala, no singular, pois uma mulher submersa são todas. Pelos poemas são recorrentes as imagens que recuperam esse sentido de submergir, como “abismo”, “estéril”, “calar”, “sombra” entre muitas outras. Ao longo dos poemas elas surgem nomeadas “Safo”, “Eva”, “Virginia” ou citadas a partir de seus textos, algumas são reveladas ao final do livro, outras devem ter sido submersas de tal forma que se tornaram também parte da poeta, indissociável de sua voz. Uma voz é muitas vozes: um silêncio é muitos silêncios.

E é no silêncio que tantas vezes se comunicam “nada precisa ser dito/ tudo se sabe/ se adivinha” ou “mas uma mulher ama a outra em silêncio”, como se fosse preciso estar sempre se explicando ou se justificando a um homem, mas não para as mulheres que se entendem a partir de si mesmas, a partir de suas submersões estão irmanadas. Por isso aqui as mulheres são múltiplas, não apenas escritoras canônicas, não apenas escritoras, mas mulheres de vários lugares, de vários tempos, são as mulheres que acordam cedo com suas crianças no colo no centro de São Paulo e é Agar no deserto levando Ismael. Mulheres ao mesmo tempo remotas e atuais, continuadas a partir de si mesmas. Como nos mostra o poema que termina “nessa hora será tarde. já a terá fecundado/ já terá continuado nossa linhagem má/ numa filha”.

Porém há o paradoxo do amor em relação ao homem. Pois sabe-se que ali está o principal fator de tantas submersões. “amar o homem que tu és apesar do homem”, nos diz Mar Becker em poema que mostra tanto a possibilidade de relacionamento com um homem e a impossibilidade de esquecer que é um homem ali. Não esquecer das tantas mulheres que padeceram, pois havia um homem do outro lado para dar a sentença de crime nenhum.

Para falar dessa mulher, a poeta utiliza-se do corpo, do sexo, do desejo, da linguagem, do silêncios pontos em comum a todas. O sangue da menstruação, a imagem de um animal-enigma (ave, crisálida, peixe), o lado escuro e o lado luminoso expostos e complementares. Falar da mulher submersa para falar da mulher que emerge, falar para dizer tantos silêncios. Por isso são poucas as referências temporais e espaciais, como se esse poema pudesse ter sido escrito hoje ou há dois mil anos, pois desde ali já haviam mulheres sendo submersas.

Com uma voz poética ao mesmo tempo própria e que ao mesmo tempo não se esquece das outras vozes que já falaram ou que não puderem falar, Mar Becker inscreve seu nome e suas palavras e ao fazê-lo, ao contrário do mar que tudo apaga, escreve também o nome daquelas outras mulheres também submersas.

É um livro para ser lido aos poucos, enquanto a água sobe pelos pés, para que quando estejamos quase submersos, já tenhamos perdido o medo de nos afogar.

 

9. O perigo e o caos

Quando li os dois livros anteriores de André Balbo – Eu queria que este livro tivesse orelhas (Oito e meio, 2018) e Agora posso acreditar em unicórnios (Reformatório, 2021), este último com resenha nesta coluna –, atentei para o caráter dialógico dos contos com outras obras de arte e para a intratextualidade recorrente em ambos. Neste novo volume do autor, Sem os dentes da frente (Aboio, 2024), o estilo de Balbo se mantém, não por falta de imaginação, mas como aprofundamento vertical diante das possibilidades que ainda podem ser alcançadas a partir de sua técnica de contista.

Como afirmei em outra resenha, a busca pela originalidade se dissolve e se mostra menos importante em relação ao tema do que em relação à forma. Logo, mesmo que contos como “Búfalos em náusea” explicitem o ponto de partida de seu enredo, o conto “O búfalo” de Clarice Lispector, a escrita de Balbo reencena outros caminhos possíveis para a história da mulher que ia ao zoológico para encontrar o ódio.

Do mesmo modo, um conto pode virar a chave para o lado avesso da escrita de sua matriz. Em “Casa vazia” temos o paulatino desaparecimento dos objetos da casa da personagem até que o vazio a leve também ao desaparecimento, em contrapartida ao conto do argentino Julio Cortázar, “Casa tomada”, no qual o aparecimento de intrusos no imóvel do casal de irmãos os obriga a abandoná-lo.

Outro recurso interessante mobilizado pelo autor é a criação de uma nova história a partir de elementos comuns a outras obras. O conto “Híbridos”, que contém o caso dos meninos nascidos com cauda de macaco os quais são segregados socialmente, toma de empréstimo personagens e situações do anime Dragon ball. Anime este que reaparece no desejo do narrador de “Sem os dentes da frente”, à espera da mãe e observando a briga que se dará entre o valentão da escola e o menino doente – com um desfecho que altera a lógica prevista para essa situação.

O modo fantástico como Balbo desenvolve suas narrativas, no entanto, não torna seus contos meras peças virtuosísticas como se quisesse apenas demonstrar a capacidade de sua imaginação e de sua técnica. Estas sempre deram mostras de estarem em grau elevado, sendo a cada livro mais e mais afinadas e refinadas por este autor que conhece o gênero com o qual trabalha e por isso pode a cada texto aprofundar-se nas possibilidades ainda – e eternamente – obscuras de sua confecção.

O fantástico em Balbo se alia a esses recursos de arte para também dar a ver o que no cotidiano nos aliena de nós. Relações humanas, de classe, de gênero, preconceitos enraizados, violências normalizadas são expostos por essa retina que vai além da epiderme do real para visualizar o estranho entranhado em nós. Sua capacidade de se deixar levar pelo insólito não o torna um escritor alheio aos problemas ao redor, antes permite que sua arte ultrapasse a mera descrição anatômica das coisas para tocar o que vai na veia que pulsa abaixo da casca do agora. E percebe no presente as linhas do passado, as premissas do futuro, como se pudesse com sua palavra pressentir o perigo e o caos.

 

10. Vestindo a pele da onça

No romance O som do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021), Micheliny Verunschk tem na matéria histórica a base para a escrita de sua obra. O fato histórico é o rapto de duas crianças indígenas brasileiras por cientistas alemães no século XIX – Iñe-e, pertencente ao povo miranha, e Juri, do povo juri. Apesar de as duas crianças serem de povos inimigos, tal fato é ignorado pelos europeus quando as levam – junto com outras crianças indígenas, as quais não sobrevivem à viagem – para a Alemanha. Sob o olhar europeu, as particularidades de cultura e a diversidade dos povos americanos são apagadas, pois colocadas sob a sombra de uma mesma palavra – como índio, selvagem, ou outras que nada dizem sobre os povos em si, mas dizem muito dos europeus.

Como todo romance, este também é dotado de um narrador e de um ponto de vista. É sabido que a escolha de tal categoria narrativa é fundamental no momento de se contar uma história – e por muitas vezes é um dos pontos decisivos para questões que a arte moderna trouxe à cena com muito vigor no século passado: como narrar?

Se o ponto de vista adotado por um romance nunca é inocente, então o momento de direcionar o foco narrativo é ao mesmo tempo estético e ético. No caso da história contada por Micheliny, poderia ter sido adotado o ponto de vista dos alemães, dos indígenas ou uma neutralidade artificial. Poderia ter sido usada a primeira ou a terceira pessoa para a voz que narra.

Como dito, cada escolha estética vai trazer consigo um viés ético. Logo, se o ponto de vista adotado fosse os dos alemães (em primeira ou terceira pessoa), a tendência seria aproximar o relato da história oficial, uma vez que – do ponto de vista histórico – os brancos europeus quase sempre tiveram a hegemonia no momento de colocar no papel a História. Obviamente, mesmo tal escolha poderia ser mediada por um romancista preocupado em não corroborar com o discurso oficial, podendo ser utilizados recursos como a ironia, o que exigiria do leitor o movimento de interpretar aquilo que está escrito de modo não literal.

Também poderia ter sido usada a primeira pessoa do ponto de vista das crianças indígenas. O que, além de fixar os acontecimentos ao olhar subjetivo das personagens, reduziria o campo de ação crítico do romance – saberíamos da história apenas a partir de impressões e não teríamos uma visão do conjunto. Poderia ser feito, se a escolha fosse adensar na interioridade e na sensação de desorientação diante dos fatos. Porém este também não foi o método adotado pela romancista.

A escolha, aqui, foi pela terceira pessoa, mas com um grau elevado de aproximação com as crianças. Assim, o discurso do narrador é pautado por uma empatia estética, ou seja, as palavras utilizadas, as imagens criadas, as analogias, etc. são buscadas no campo das referências compartilhadas pelas crianças indígenas. Dessa maneira, ainda que não seja o olhar direto de Iñe-e ou Juri, é uma visão que segue rente ao seu modo de entender e representar o mundo.

Com isso, ao mesmo tempo em que se filia ao lado das crianças, o narrador tem a liberdade de saber mais, de poder explicar aquilo que seria limitado pelo uso da primeira pessoa. Pode recuar e avançar no tempo, percorrer longas distâncias. Pode, sobretudo, lançar seu rugido de onça, que ecoa, trovoa, atravessa o ar da história paralisada e mostra que uma história possui mais peles do que aquela com a qual a vestiu o europeu. Não é uma história lisa e sem marcas, mas sim cheia de ranhuras, tortuosidades, manchas escuras e claras, pele de onça.

 

 

 


CAIO AUGUSTO LEITE
(São Paulo, 1993). Doutorando em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) com tese sobre os 4 romances de Lygia Fagundes Telles, é mestre pela mesma universidade com dissertação sobre A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector. Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros Samba no escuro (2013), A repetição dos pães (2017), Terra trêmula (2020); e publicou as plaquetes numa janela acesa a noite não entra (Edição do autor, 2020; poemas), a cicatriz antes da ferida (2020), abismos mínimos (2020), Silêncio de frutas sem verão (2020), 30 poemas de domingo (2020), Aceno para outras ilhas (poemas para poetas) (2020) e outras.




RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.





 


Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)

Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)

Editores:

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