quarta-feira, 30 de abril de 2025

ELIETE BORGES LOPES | Horror e Contemporaneidade

 


O culto a Dioniso que se configura num misto entre espiritualidade e representação folclórica pode compreender a mais antiga origem do teatro. A máscara de Dioniso dependurada num poste, onde em procissão a aglomeração pagã celebra regada a vinho, orgias e excessos do corpo, principalmente na música e na dança.

Dioniso não é o Deus mais ordeiro. Logo, o caos promovido pelo seu culto fora proibido pelo Estado, passando numa longa história de escrita de peças (Ésquilo, Sófocles e Eurípedes) a serem representadas e ordenadas a partir de algo mais controlado e destinado à apreciação e não necessariamente à interação. Surge a plateia do teatro.

Mas a representação das mais belas e trágicas histórias continuam sendo narradas desde lá. A tônica é basicamente a mesma, porém a forma está completamente alterada. A feiura, a bestialidade e animalidade e a maldade dos deuses perpassam a literatura mais antiga e continuam com Saturno a devorar seus filhos, Medeia a massacrá-los para vingar-se de seu marido infiel e mesmo Tântalo, que cozinha o próprio filho e serve-o aos deuses, para que provem sua carne e ele descubra se são realmente tão perspicazes.

A lista das atrocidades praticadas pelos deuses e deusas é um dos principais temas dos mitos gregos e das narrativas literárias míticas e delas, não por derivação, transplanta-se ao teatro, à plástica, à música… e na contemporaneidade ao corpo, desta vez, em performances e body art, só para lembrar duas modalidades. Modernamente, os objetos também passaram a compartilhar disso que podemos chamar de horror e que não possui uma única definição. Melhor até que não tenha, claro.

Hoje, mais que nunca, produz-se e, sobretudo, divulga-se mais que todas as épocas as modalidades, suportes e realidades em que se podem produzir uma narrativa sobre o tema horror, e seria tarefa hercúlea a representação do horror na arte contemporânea, por isso optamos por um trajeto apenas, sabendo que este excluirá inevitavelmente obras, autores, diretores, produtos e produtores.

Façamos um parêntese para dizer que não é apenas o campo da ficção que está carregado de realizações que trazem o gênero à tona. Apesar de não ser esta a direção do texto, façamos uma ressalva: o horror se faz presente diante de nossos olhos todos os dias, basta abrir um jornal na coluna policial e veremos casos e mais casos que são verdadeiros roteiros, cenas e descrições que poderiam ser representadas por diversos suportes e modalidades artísticas. Figuram na realidade das páginas de notícias espantosas matérias sobre decapitação, chacina, esquartejamento, assassinato, rapto, parricídio, tortura e sequestro que se misturam, não sem menos espanto, a comerciais de eletrodomésticos, venda de imóveis, lingeries da moda.

Até mesmo as famigeradas telenovelas buscam, de maneira suavizada, representar o horror em figuras encarnadas por vilões e tramas dramáticas que, através de eventos como traições, sequestros e mortes, demonstram entre uma cena e outra o horror de uma mocinha a ser perseguida ou um pai de família sendo ameaçado por ladrões geralmente estereotipados. Mesmo sendo cenas pobres em termos de horror, acabam por ganhar a audiência, não exatamente por apresentar o horror em si, mas sim por gerar uma tensão que é esperada pelos noveleiros de plantão, este horro-r-aso uma espécie de horror suavizado, eufemizado, que é causado mais pela apreensão do corte, do tempo em que se dará o desfecho (o próximo capítulo), que propriamente pelo horror apresentado.

O que nos perguntamos para direcionar o texto é: como a tradição ocidental vem lidando com a superabundância da temática? Essa superabundância me levou a utilizar de um mosaico criado a partir de imagens, criaturas, atos e histórias que ganham corpo na longuíssima história do horror.

Definir contornos para o gênero dentro da modalidade cinema, por exemplo, é em si já uma tarefa árdua. Tentar abarcar outros gêneros é sofrível e por isso mesmo não estou me dispondo a fazer uma história do horror, mas sim demonstrar que o gênero perpassa diversos tipos de expressão e vem sendo empenhada por escritores, críticos, cinéfilos e artistas de toda ordem. O tema é bem explorado, e rastrear a produção é se haver com um intrincado labirinto de gêneros, narrativas, enredos, estilos, personagens e criaturas.

Os produtos derivados, como o misto entre comédia e horror e drama e horror, fazem com que o gênero ganhe por vezes as características de uma produção híbrida, além de que os formatos também geram uma bela confusão, já que usar do horror num curta de 17 minutos é completamente diferente de usar do mesmo gênero em um longa. A produção é volumosa e os seus consumidores não apenas assistem e comparecem às exibições, eles fazem a crítica e inventam a partir do gênero.

A linha entre cinema de horror e cinema fantástico, por exemplo, é bem tênue, a linha entre horror e terror, trash e underground, de igual maneira, faz com que, quem deseja esquadrinhar este universo ou crie linhas autorais de interpretação ou categorias específicas para cada tipo filmado. As divergências não sanadas não constituem grandes problemas, nem para quem filma nem para quem deseja concretizar essas tais linhas divisoras de entendimentos sobre os gêneros horror, terror, trash, underground ou Shot on Vídeo (S.O.V) – feito em vídeo.

Uma ressalva para esta distinção, a de S.O.V ou filmado em vídeo, que aparece aqui como uma possibilidade para a tão desejada definição dos contornos entre gêneros.

Cinema de horror, terror, undergroud, trash e o S.O.V perpassam-se em muitas concepções e produções, alguns críticos e escritores preferem a não existência dessa linha. Particularmente, não entendo como problemático os entrecruzamentos, eles são mesmo inevitáveis, isso porque os elementos narrativos, imagéticos e de efeitos são utilizados irrestritamente por diretores, produtores e roteiristas sem a preocupação de como nomear esta ou aquela obra ou produção.

Para este momento, limitar-me-ei a buscar um fio condutivo de como um determinado tipo de expressão pode se manifestar-se como produção de estilo horror. Assim, busco diferentes campos, para minimamente dar conta do fenômeno que expressa o que existe de sombrio, aterrorizante, mórbido, feio e bizarro na existência humana. E essa será uma prerrogativa aqui, que o horror é a manifestação expressa do medo, daquilo que aterroriza, traz à tona um tipo específico de mal-estar.


Quanto mais apreensiva eu fique diante de uma tela, isto é, de uma narrativa, quanto mais horror me causa um determinado tipo de expressão, melhor a qualidade da sensação. Assim, para mim, o bom filme de horror ou é aquele em que quero tapar o rosto, aquele que me faz querer parar a imagem e respirar antes de continuar, ou aquele que me prenda de tal forma, que me faça respirar diferente, sem estar satisfeita até que a cena ou filme acabe, mesmo que seja uma cena longa ou um filme longo. O bom filme de horror é aquele que, numa imagem, eu resumiria como: assisto entre as frestas dos dedos sobre a cara. Entre um desejo contraditório, a curiosidade de perceber a que ponto pode ir a crueldade humana e o receio de não a suportar. Geralmente, optamos por ver até onde suportamos. Um acidente de moto em que o motoqueiro real tem o cérebro espedaçado no meio do asfalto pode causar menos horror a alguns do que uma imagem meio desfocada de um cabideiro com um chapéu no topo, colocado atrás de uma porta com uma música criando suspense…

Um caso muito pessoal e que se configura, para mim, como um filme que cumpre muito bem esse papel é Embaraço, de Fernando Rick. Confesso que só senti um pouco de alívio quando, ao final, nos créditos, é mostrado o nome do responsável pelos efeitos especiais. A radicalidade do tratamento de um tema polêmico me causou profunda marca na maneira como o diretor resolveu mostrar não o aborto, tema de qual efetivamente o filme trata, mas sobretudo a decisão de retratar, para além do aborto, algo que nos é comum: a Agonia.

Esse tema me tocou principalmente pelo ritmo do filme e pelo fato de, na efetividade de um corpo feminino, poder em potencial experimentar essa Angústia. A agonia dos muitos dias que se passam numa mesma e única angústia, que é a de tentar expelir um feto e não ter sucesso, é uma agonia profunda, que é a de estar entre a vida e a morte por muito tempo. Assim, o que tem de horror no filme se liga a um imaginário que é coletivo, daquilo que efetivamente está dado na cultura, mas muito mais, pois se liga a COMO a subjetividade sente esse dado da cultura, esse tema. A maneira como minha sensibilidade sentiu o filme é tão pavorosa quanto o pavor que imagino que o diretor tenha querido imprimir e ao que algumas mulheres realmente sofreram. A condição de mulher me dá a possibilidade de um outro ponto de avaliação a do seu diretor, de maneira que escolhi este filme justamente por isso.

Existem muitas premissas para um filme de horror funcionar: roteiro, técnica, filmagem, interpretação… e, em grande medida, eu diria que um filme de horror funciona sobretudo pelo que instala no espectador. Até que ponto uma obra que pretende causar angústia efetivamente alcança essa condição depende fundamentalmente em que nível ela atinge o espectador. E é por isso que continuamos assistindo filmes de horror, porque desejamos ver o nosso limite, o quanto suportamos estar horrorizados, permanecer pasmos e aterrorizados. Do filme em questão, desisti duas vezes e somente na terceira consegui ir até o final, e quando o fim chegou, não me senti mais confortável.

A minha experiência com o horror é a de que, quanto mais colado à realidade, por mais que sejam visões sobrenaturais e invencionices eloquentes de diretores extremamente criativos e exímios roteiristas, quanto mais tenham o pé fincado na vida humana, no que nos é comum, melhor será o efeito horripilante do filme. Se você assiste a um filme que te faz arrepiar, altera-te a respiração e depois traz pesadelos, sim, você assistiu a uma boa obra de horror. Se a produção não te sai da cabeça, ou se alguma cena será sempre a que você vai comentar na roda, realmente você assistiu a um bom filme de horror. Hitchcock tornou uma imagem de Psicose (1960) um ícone, de forma que, toda vez que falamos dele, a evocação da imagem da banheira figura como uma espécie de referência coletiva. O espanto, a angústia e a dor, a condição de colocar-se no lugar daquele que está representado por nós na narrativa ou sofrer da impotência diante de um fenômeno não controlável e que nos ameaça, causa-me horror. Ser jogado neste mundo com a consciência da finitude causa um espanto para o corpo indivisível.

A imensa capacidade que temos de criar e recriar o lugar de espanto e de criar e recriar a angústia, é a este fenômeno que me refiro como estar colado à realidade, e, em segundo lugar, destaco que o espanto se faz efetivo porque suscita uma realidade diante de um corpo indivisível e mortal.

Estar diante de algo que minha compreensão alcança, mas até certo ponto nega, esse paradoxo pode instaurar as sensações para as quais estarei de antemão precavida, contudo que, ao se realizarem, colocam a funcionar aspectos não calculados em mim enquanto espectadora, e eu diria que é o filme que me move. O filme é quem me carrega, por mais atento e racional que esteja diante de uma tela, com o olhar de um crítico ou mesmo imbuído de uma função (refletir, retirar informações), o filme, principalmente o inédito, trabalha-nos de modo que, por mais calculado que estejam as cenas seguintes, estarei sempre em suspenso até que isso se desenvolva em imagens nas cenas. E muitas vezes temos bem certo o desenrolar das próximas cenas, no entanto, ao se fazerem imagens, efetivamente notaremos uma certa distância entre o imaginado e o vivido.

Nosso corpo como lugar indivisível e a consciência da finitude desse corpo indivisível constituem uma realidade suficientemente ampla para pensar o horror e suas tantas manifestações, seja como medo, pavor, fuga, revolta ou reverência. Do meu ponto de vista, uma das principais molas propulsoras da temática é a morte do corpo indivisível e mutação e a divisibilidade ou manipulação do corpo indivisível.

O corpo, como um centro pensado pelo horror, constitui uma espécie de motor do estilo, isto é, um lugar de onde se inventa e radicaliza um estilo, e não estou falando apenas de personagens. Estou mencionando o corpo que se divide em corpo e alma, espírito, possessão, pedaços, costuras, sobreposições, colagens e transformações. O corpo que se esfacela, aquele que pode sofrer mutações e se transformar em muitas outras coisas, o corpo que contém um diferencial, aquele que experimenta uma diferença, que causa a si e a outrem essa diferença.


No meu ponto de vista, o corpo é, para o gênero horror, o principal elemento que agrega as possibilidades criativas. É claro que, se pensarmos, por exemplo, nas criaturas, também teremos outro nível gerador cheio de riqueza, e se pensarmos nos fenômenos, novamente teremos uma série de obras que os realizam com grandeza, mas, ao que me parece, todos partem do corpo como fenômeno fundante, o corpo que sofre, agoniza e que passa por transformações ou que causa algo diferente do que ele é capaz de causar enquanto corpo biológico restritos às funções orgânicas de vida.

O corpo do ator no cinema de horror nem sempre é aquele corpo de ator trabalhado na arte cênica no sentido mais estrito, faz-se horror com atores amadores há muito, não raro os atores administram sua própria carreira e produção e filmam a partir de um núcleo de amigos. O cinema de horror, em suma, passa, principalmente no Brasil, pelo viés da produção marginal e realizada com baixíssimo orçamento.

A produção segue sendo feita de maneira caseira ou não convencional, o estilo é interpretado por terror, horror, underground ou trash, e a indústria cinematográfica embarca no gênero depois dele ter sido experimentado por uma quantidade enorme de amadores. Esse tanto de aficionados produziu durante décadas de maneira a elevar o gênero a um estilo hoje consumido e adorado, certamente que não pela crítica ortodoxa nem pelo grande público acostumado a produções encantadoras, que, no máximo, curte filme de arte ou cult. Uma coisa é importante citar, grandes diretores fizeram filmes mais alternativos sem patrocínio e por conta própria e isso se deu porque entregavam sucessos bem filmados e tocavam projetos alternativos de maneira paralela. Toda essa história é contada no livro ainda não lançado de um monstro de coragem que é testemunho vivo das agruras de produzir cinema independente no Brasil: Petter Baiestorf.

Coffin Souza (2011), em texto para o Canibuk, afirma:

 

A trajetória do gênero se confunde com a de seu maior ícone: José Mojica Marins (1931)… Com a colaboração da família e amigos criou uma escola de atores/produtora mambembe e depois de rodar um faroeste nacional e um melodrama infantil criou o personagem Josefel Zanatas, mais conhecido como Zé do Caixão para o clássico À meia-noite levarei sua alma de 1964.

 

O cinema de horror feito no Brasil está repleto de censuras, de diretores malditos, como José Mojica Marins (Zé do Caixão) que encarou produções de baixo orçamento e teve de adaptar filmes por conta de censura. A história do cinema de horror no mundo está cheia de experimentos, como é o caso de Um Cão Andaluz (Salvador Dali e Luis Buñel)

Ainda sobre Zé do Caixão e um de seus filmes, Souza (2011) diz:

 

À meia noite levarei sua alma dividiu a crítica da época, afinal a produção era recheada de blasfêmias, sexo, violência, filosofia de botequim, diálogos hilários e cenários de papelão. O terror e o trash nasceram juntos entre nós, e o público adorou.

 

Esses entrecruzamentos do qual fala Baiestorf, e com o qual concordo, faz com que fique menos pesada a tarefa a respeito da definição de gênero, assim, uma caracterização importante feita pelo autor, que é também diretor e ator, é a de lidar com a categoria ou gênero chamado S.O.V (Shot On Vídeo) isto é, Feito em Vídeo. Baiestorf, em livro ainda não lançado, diz:

 

No pós-guerra, na década de 1950, houve uma explosão de produtores independentes, que encontraram uma forma de ganhar dinheiro com filmes de monstros e/ou alienígenas feitos sem grandes recursos e que encontravam público. Tanto público que os grandes estúdios se apropriaram do gênero e faturaram muito dinheiro. Considero-os a principal influência do cinema Shot On Video, o S.O.V, que surgiu no início dos anos de 1980, principalmente nos USA. E essa influência transou com as influências do cinema underground e deixou tudo mais divertido ainda, porque a grande sacada do S.O.V foi a de misturar todo tipo de influências e recriar tudo à sua maneira.

 

Baiestorf, em SOV e o Cinema Independente Brasileiro (2019), publicado no site Canibuk, explica que, primeiro, a explosão dos S.O.V se deu na década de 80 nos Estados Unidos, e junto desse fenômeno, a explosão das videolocadoras fez com que os apaixonados por filmes entendessem rapidamente como era dispensável as salas de cinema e também a potência do VHS.

 

Com o declínio dos Drive-In Theaters e grindhouses na década de 1970, e o surgimento de formatos domésticos como Super-8, Beta Tapes, Laser Disc e, talvez, o mais importante deles, a Fita VHS – que permitia uma arte chamativa em suas enormes caixas protetoras – o cinema SOV da década de 1980 começava, timidamente, a perceber suas possibilidades concretas. Não demorou muito para que a jovem geração, ociosa e bêbada, descobrisse que era possível realizar filmes com câmeras VHS. Inicialmente o formato não havia sido recebido com muito entusiasmo. Sua qualidade de som e imagem deixava muito a desejar e era, geralmente, usada para o registro de aniversários, casamentos, viagens e outras festividades familiares. Mas estes artistas amadores improvisados começaram a provar o valor do VHS, agora pessoas comuns estavam conseguindo produzir seus filmes com a paixão e devoção que somente os fãs possuem. Hollywood não realiza o filme dos seus sonhos? Não tem problema, faça-o você mesmo em VHS, com ajuda de seus amigos tão sem noção quanto você! Teus amigos não te ajudam? Possivelmente você está andando com as pessoas erradas!!!

 

Petter contextualiza, apresenta vários filmes e desenvolve toda a história dos vídeos S.O.V, analisando a produção e a distribuição e comenta como esse tipo de vídeo ganha em expressão.

 

Sim, as produções SOV são essencialmente de fundo de quintal, feitas por entusiastas se autointitulando cineastas, que conseguem meter seus amigos e familiares no sonho de fazer cinema. Geralmente são produções amadoras desleixadas, desfocadas, com efeitos especiais improvisados, atores canastrões, figurinos inexistentes e roteiros absurdos. Mas é essa combinação que faz com que os filmes funcionem e tenham legiões de fãs ao redor do mundo. Outra particularidade do cinema SOV: São produções locais que ultrapassam fronteiras, ou seja, um filme vagabundo produzido entre amigos num sítio em Palmitos, SC, Brasil, é perfeitamente capaz de dialogar com um entusiasta do SOV que morou a vida inteira num pequeno apartamento em Tokyo, por exemplo.

 

O blog Camera Viscera, na matéria Video Violence – 13 Days of Shot on Video! (2015), faz outra importante observação a respeito dos SOVs:

 


Eles conseguiram congelar o tempo. O que quero dizer é que os sets que você vê nestes filmes não são cenários construídos, são videolocadoras e mercearias reais. As roupas que você vê não são fantasias, são roupas reais que os atores tinham em seus roupeiros. As ruas, os carros, os locais, são todos reais e intocados, e você consegue vê-los como estavam em seu estado natural em 1987. Essas joias do “no-budget” dos anos de 1980 capturaram a essência do tempo e isso é um bem inestimável. Eles são como se suas famílias tivessem filmes caseiros dos anos 1980, exceto com mais assassinatos (ou menos, dependendo do tipo de família que você veio).

 

No Camera Viscera (2015), o crítico mostra, por exemplo, uma sequência em que um mesmo tipo de carro aparece quatro vezes na cena. A possibilidade que o S.O.V (feito em vídeo) traz é justamente a de não se propor diretamente a documentar a realidade, ser da mesma um retrato fiel, ou seja, não se trata de filmes realizados para documentar, nem para datar, para se tornar registro histórico, mas o é. E o é porque a decisão de fazer vídeos caseiros tornou a vida comum digna de retratos do cotidiano, sendo que o que existe de ficcional nos vídeos são as histórias dos seus diretores, nem sempre muito convincentes ou bem boladas, no entanto isso pouco importa. São os cenários, figurinos e todo um arsenal de possibilidades de realizações de pessoas vivendo suas vidas e filmando a partir delas seus filmes.

Esse tipo de filme ganhou tanta aderência na cultura cinematográfica que tornou alguns deles uma espécie de clássico. Baierstorf (2019) assim contextualiza:

 

(…) Video Violence (1987, Gary Cohen) foi comprado pela distribuidora Camp Video. Com base em Los Angeles, a Camp Video fez uma ampla divulgação da produção de fundo de quintal – que permanece sendo o filme SOV da década de 1980 com maior venda – e conseguiu colocá-lo em locadoras dos USA inteiro. Video Violence chegou a ser indicado para o prêmio de melhor filme independente no American Film Institute daquele ano. Em tempo: Video Violence é um filme que reflete sobre o assunto violência é boa, mas o sexo não é, algo que constatei pessoalmente com 30 anos de produções independentes pela Canibal Filmes, onde nunca fui censurado pelas cenas de violência, mas sim, apenas e unicamente, por cenas de sexo.

 

Sobre os S.O.V, apenas ressalto que os cenários, as interpretações, as maquiagens, figurinos e outros, não escondem a irrealidade e a falta de cuidado técnico, ou por vezes colocam estes elementos de maneira proposital. São feitos também de maneira a revelar o que não deu certo, é um cinema e audiovisual do erro, da inexatidão. Poderíamos arriscar dizer que não existe uma razão de ser além de si mesmo, no sentido de que o filme é o que é. Muito do filmado em vídeo não se dispõe a discussões filosóficas ou buscas por sabedorias e aperfeiçoamento de técnica, como é a proposta dos filmes cult ou de arte, muito é feito de maneira a, inclusive, tentar romper com isso.

Parece que o que existe são tentativas de desconstruir essas ideias classicamente vendidas como importantes e fundamentais para o cinema. Neste sentido, entendo que o S.O.V é uma grande possibilidade de fazer do cinema e audiovisual como uma espécie de retrato nu da vida como a vida é.

Abdicar da estética que tudo torna igual, fugir da mesmice, procurar a estranheza, o bizarro, o absolutamente diferente que está presente tanto em viver e filmar a própria vida e filmar histórias tendo a vida mesma como pano de fundo, aproximando a realidade da narrativa e a narrativa da realidade.

Para finalizar lembremos que a produção nacional amadora é enorme, os temas de violência, sangue, sexo, crítica social, bizarrice e humor politicamente incorreto mostram as deficiências, as faltas e as loucuras da vida humana, e é por esse motivo que tanta inventividade e ousadia têm seu preço, que a de nem sempre ser vendável, distribuível ou recomendável. É um cinema e audiovisual que não servem pra nada e ao mesmo tempo tratam temas polêmicos, tabus, traumas e aspectos da vida de maneira excêntrica, é certo, mas também completamente possível.

Essas produções do cinema e do audiovisual são um desafio ao segmento mais formal, já que podem muitas vezes se ressentir da qualidade de produção e ainda questionar o que elas se propõem a mostrar. Por outro lado, temos um público crescente e ávido pelo gênero horror, seja produção comercial, seja independente. Aí teremos um outro aspecto a dirimir, a questão de tratar o horror oficial, distinguindo-o do S.O.V e daquele que fica entre um e outro, ou num outro estilo, que, como define Baiestorf, é independente mas fogem do S.O.V e também não são profissionais.

Baiestorf (2019) trata de maneira a traçar uma espécie de linha do tempo da produção e dá um guia para começar a entender a produção feita em vídeo.

 

Aqui no Brasil ainda houve o agravante de que as produções S.O.Vs surgiram exatamente junto com a moda Trash, que assolou a década de 1990. O SOV brasileiro ganhou força com a produção de minha produtora, Canibal Filmes, que, por ser realizada com orçamentos tão irrisórios, também encaixavam na descrição do Trash. Aí a imprensa oficial, que geralmente é preguiçosa e não vai atrás de informações para apurar os fatos, tratou de difundir essa confusão e o S.O.V ficou desconhecido aqui, sendo tratado como filmes Trash. Quando estava acabando a moda Trash estes filmes passaram a ser objetos de estudo de um grupo de acadêmicos que passaram a chamá-los de Cinema de Bordas, e perdeu-se a oportunidade de categorizar o S.O.V Brasileiro na história do cinema amador mundial.

 

 


ELIETE BORGES LOPES. Escritora, ensaísta, roteirista, diretora, poeta, desenhista, fotógrafa, maquiadora e iluminadora cênica. É autora dos livros de poesias Scarlet e o Branco (Multifoco: RJ, 2012) e Nem Pés e Mil Cabeças (Edição da Autora, 2014). Seu terceiro livro, Passo Meu Ex-Passo, está programado para ser lançado este ano. É responsável pela Mostra de Cinema e Audiovisual Cinecaos.





RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.





 


Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)

Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)

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