Dioniso não é o Deus
mais ordeiro. Logo, o caos promovido pelo seu culto fora proibido pelo Estado, passando
numa longa história de escrita de peças (Ésquilo, Sófocles e Eurípedes) a serem
representadas e ordenadas a partir de algo mais controlado e destinado à apreciação
e não necessariamente à interação. Surge a plateia do teatro.
Mas a representação
das mais belas e trágicas histórias continuam sendo narradas desde lá. A tônica
é basicamente a mesma, porém a forma está completamente alterada. A feiura, a bestialidade
e animalidade e a maldade dos deuses perpassam a literatura mais antiga e continuam
com Saturno a devorar seus filhos, Medeia a massacrá-los para vingar-se de seu marido
infiel e mesmo Tântalo, que cozinha o próprio filho e serve-o aos deuses, para que
provem sua carne e ele descubra se são realmente tão perspicazes.
A lista das atrocidades
praticadas pelos deuses e deusas é um dos principais temas dos mitos gregos e das
narrativas literárias míticas e delas, não por derivação, transplanta-se ao teatro,
à plástica, à música… e na contemporaneidade ao corpo, desta vez, em performances
e body art, só para lembrar duas modalidades. Modernamente,
os objetos também passaram a compartilhar disso que podemos chamar de horror e que
não possui uma única definição. Melhor até que não tenha, claro.
Hoje, mais que nunca,
produz-se e, sobretudo, divulga-se mais que todas as épocas as modalidades, suportes
e realidades em que se podem produzir uma narrativa sobre o tema horror,
e seria tarefa hercúlea a representação do horror na arte contemporânea, por isso
optamos por um trajeto apenas, sabendo que este excluirá inevitavelmente obras,
autores, diretores, produtos e produtores.
Façamos um parêntese
para dizer que não é apenas o campo da ficção que está carregado de realizações
que trazem o gênero à tona. Apesar de não ser esta a direção do texto, façamos uma
ressalva: o horror se faz presente diante de nossos olhos todos os dias, basta abrir
um jornal na coluna policial e veremos casos e mais casos que são verdadeiros roteiros,
cenas e descrições que poderiam ser representadas por diversos suportes e modalidades
artísticas. Figuram na realidade das páginas de notícias espantosas matérias sobre
decapitação, chacina, esquartejamento, assassinato, rapto, parricídio, tortura e
sequestro que se misturam, não sem menos espanto, a comerciais de eletrodomésticos,
venda de imóveis, lingeries da moda.
Até mesmo as famigeradas
telenovelas buscam, de maneira suavizada, representar o horror em figuras encarnadas
por vilões e tramas dramáticas que, através de eventos como traições, sequestros
e mortes, demonstram entre uma cena e outra o horror de uma mocinha a ser perseguida
ou um pai de família sendo ameaçado por ladrões geralmente estereotipados. Mesmo
sendo cenas pobres em termos de horror, acabam por ganhar a audiência, não exatamente
por apresentar o horror em si, mas sim por gerar uma tensão que é esperada pelos
noveleiros de plantão, este horro-r-aso uma espécie de horror suavizado,
eufemizado, que é causado mais pela apreensão do corte, do tempo em que se dará
o desfecho (o próximo capítulo), que propriamente pelo horror apresentado.
O que nos perguntamos
para direcionar o texto é: como a tradição ocidental vem lidando com a superabundância
da temática? Essa superabundância me levou a utilizar de um mosaico criado a partir
de imagens, criaturas, atos e histórias que ganham corpo na longuíssima história
do horror.
Definir contornos
para o gênero dentro da modalidade cinema, por exemplo, é em si já uma tarefa árdua.
Tentar abarcar outros gêneros é sofrível e por isso mesmo não estou me dispondo
a fazer uma história do horror, mas sim demonstrar que o gênero perpassa diversos
tipos de expressão e vem sendo empenhada por escritores, críticos, cinéfilos e artistas
de toda ordem. O tema é bem explorado, e rastrear a produção é se haver com um intrincado
labirinto de gêneros, narrativas, enredos, estilos, personagens e criaturas.
Os produtos derivados, como o misto entre comédia
e horror e drama e horror, fazem com que o gênero ganhe por vezes as características
de uma produção híbrida, além de que os formatos também geram uma bela confusão,
já que usar do horror num curta de 17 minutos é completamente diferente de usar
do mesmo gênero em um longa. A produção é volumosa e os seus consumidores não apenas
assistem e comparecem às exibições, eles fazem a crítica e inventam a partir do
gênero.
A linha entre cinema
de horror e cinema fantástico, por exemplo, é bem tênue, a linha entre horror e
terror, trash e underground, de igual maneira, faz com que, quem deseja esquadrinhar
este universo ou crie linhas autorais de interpretação ou categorias específicas
para cada tipo filmado. As divergências não sanadas não constituem grandes problemas,
nem para quem filma nem para quem deseja concretizar essas tais linhas divisoras
de entendimentos sobre os gêneros horror, terror, trash, underground
ou Shot on Vídeo (S.O.V) – feito em vídeo.
Uma ressalva para
esta distinção, a de S.O.V ou filmado em vídeo, que aparece aqui como uma possibilidade
para a tão desejada definição dos contornos entre gêneros.
Cinema de horror,
terror, undergroud, trash e o S.O.V perpassam-se em muitas concepções e produções,
alguns críticos e escritores preferem a não existência dessa linha. Particularmente,
não entendo como problemático os entrecruzamentos, eles são mesmo inevitáveis, isso
porque os elementos narrativos, imagéticos e de efeitos são utilizados irrestritamente
por diretores, produtores e roteiristas sem a preocupação de como nomear esta ou
aquela obra ou produção.
Para este momento,
limitar-me-ei a buscar um fio condutivo de como um determinado tipo de expressão
pode se manifestar-se como produção de estilo horror. Assim, busco diferentes campos,
para minimamente dar conta do fenômeno que expressa o que existe de sombrio, aterrorizante,
mórbido, feio e bizarro na existência humana. E essa será uma prerrogativa aqui,
que o horror é a manifestação expressa do medo, daquilo que aterroriza, traz à tona
um tipo específico de mal-estar.
Um caso muito pessoal
e que se configura, para mim, como um filme que cumpre muito bem esse papel é Embaraço,
de Fernando Rick. Confesso que só senti um pouco de alívio quando, ao final, nos
créditos, é mostrado o nome do responsável pelos efeitos especiais. A radicalidade
do tratamento de um tema polêmico me causou profunda marca na maneira como o diretor
resolveu mostrar não o aborto, tema de qual efetivamente o filme trata, mas sobretudo
a decisão de retratar, para além do aborto, algo que nos é comum: a Agonia.
Esse tema me tocou
principalmente pelo ritmo do filme e pelo fato de, na efetividade de um corpo feminino,
poder em potencial experimentar essa Angústia. A agonia dos muitos dias que se passam
numa mesma e única angústia, que é a de tentar expelir um feto e não ter sucesso,
é uma agonia profunda, que é a de estar entre a vida e a morte por muito tempo.
Assim, o que tem de horror no filme se liga a um imaginário que é coletivo, daquilo
que efetivamente está dado na cultura, mas muito mais, pois se liga a COMO a subjetividade
sente esse dado da cultura, esse tema. A maneira como minha sensibilidade sentiu
o filme é tão pavorosa quanto o pavor que imagino que o diretor tenha querido imprimir
e ao que algumas mulheres realmente sofreram. A condição de mulher me dá a possibilidade
de um outro ponto de avaliação a do seu diretor, de maneira que escolhi este filme
justamente por isso.
Existem muitas premissas para um filme de horror funcionar: roteiro, técnica, filmagem, interpretação… e, em grande medida, eu diria que um filme de horror funciona sobretudo pelo que instala no espectador. Até que ponto uma obra que pretende causar angústia efetivamente alcança essa condição depende fundamentalmente em que nível ela atinge o espectador. E é por isso que continuamos assistindo filmes de horror, porque desejamos ver o nosso limite, o quanto suportamos estar horrorizados, permanecer pasmos e aterrorizados. Do filme em questão, desisti duas vezes e somente na terceira consegui ir até o final, e quando o fim chegou, não me senti mais confortável.
A minha experiência com o horror é a de que, quanto mais colado à realidade, por mais que sejam visões sobrenaturais e invencionices eloquentes de diretores extremamente criativos e exímios roteiristas, quanto mais tenham o pé fincado na vida humana, no que nos é comum, melhor será o efeito horripilante do filme. Se você assiste a um filme que te faz arrepiar, altera-te a respiração e depois traz pesadelos, sim, você assistiu a uma boa obra de horror. Se a produção não te sai da cabeça, ou se alguma cena será sempre a que você vai comentar na roda, realmente você assistiu a um bom filme de horror. Hitchcock tornou uma imagem de Psicose (1960) um ícone, de forma que, toda vez que falamos dele, a evocação da imagem da banheira figura como uma espécie de referência coletiva. O espanto, a angústia e a dor, a condição de colocar-se no lugar daquele que está representado por nós na narrativa ou sofrer da impotência diante de um fenômeno não controlável e que nos ameaça, causa-me horror. Ser jogado neste mundo com a consciência da finitude causa um espanto para o corpo indivisível.
A imensa capacidade
que temos de criar e recriar o lugar de espanto e de criar e recriar a angústia,
é a este fenômeno que me refiro como estar
colado à realidade, e, em segundo lugar, destaco que o espanto se faz efetivo
porque suscita uma realidade diante de um corpo indivisível e mortal.
Estar diante
de algo que minha compreensão alcança, mas até certo ponto nega, esse paradoxo pode
instaurar as sensações para as quais estarei de antemão precavida, contudo que,
ao se realizarem, colocam a funcionar aspectos não calculados em mim enquanto espectadora,
e eu diria que é o filme que me move. O filme é quem me carrega, por mais atento
e racional que esteja diante de uma tela, com o olhar de um crítico ou mesmo imbuído
de uma função (refletir, retirar informações), o filme, principalmente o inédito,
trabalha-nos de modo que, por mais calculado que estejam as cenas seguintes, estarei
sempre em suspenso até que isso se desenvolva em imagens nas cenas. E muitas vezes
temos bem certo o desenrolar das próximas cenas, no entanto, ao se fazerem imagens,
efetivamente notaremos uma certa distância entre o imaginado e o vivido.
Nosso corpo
como lugar indivisível e a consciência da finitude desse corpo indivisível constituem
uma realidade suficientemente ampla para pensar o horror e suas tantas manifestações,
seja como medo, pavor, fuga, revolta ou reverência. Do meu ponto de vista, uma das
principais molas propulsoras da temática é a morte do corpo indivisível e mutação e a divisibilidade ou manipulação
do corpo indivisível.
O corpo, como
um centro pensado pelo horror, constitui uma espécie de motor do estilo, isto é,
um lugar de onde se inventa e radicaliza um estilo, e não estou falando apenas de
personagens. Estou mencionando o corpo que se divide em corpo e alma, espírito,
possessão, pedaços, costuras, sobreposições, colagens e transformações. O corpo
que se esfacela, aquele que pode sofrer mutações e se transformar em muitas outras
coisas, o corpo que contém um diferencial, aquele que experimenta uma diferença,
que causa a si e a outrem essa diferença.
O corpo do
ator no cinema de horror nem sempre é aquele corpo de ator trabalhado na arte cênica
no sentido mais estrito, faz-se horror com atores amadores há muito, não raro os
atores administram sua própria carreira e produção e filmam a partir de um núcleo
de amigos. O cinema de horror, em suma, passa, principalmente no Brasil, pelo viés
da produção marginal e realizada com baixíssimo orçamento.
A produção
segue sendo feita de maneira caseira ou não convencional, o estilo é interpretado
por terror, horror, underground ou trash, e a indústria cinematográfica embarca
no gênero depois dele ter sido experimentado por uma quantidade enorme de amadores.
Esse tanto de aficionados produziu durante décadas de maneira a elevar o gênero
a um estilo hoje consumido e adorado, certamente que não pela crítica ortodoxa nem
pelo grande público acostumado a produções encantadoras, que, no máximo, curte filme
de arte ou cult. Uma coisa é importante citar, grandes diretores fizeram
filmes mais alternativos sem patrocínio e por conta própria e isso se deu porque
entregavam sucessos bem filmados e tocavam projetos alternativos de maneira paralela.
Toda essa história é contada no livro ainda não lançado de um monstro de coragem
que é testemunho vivo das agruras de produzir cinema independente no Brasil: Petter
Baiestorf.
Coffin Souza
(2011), em texto para o Canibuk, afirma:
A trajetória do gênero se confunde com a de seu maior
ícone: José Mojica Marins (1931)… Com a colaboração da família e amigos criou uma
escola de atores/produtora mambembe e depois de rodar um faroeste nacional e um
melodrama infantil criou o personagem Josefel Zanatas, mais conhecido como Zé do
Caixão para o clássico À meia-noite levarei sua alma de 1964.
O cinema de
horror feito no Brasil está repleto de censuras, de diretores malditos, como José
Mojica Marins (Zé do Caixão) que encarou produções de baixo orçamento e teve de
adaptar filmes por conta de censura. A história do cinema de horror no mundo está
cheia de experimentos, como é o caso de Um Cão Andaluz (Salvador
Dali e Luis Buñel)
Ainda sobre
Zé do Caixão e um de seus filmes, Souza (2011) diz:
À meia noite levarei sua alma dividiu a crítica da época, afinal a produção era recheada de blasfêmias,
sexo, violência, filosofia de botequim, diálogos hilários e cenários de papelão.
O terror e o trash nasceram juntos entre nós, e o público adorou.
Esses entrecruzamentos
do qual fala Baiestorf, e com o qual concordo, faz com que fique menos pesada a
tarefa a respeito da definição de gênero, assim, uma caracterização importante feita
pelo autor, que é também diretor e ator, é a de lidar com a categoria ou gênero
chamado S.O.V (Shot On Vídeo) isto é, Feito em Vídeo. Baiestorf, em livro ainda
não lançado, diz:
No pós-guerra, na década de 1950, houve uma explosão
de produtores independentes, que encontraram uma forma de ganhar dinheiro com filmes
de monstros e/ou alienígenas feitos sem grandes recursos e que encontravam público.
Tanto público que os grandes estúdios se apropriaram do gênero e faturaram muito
dinheiro. Considero-os a principal influência do cinema Shot On Video, o S.O.V, que surgiu no início
dos anos de 1980, principalmente nos USA. E essa influência transou com as influências
do cinema underground e deixou tudo mais divertido ainda, porque a grande sacada
do S.O.V foi a de misturar todo tipo de influências e recriar tudo à sua maneira.
Baiestorf,
em SOV e o Cinema Independente Brasileiro (2019), publicado
no site Canibuk, explica que, primeiro, a explosão dos S.O.V se deu na década de
80 nos Estados Unidos, e junto desse fenômeno, a explosão das videolocadoras fez
com que os apaixonados por filmes entendessem rapidamente como era dispensável as
salas de cinema e também a potência do VHS.
Com o declínio dos Drive-In Theaters e grindhouses na
década de 1970, e o surgimento de formatos domésticos como Super-8, Beta Tapes,
Laser Disc e, talvez, o mais importante deles, a Fita VHS – que permitia uma arte
chamativa em suas enormes caixas protetoras – o cinema SOV da década de 1980 começava,
timidamente, a perceber suas possibilidades concretas. Não demorou muito para que
a jovem geração, ociosa e bêbada, descobrisse que era possível realizar filmes com
câmeras VHS. Inicialmente o formato não havia sido recebido com muito entusiasmo.
Sua qualidade de som e imagem deixava muito a desejar e era, geralmente, usada para
o registro de aniversários, casamentos, viagens e outras festividades familiares.
Mas estes artistas amadores improvisados começaram a provar o valor do VHS, agora
pessoas comuns estavam conseguindo produzir seus filmes com a paixão e devoção que
somente os fãs possuem. Hollywood não realiza o filme dos seus sonhos? Não tem problema,
faça-o você mesmo em VHS, com ajuda de seus amigos tão sem noção quanto você! Teus
amigos não te ajudam? Possivelmente você está andando com as pessoas erradas!!!
Petter contextualiza,
apresenta vários filmes e desenvolve toda a história dos vídeos S.O.V, analisando
a produção e a distribuição e comenta como esse tipo de vídeo ganha em expressão.
Sim, as produções SOV são essencialmente de fundo de
quintal, feitas por entusiastas se autointitulando cineastas, que conseguem meter
seus amigos e familiares no sonho de fazer cinema. Geralmente são produções amadoras
desleixadas, desfocadas, com efeitos especiais improvisados, atores canastrões,
figurinos inexistentes e roteiros absurdos. Mas é essa combinação que faz com que
os filmes funcionem e tenham legiões de fãs ao redor do mundo. Outra particularidade
do cinema SOV: São produções locais que ultrapassam fronteiras, ou seja, um filme
vagabundo produzido entre amigos num sítio em Palmitos, SC, Brasil, é perfeitamente
capaz de dialogar com um entusiasta do SOV que morou a vida inteira num pequeno
apartamento em Tokyo, por exemplo.
O blog Camera
Viscera, na matéria Video Violence – 13 Days of Shot on Video!
(2015), faz outra importante observação a respeito dos SOVs:
No Camera Viscera (2015), o crítico mostra,
por exemplo, uma sequência em que um mesmo tipo de carro aparece quatro vezes na
cena. A possibilidade que o S.O.V (feito em vídeo) traz é justamente a de não se
propor diretamente a documentar a realidade, ser da mesma um retrato fiel, ou seja,
não se trata de filmes realizados para documentar, nem para datar, para se tornar
registro histórico, mas o é. E o é porque a decisão de fazer vídeos caseiros tornou
a vida comum digna de retratos do cotidiano, sendo que o que existe de ficcional
nos vídeos são as histórias dos seus diretores, nem sempre muito convincentes ou
bem boladas, no entanto isso pouco importa. São os cenários, figurinos e todo um
arsenal de possibilidades de realizações de pessoas vivendo suas vidas e filmando
a partir delas seus filmes.
Esse tipo de
filme ganhou tanta aderência na cultura cinematográfica que tornou alguns deles
uma espécie de clássico. Baierstorf (2019) assim contextualiza:
(…) Video Violence (1987, Gary Cohen) foi comprado pela distribuidora Camp Video. Com base
em Los Angeles, a Camp Video fez uma ampla divulgação da produção de fundo de quintal
– que permanece sendo o filme SOV da década de 1980 com maior venda – e conseguiu
colocá-lo em locadoras dos USA inteiro. Video Violence chegou a ser indicado para o prêmio de melhor filme independente no American
Film Institute daquele ano. Em tempo: Video Violence é um filme que reflete sobre o assunto violência é boa,
mas o sexo não é, algo que constatei pessoalmente
com 30 anos de produções independentes pela Canibal Filmes, onde nunca fui censurado
pelas cenas de violência, mas sim, apenas e unicamente, por cenas de sexo.
Sobre os S.O.V,
apenas ressalto que os cenários, as interpretações, as maquiagens, figurinos e outros,
não escondem a irrealidade e a falta de cuidado técnico, ou por vezes colocam estes
elementos de maneira proposital. São feitos também de maneira a revelar o que não
deu certo, é um cinema e audiovisual do erro, da inexatidão. Poderíamos arriscar
dizer que não existe uma razão de ser além de si mesmo, no sentido de que o filme
é o que é. Muito do filmado em vídeo não se dispõe a discussões filosóficas ou buscas
por sabedorias e aperfeiçoamento de técnica, como é a proposta dos filmes cult ou de arte, muito é feito de maneira a, inclusive,
tentar romper com isso.
Parece que
o que existe são tentativas de desconstruir essas ideias classicamente vendidas
como importantes e fundamentais para o cinema. Neste sentido, entendo que o S.O.V
é uma grande possibilidade de fazer do cinema e audiovisual como uma espécie de
retrato nu da vida como a vida é.
Abdicar da
estética que tudo torna igual, fugir da mesmice, procurar a estranheza, o bizarro,
o absolutamente diferente que está presente tanto em viver e filmar a própria vida
e filmar histórias tendo a vida mesma como pano de fundo, aproximando a realidade
da narrativa e a narrativa da realidade.
Para finalizar
lembremos que a produção nacional amadora é enorme, os temas de violência, sangue,
sexo, crítica social, bizarrice e humor politicamente incorreto mostram as deficiências,
as faltas e as loucuras da vida humana, e é por esse motivo que tanta inventividade
e ousadia têm seu preço, que a de nem sempre ser vendável, distribuível ou recomendável. É um cinema e audiovisual que
não servem pra nada e ao mesmo tempo tratam
temas polêmicos, tabus, traumas e aspectos da vida de maneira excêntrica, é certo,
mas também completamente possível.
Essas produções
do cinema e do audiovisual são um desafio ao segmento mais formal, já que podem
muitas vezes se ressentir da qualidade de produção e ainda questionar o que elas
se propõem a mostrar. Por outro lado, temos um público crescente e ávido pelo gênero
horror, seja produção comercial, seja independente. Aí teremos um outro aspecto
a dirimir, a questão de tratar o horror oficial, distinguindo-o do S.O.V e daquele
que fica entre um e outro, ou num outro estilo, que, como define Baiestorf, é independente
mas fogem do S.O.V e também não são profissionais.
Baiestorf (2019)
trata de maneira a traçar uma espécie de linha do tempo da produção e dá um guia
para começar a entender a produção feita em vídeo.
Aqui no Brasil ainda houve o agravante de que as produções
S.O.Vs surgiram exatamente junto com a moda Trash, que assolou a década de 1990.
O SOV brasileiro ganhou força com a produção de minha produtora, Canibal Filmes,
que, por ser realizada com orçamentos tão irrisórios, também encaixavam na descrição
do Trash. Aí a imprensa oficial, que geralmente é preguiçosa e não vai atrás de
informações para apurar os fatos, tratou de difundir essa confusão e o S.O.V ficou
desconhecido aqui, sendo tratado como filmes Trash. Quando estava acabando a moda
Trash estes filmes passaram a ser objetos de estudo de um grupo de acadêmicos que
passaram a chamá-los de Cinema de Bordas, e perdeu-se a oportunidade de categorizar
o S.O.V Brasileiro na história do cinema amador mundial.
ELIETE BORGES LOPES. Escritora, ensaísta, roteirista, diretora, poeta, desenhista, fotógrafa, maquiadora e iluminadora cênica. É autora dos livros de poesias Scarlet e o Branco (Multifoco: RJ, 2012) e Nem Pés e Mil Cabeças (Edição da Autora, 2014). Seu terceiro livro, Passo Meu Ex-Passo, está programado para ser lançado este ano. É responsável pela Mostra de Cinema e Audiovisual Cinecaos.
RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)
Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)
Editores:
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