Além da estrutura temporal, sublinho
outros traços que são próprios da escrita do Daniel, e do seu trabalho literário
em geral. O primeiro, é sua linguagem, que vai do poético ao narrativo, passando
pelo ensaístico, mas com velocidade e fluidez. O segundo, é no que se refere ao
trabalho com as fotografias que ele tirou, e inseriu ao longo do texto.
Assim, em uma primeira leitura,
a gente pode pensar numa estética de ficcionalização do eu, de quebra com a realidade
concreta, e reinvenção cronotrópica (isso é, na perspectiva do tempo e do lugar
do texto), igual acontece nos poemas da Ana Cristina Cesar. Dessa forma, o narrador
seria um eu-possível, que, ao mesmo tempo em que se ficcionaliza, revela sobre si
e sobre seu contexto, na medida em que seleciona as entradas de seus diários ou
os elementos contextuais sociais que formam a linguagem literária.
Porém, uma segunda leitura
mostra que isso até pode ser uma perspectiva da obra dele. Mas o mais provável é
que não seja, e que os planos estéticos e literários de Daniel sejam bem mais simples
que os de Ana Cristina. E por isso mesmo, sejam bem mais interessantes. Em outras
palavras, Daniel não parece estar querendo se desvencilhar da realidade extra-livro,
não está ficicionalizando um eu-possível; seu livro é uma série de entradas de diário
de Daniel Francoy andando por Ribeirão Preto e pensando coisas sobre a cidade, retomando
memórias, analisando seu espaço.
Essa simplicidade, essa quase-fórmula
de relatos de viagens, faz o livro ter uma força enorme, uma gama de construções
sobre a urbanização, a indústria cultural e de bens de consumo, uma série de análises
rápidas e precisas sobre algum nível da sociedade ocidental contemporânea: em outras
palavras, o que é um subúrbio. A própria
ideia de invenção entra, aqui. E o recurso de quebrar com a cronologia-calendário
é, precisamente, um elemento-chave pra isso.
Mudaram as estações, nada mudou: as datas
nos subúrbios
Quando eu digo que a quebra da
temporalidade, no livro de Daniel, é um elemento-chave para pensarmos no conceito
de subúrbio e invenção que ele coloca, o que quero dizer é que, no entendimento do
autor, o que presenciamos, em um subúrbio, é uma constante. Em que sentido? Vamos
pensar pelas entradas.
A primeira data é 01 de janeiro
de 2017; a segunda, 03 de janeiro de 2016; a terceira, 09 de janeiro de 2016; então,
surge 12 de fevereiro de 2015… E assim seguimos, entre 2013, eventualmente, e 2014,
2015, 2016, 2017, mas, sem seguir uma cronologia tradicional, isso é, Daniel separa
as entradas de janeiro em um capítulo chamado janeiro, e respeitando sequência numérica,
mas não a sequência cronológica. Dessa maneira, é possível acontecer, igual falei
aí em cima, 2017 vir antes de 2016 – o dia de 2017 é o dia 01 e o dia de 2016, o
dia 03, afinal.
O que isso significa em termos
de representação? No meu entender, significa que, na leitura de Daniel, a relevância
temporal em um subúrbio não está em um período anual, mas em um recorte mensal;
quando vemos esse ziguezague de anos, o recorte se aprofunda, e sugere que o acontecimento
de um dia em um ano, tem mais importância que aquele mesmo dia, em outro ano, mas,
como panorama geral do mês, é relevante por si só. Confuso? Vejamos no caso citado.
O livro começa com uma entrada
no dia 01 de janeiro de 2017, e nessa, o autor fica discorrendo sobre o calor, as
festas de família, um aspecto geral do que sejam os dias 01 de janeiro, naquele
lugar – o bairro Vila Tibério; uma frase-chave talvez seja: Como se todos estivéssemos submersos, conversando
debaixo da terra, esquecidos de uma terrível condição, comemorando o melancólico
dia dos vivos.
Então, na segunda entrada,
03 de janeiro de 2016, Daniel descreve um dia de chuva, compara o aspecto geral
de seu dia com a descrição da morte de Brás Cubas, e resume:
Um dia de chuva triste e constante, de garoa
peneirada sobre a nauseante doçura do tédio e das horas que se afirmam como uma
força nula.
O que esses trechos revelam?
São descrições de aspectos do bairro que, são comuns a todos os anos. São constantes,
todos os anos, mas, restritos àqueles meses específicos. Claro que o autor poderia
ter feito isso de uma forma mais linear, mas o que interessa para ele não é propriamente
a cronologia, mas a imagem acabada; assim, pensar uma cronologia em ziguezague reforça
o aspecto de constância daquele traço descrito em um dia específico, mas como algo
que ocorre todos os anos.
Se Daniel seguisse rigorosamente
o calendário, se ele fizesse um capítulo janeiro
de 2015, janeiro de 2016 etc., seu
discurso estético ia perder força – como assim? Ia parecer que ele estava restringindo
aquela imagem descrita apenas àquele ano e não a um elemento comum, àquele lugar,
naquela época – mas todos os anos.
Por isso, a partir do tempo,
a gente pode pensar o título, a invenção dos
subúrbios, já que é exatamente isso o que ele faz. Ele está criando uma imagem
do que venha a ser o seu subúrbio, Vila Tibério, através de recortes temporais desse
lugar. Em outras palavras, está associando adjetivos àquele lugar, naquela época
do ano.
Citei brevemente 3 entradas,
mas isso é a constante do livro. Todos os meses esse vai-e-volta dos anos, dentro
de um período mensal acontece. Em meses como junho/julho, quando acontecem olimpíadas
e a copa do mundo, ou outubro, quando acontecem as eleições, essa técnica de uma
retórica discursiva fica ainda mais aparente. Quero dizer, essa técnica de criação
de cenário (e, por que não?, de personagem, no caso a Vila Tibério) fica mais óbvia.
A Vila Tibério tem suas características próprias em cada mês do ano, e essas acontecem,
mais ou menos rigorosamente, todos os anos – essa é uma mensagem que o livro traz.
Um traço que a gente não
tocou ainda, mas que se torna extremamente evidente aqui, a partir dessa colocação,
é que o livro não tem enredo. Não é um diário
de viagem ou simplesmente diário.
Se fosse, o relato poderia
ser uma daquelas jornadas-do-herói, como são diários – biográficos ou literários
–, tais quais, Confissões de Agostinho, Os sofrimentos do Jovem Werther, As ligações perigosas etc., mas o caso é que Daniel não
passa por nenhuma transformação no sentido de transformação que os exemplos aqui citados pensam. Não há, também, um
enredo em um sentido tradicional, proppiano (acontecimento, problema, enfrentamento,
solução, etc.).
Não é, também, um relato
de viagem clássico, porque Daniel não é um viajante à Vila Tibério; ele não olha
o lugar como estrangeiro, e nem tenta ressaltar culturas diferenciadas, tradições
clássicas, lugares distantes e diferentes ou qualquer coisa desse tipo, que um relato
de viagem (como Cem dias entre o céu e o mar de Amyr
Klink, Ovelha negra, falcão cinza de Rebecca West e similares).
Para concluir a parte do
tempo, a proposta de Daniel, ao colocar um tempo oscilante, é então a de elencar
esses elementos comuns à um período. Criar uma imagem de um lugar ao longo de 12
meses. Efetivamente, inventar uma identidade
para o bairro e seus moradores, em alguma escala. Isso, nos leva à questão do estilo
do texto.
Se não é aguda, é crônica: a linguagem
No posfácio do livro de Daniel,
Guilherme Gontijo Flores, brilhante poeta e tradutor, foca mais na questão da linguagem.
E se ele faz isso tão bem, aqui cabe apenas que eu estabelecerei algumas considerações
mais rápidas. Como gênero, o livro se enquadra em algumas possibilidades, e a de
diário é a mais óbvia; entretanto, prosa poética, romance crônica, ou ensaios são
possibilidades. Mas, a ótima editoração de Marcelo Lotufo não coloca nenhum gênero
no índice para catálogo sistemático e, analisando o texto, entendemos as razões.
Por um lado, como vocês devem
ter notado na minha análise rápida das três primeiras entradas, o livro versa sobre
aspectos gerais do bairro Vila Tibério, em uma época específica do ano, mas que
é comum a todos os anos. Mais do que isso, Daniel está inventando esse subúrbio, no sentido de que esses acontecimentos são
analisados, às vezes, com certa crítica social, política e de tantas outras ordens
quanto possível. Por outro lado, há, também, diversos momentos em que o autor se
utiliza de prosa poética, como na entrada de 01 de janeiro, e, em outros tantos,
ele faz digressões a momentos de sua própria vida, e, por meio dessas, procura se
identificar com questões, histórias, imagens, memórias do bairro Vila Tibério.
Ou seja, a linguagem é um
amálgama de estilos e recursos de escrita literária que fazem o livro original,
e de difícil classificação. Como romance, poderia ser compreendido como a epopeia
do homem-comum, aqui citando o conceito já meio desgastado de Lukács, e esse é,
precisamente o teor de suas entradas – o dia-a-dia de um homem de classe média,
em suas reflexões sobre as transformações que o bairro passa, o significado de datas,
a descrição de cenas do cotidiano…
E não se esqueçam ainda que
eu falei acima, o livro não tem enredo proppiano. Não tem um conflito, um problema,
um clímax, uma solução. Muitos dos dias que Daniel narra são terrivelmente banais,
como ir ao mercado, tomar uma cerveja num botequim, fazer compras. É o exímio domínio
da linguagem e da capacidade de manipular o significado de símbolos do cotidiano,
que faz esses relatos saírem de sua posição de acontecimento banal e frívolo; o
exame minucioso do autor, a reinterpretação desses símbolos e cenas garantem ao
banal e ao cotidiano um caráter de sublimação, epifania.
Ao mesmo tempo, como Guilherme
fala no posfácio, dá pra pensarmos na questão da memória e das saudades. E isso
é algo extremamente presente nos relatos; Daniel está relembrando um tempo passado,
um lugar de segurança, porque lá ele já sabe como as coisas terminam, algo diferente
do presente-narrativo dele, que é uma constante transformação sem soluções aparentes,
sem respostas óbvias; ele está sentindo falta de uma cidade e de um bairro que está
se transformando.
Assim, diante de tantas possibilidades,
poderíamos pensar que são crônicas sobre a Vila Tibério. Algumas com 200 palavras,
algumas com 500, mas sempre crônicas. A crônica permite a liberdade estilística,
gramatical e temática, e Daniel, em seu grandioso domínio da linguagem, cria essas
crônicas e, para usar um mais-ou-menos chavão, recria o sentido de seu cotidiano,
seu bairro e sua vida.
E aqui, entramos na questão das
imagens.
Imagens substituindo mil palavras
Por fim, um aspecto que eu quero
lançar alguma luz, no livro de Daniel, é no que se refere às suas fotografias. Não
sei se são fotos profissionais, com que tipo de câmera, com ou sem filtro, e isso,
na verdade, não importa, porque aqui quero fazer uma leitura multissemiótica.
Os estilos das fotografias
são dos mais variados, e vão de fotos mais objetivas e bem focadas – como uma de
uma grande via pública (leitores de Ribeirão, me ajudem depois) – até outras bastante
subjetivas e poéticas – uma santa de gesso, com a cabeça decepada – e outras, que
parecem uma foto aleatória e amadora – dois orelhões com árvores no fundo, um cachorro
contra uma grade, com um letreiro de mercado, do outro lado da grande, são diversas
fotos, e descrever uma a uma mereceria um artigo todo, apenas para elas.
O que aqui eu quero ressaltar
são as relações entre as imagens e o texto, e talvez seja mio óbvio que colocar
elas ao longo do livro, sem qualquer explicação ou legenda seja, também, inventar algo sobre o subúrbio. Por um lado,
podemos pensar no aspecto da casualidade. São fotos que, a despeito de sua banalidade
na forma como foram produzidas, no contexto geral do livro, são elevadas a um status
de arte, porque recortam algum elemento ou traço identitário desse subúrbio.
O diálogo entre o texto e
a imagem é evidente quanto reconhecemos nas imagens, cenas descritas por Daniel,
ao longo do livro. Mas não sendo possível estabelecer uma relação direta, são linguagens
complementares. Dentro das lacunas de informação que a foto produz, entram os elementos
de subjetividade de Daniel escritor/fotógrafo, que recria o subúrbio, que pega o
banal da Vila Tibério e transforma esse banal em algo estético, poético, político,
social.
A foto da avenida pode ser
um complemento às entradas, quando Daniel comenta os avanços do comércio de rua,
ou da movimentação aos domingos, ou, sobre o ritmo da cidade depois de um feriado
ou em uma data especial – como também pode não ser nada disso, e sim, uma imagem
nova, uma interpretação nova, uma crônica nova que, apenas pela imagem, poderia
ter aquele significado.
Igualmente o caso da santa,
que pode vir a significar um traço de identidade religiosa na Vila Tibério, um traço
do descaso do poder público, do abandono social de alguns moradores ou ainda a decadência
do bairro. Pode ser um novo elemento da personalidade
do subúrbio, na medida em que representa o rompimento com uma tradição religiosa
ou estética, como pode ser um sinal de violência.
E assim, poderíamos falar
sobre as outras fotos e outras não citadas. O desfoque de algumas imagens, o excesso
de luz em outras, o excesso de precisão de algumas – tudo pode vir a ser um traço
de identidade desse subúrbio que Daniel inventa e não inventa, na medida em que
são recortes de uma realidade que existe, e recortes de um senso crítico e estético
de alguém do bairro.
Mas, é preciso que se faça
uma ressalva, porque as imagens se valem muito mais como leitura complementar do
texto, do que o contrário. Uma foto de um (provável) açougue com uma cabeça de boi
empalhada (p. 100), por exemplo, não é uma imagem que, por si, é bonita; trata-se
de algo simples, cotidiano e um tanto kitsch; é por base de uma leitura do texto
que nós interpretamos os valores implícitos em todos os elementos da foto – a cabeça,
uma geladeira do lado, cheia de notas fiscais, um santo na janela, uma pessoa ao
fundo, alheia ao olhar de fotografo. A própria interpretação do lugar enquanto um
açougue (apesar da balança em outro canto da imagem e das notas coladas na geladeira),
parte de algumas entradas do livro, que citam um açougue.
Como eu disse no começo,
não é um livro que é difícil de se elogiar e de reconhecer as qualidades, e esses
três pilares que eu coloquei aqui (cronologia em ziguezague, linguagem híbrida,
relações texto-imagem) atestam isso, e reforçam meu ponto. Sem interpretar eles,
um leitor já chega ao final maravilhado com as habilidades narrativas de Daniel,
sua capacidade de sustentar uma cena sem diálogos ou ações, seu olhar atento para
estetizar a banalidade do cotidiano comum. Outros elementos do livro, como os traços
afetivos apontados por Guilherme Gontijo Flores mereceriam algumas páginas, mas
isso, deixo para os próximos leitores.
Aqui procurei interpretar
e analisar os três aspectos que, primeiro, me chamara a atenção, e, lendo e discorrendo
sobre eles, entender um pouco mais o que significa e é a invenção de um subúrbio.
Se não atingi totalmente meus objetivos, fico feliz, porque um livro desse naipe
merece ser objeto de vários artigos. Esse foi apenas um deles, e é com expectativa
que espero outras pessoas inventando e reinventado A invenção dos subúrbios.
LUCAS GROSSO (São Paulo, 1990). Poeta, ensaísta. Formado em Letras pela PUC-SP, com Mestrado em Literatura pela mesma instituição. Concursado pela Prefeitura de São Paulo, já participou de revistas como Mallarmargens, Zunái, Subversa, 7faces e Toró. Atualmente, colabora para os portais Fazia Poesia e Revista Úrsula. É autor dos livros de poesia Nada (2019), Hinário Ateu (2020) e coautor de Terra dos papagaios (2021). Consolidando sua carreira literária, o poeta prepara a publicação de três novos livros.
RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)
Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)
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