quarta-feira, 30 de abril de 2025

LUIZ RENATO DE SOUZA PINTO | O ruído dos manifestos

 


1. A vida não é tão doce assim…

 

Tenho que confessar que nunca leio o prefácio de um livro; de certa forma irrita-me que alguém escreva sobre o que está escrito. O que irei fazer aqui é contar-vos a curta história de como conheci Frantz Fanon e sua obra Pele negra, máscaras brancas (Kilomba, 2023).

 

Pela urgência de uma educação antirracista: esta é uma palavra que deveria estar na ordem do dia de todos os espaços públicos do planeta. Caminhamos a passos largos para o abismo crescente do desrespeito às minorias e até mesmo a uma grande maioria de homens e mulheres trabalhadores em todo o mundo. O desequilíbrio de oportunidades só aprofunda o dilema e não se enxergam ainda mecanismos que catapultem as políticas públicas a fim de diminuir as desigualdades. “Sou uma recém-doutora em ciências humanas, uma pobre qualificada. Ostento meu título enquanto mantenho a desconfiança de que os garçons dos bares que frequento ganham mais do que eu”.

Evandro Cruz Silva lançou pela Editora Patuá neste ano o romance embranquecimento, obra que tematiza o cotidiano de inúmeras pessoas que sentem na pele o drama identitário, vizinho ao orgulho de um pertencimento valoroso como alguns podiuns olímpicos de Paris deixaram estampados na forma de alegria e orgulho imenso. Como professor, observo em minha unidade da rede federal de ensino a crescente democratização do acesso ao ensino, embora se perceba o quão distante ainda estamos da tal igualdade no campo das oportunidades.

Passei boa parte da minha vida acadêmica me perguntando “o que é ser preta” e sinto que nunca cheguei na certeza simples que imagino ter ocupado a cabeça de minha mãe quando ela olhava a palavra ‘parda’ no documento e desconsiderava, dizia para todo mundo: “minha filha é preta” (Silva, 2024).

Gosto muito do que Grada Kilomba diz acerca de prefácios de livros, normalmente de caráter encomiástico e ou laudatório, independente do gênero e capacidade intelectual de quem quer que seja. Também me agrada ser o primeiro a formar opinião sobre o que vou ler. Esse livro do Evandro, por exemplo, já sabia sobre a sua existência, até por acompanhar os lançamentos da editora, pela qual publiquei recentemente meu novo livro de poemas O que é do boi é do boi, homem não lambe. Comprei-o durante a Feira do Livro da Praça Charles Miller, em São Paulo, no último mês de julho e já o coloco entre os meus altamente recomendáveis.

Evandro é apontado pelo autor de Marrom e Amarelo, Paulo Scott, como alguém capaz de “formular perguntas incômodas e encarar a atual realidade” (texto de orelha). Ainda com Scott, lê-se que o livro é “Uma belíssima história sobre acolhimento, mas também sobre não se dobrar diante do banimento do futuro”. A protagonista da história busca fazer valer as oportunidades apreendidas desde os mais profundos laços familiares, como se percebe a seguir:

A camisa de meu pai costumava ficar encharcada de suor. O tecido grudava em sua pela avermelhada. Na manhã seguinte, suas roupas já estavam limpas, estendidas no varal. Aquilo me enervava, parecia uma infantilização para não lidar com a realidade. Hoje, vejo que trocar a roupa de um bêbado e lavá-las antes do início do dia era seu modo de editar a realidade, suportar o cotidiano. Minha mãe sempre entendeu o significado da expressão “levar a vida”, eu não.

Lembro com muito amor e carinho duas sobremesas que minha querida mãe fazia como ninguém; certa gelatina de côco (maravilhosa) e uma espécie de pavê com bolachas que, naqueles tempos, levava o nome de preto de alma branca (era a minha sobremesa favorita). O preto era do chocolate, o branco da bolacha, espalhada em camadas cobertas e recobertas pelo chocolate.

Demorei décadas para perceber como o embranquecimento tem nos induzido às vezes de maneira sutil, outras nem tanto assim. “Na sala de aula, as garotas brancas chegavam carregando ecobags com a frase ‘pele negra, máscaras brancas’, ilustrações de Angela Davis, o rosto de Carlos Marighella”.

Um livro é sempre um livro, e como tal, porta para descobertas incríveis que fazem de nossa vida um espetáculo diário da existência pura e simples.

 

2. Tradição e ou ruptura: quando a licença poética perturba

 

1 há um decênio que teu corpo é magma

2 – eruptivo, cobre a mim tão solo

3 e se me banha a tua lava em nada

4 torno-me rocha em que se vê o poro.

5 a toque rápido pulverizas mortos

6 e incendeias todo campo nu

7 e eu, como que preso a portos,

8 ponho-me à espera sob um céu azul.

9  ei-lo tão cinza enquanto te afastas

10 queimando gleba e povos por inteiro

11 a tanta gente teu calor abrasa

12 mas resta a mim afeto sob gelo.

 

Na linguagem há sempre ritmo, seja ela falada ou escrita, em prosa ou em verso. O ritmo na escrita só pode ser percebido visualmente, através de sua representação gráfica e simbólica. Mas a interpretação do simbolismo gráfico, quando da sua leitura em voz alta, desperta certos elementos de natureza essencialmente orais (como a altura, o timbre, o andamento), aclarando ainda mais a sensação do ritmo, pela entoação (Tavares, 2002).

 

A primeira referência que me vem, lendo este poema, é a de Fernando Pessoa, talvez o primeiro poeta que me tenha apresentado as trovas de quatro versos fora do ambiente pueril que conhecia desde as cantigas da infância. Se, por um lado a escolha me traz essa lembrança, por outro a distancia quando observo que não há palavra alguma iniciada por letras maiúsculas, como se observa. Falamos de outro Fernando: o Saves!

Há que se observar que o uso que se faz da quadra busca a mescla de elementos da tradição com sua ruptura, sobretudo pela imposição de uma forma tipicamente arcaica com uma metrificação mais ousada. Se as quadras originalmente remontam ao universo medieval, o uso dos decassílabos transcende a escolha. Ao invés da tradicional medida velha (redondilhas) aqui se lê a medida nova (decassílabos), por mais que uma tensão métrica possa se fazer presente.

Dos doze versos que compõem o poema, apenas um apresenta redondilha maior, exatamente o que o divide (número 7), iniciando uma segunda parte do texto. É sempre bom lembrar, a exemplo da utilização nos sonetos clássicos, “o quarto verso, tal como um fecho de ouro, encerra a conclusão do pensamento que se enuncia nos segmentos precedentes” (Moisés, 2004). Os sintagmas “torno-me”, “ponho-me” e “mas resta” comprovam tal assertiva.

O jogo entre o que me parece ativo e a passividade do eu-lírico frente a determinadas situações reforça o dialogismo imposto pelo discurso em meio às reflexões subjacentes. Por mais que a semântica discursiva se esforce para a busca de um significado mais efetivo, a variação entre os pronomes pessoais do caso reto e oblíquo dá conta desse destempero quando se discute aspectos ligados a um relacionamento.

Quando se pensa no que está à flor da pele e o que haja de mais profundo em qualquer ser humano, uma leitura como esta permite avançar na abstração do que há de concreto na escrita. Os substantivos “magma” e “lava”, da primeira estrofe, desdobrando-se sobre a rocha da qual se vê o poro exemplifica bem esse sentir-se próximo, prestes a se atingir outro estágio (erupção). A ação que prova esse caos se materializa no encontro consonantal (p/t) do segundo verso da primeira estrofe, após o travessão: e / ru / p / ti / vo/.

O fonema consonantal /p/ formado pela consoante bilabial, ao se avizinhar da linguodental /t/ produz um choque capaz de criar uma ruptura sonora, espécie de sinérese, pois ganha-se uma sílaba. Por sua vez, o substantivo “solo” mostra como o eu-lírico, passivamente, recebe esse tremor interno, a erupção vulcânica de outro corpo. O verbo “incendeias”, seguido na estrofe seguinte pelo gerúndio “queimando” dá sequência aos efeitos devastadores da metáfora sugerida.


A cesura existente em todo o poema divide os hemistíquios de precisão exata, o que denota certo equilíbrio e a tentação de se sair do controle pela ação do “magma”, da “lava”. Sendo os versos, quase em sua totalidade, isométricos, a quebra se dá no terceiro da segunda estrofe: “e eu, como que preso a portos,” – quando se vê o apego do eu-lírico a um estágio inicial. Pode-se imaginar certa resistência a qualquer tipo de mudança, mas também uma ideia de não se arredar pé de uma espécie de desejo, em que pese o significado do verso derradeiro: “mas resta a mim afeto sob o gelo”: fogo e gelo, dois substantivos fortes que provocam queimaduras. Destaque para a conjunção adversativa que justifica o contraste apresentado entre o eu-lírico e os (prováveis) sentimentos de seu objeto de desejo.

Transposto da poética camoniana o que era paradoxo em antítese, o eu-lírico anuncia certo contorno da tradição, por meio de uma transformação de sentidos típica do envolvimento emocional. Ou seria um maneirismo? O ritmo do poema causa estranhamento no leitor contemporâneo, sobretudo pela metrificação regular. A primeira estrofe apresenta quatro versos com tonicidade forte na quarta e décima sílaba, o que se repete na segunda, com exceção do terceiro verso em que as tônicas estão na primeira e na sétima sílaba. Na estrofe que encerra, os dois primeiros versos têm a quarta, sexta e décima sílabas tônicas ao passo de que os dois últimos voltam ao padrão (quarta e décima).

Ainda com respeito à análise rímica, todos os pares são de rimas alternadas, sendo que na primeira estrofe são ricas, toantes e graves, enquanto que na segunda são mais sofisticadas: rica, consoante e grave / pobre, toante e aguda. A última quadra – pobre, toante e grave / rica, toante e grave. O único verso em redondilha tem a seguinte divisão silábica: / e eu, / co / mo / que / pre / so a / por / (tos), em que se lê a divisão em sete sílabas, desde que se considere a elisão do tipo crase que inicia o verso.

Mas o que vem mesmo a ser o amor, tanto depois dos clássicos eternizados para a permanência patriarcal dos relacionamentos é essa capacidade de se transformar o que já parece petrificado (rocha) em algo capaz de se reinventar (céu azul), ainda que seja algo sobre o que não se tenha controle (tão cinza) mesmo sabendo que gera sentimentos desprezíveis (gelo).

O fato de os versos não serem isorrítmicos (o sétimo destoa, como demonstrado), não desqualifica o poema, pelo contrário, dá a ele o poder de questionar a frieza da construção, dando ao vernáculo a possibilidade de transformação. Neste caso específico, reside aí, em minha avaliação, essa grandeza. Confirmar os pressupostos ou questioná-los, sempre que possível, é a tarefa do poeta. Não se escreve com a régua, mas se usa a ferramenta a fim de se adiantar o compasso desejado.

 

3. De um a outro vértice qualquer

 

Meu Brasil está numa encruzilhada. É a própria. Quem vem da direita e quem vem da esquerda acabam sempre se pechando no mesmo lugar (Moreira, 2019).

 

O fenômeno da conurbação é mais comum do que a gente imagina, mas eu só me lembro de ter dado conta de sua existência quando morei na cidade de Barra do Garças, aqui no Mato Grosso, faixa territorial contígua à de Pontal do Araguaia, também no estado e a cidade de Aragarças, em Goiás. São três municípios atravessados por duas pontes, uma sobre o majestoso Araguaia e a outra sobre o Rio Garças.

Depois disso percebei que a cidade em que moro, Cuiabá, também partilha do mesmo conceito, uma vez que o rio homônimo divide os municípios de Cuiabá e Várzea Grande. Esse conceito importante da geografia urbana tem aplicação, portanto, em inúmeras regiões em que municípios limítrofes dividem um conjunto de bens materiais e imateriais na formatação de uma identidade cultural.

União da Vitória (PR) e Porto União (SC) é outro desses encontros, mas com a particularidade que, historicamente, celebram um evento extraordinário desse Brasil “moderno” que atende ao nome de Guerra do Contestado, evento bélico de proporções equivalentes ao massacre de Canudos, ocorrido entre os anos de 1912 a 1916.

Pela segunda vez em minha vida estive na região. Dentre as várias pessoas com as quais partilhei essa estadia está o escritor e professor universitário Caio Moreira, autor de, por exemplo, “Oriki daqui” e “Esquinas”, livros que me foram presenteados pelo autor na oportunidade. Mas o que seriam esses oriki, de que nunca tinha ouvido falar? “Os poemas de Oriki daqui são textos-oferenda” (Moreira, 2019).

Curiosamente entrei no mundo de um poeta-escritor-professor que manipula com esmero e cuidado a língua portuguesa, esculpindo na pedra bruta da palavra holografias metafóricas que são como pontos de luz em meio às trevas que envolvem o campo semântico como um todo. Sigo os rastros do autor, nessa espécie de passo a passo em que “Se partirmos do pressuposto de que um oriki não é um poema qualquer – que apenas versa sobre um determinado Orixá, rendendo-lhe culto e homenagem – mas uma ‘estância’ onde se guarda o axé, a questão da sua tradução passa a ser um problema”. Os poemas falam por si só desse lugar de memória e devoção.

 

OXUM

 

Fulgores flavos

Ou fulvos fulgores

São áureas luzes

Espelhadas de teu véu

Dourada e doce

És tu, dona d’água,

a flavescente fonte

Que reflete um sol no rio

Fazendo do rio um céu

 

Se a poesia, enquanto gênero, traduz o interior que via iluminando o caminho do leitor, sua prosa captada de maneira panóptica pelas “passagens” benjaminianas adaptadas ao seu lugar (físico) de fala tocam esses dois lados de um mesmo mundo que uma fronteira física não pode separar. Um pé no Paraná e outro em Santa Catarina reflete o cotidiano de inúmeras pessoas que palmilham esse território. E o que são essas esquinas descritas em uma espécie de paisagem sentimental e memorialística? “A gente nunca permanece por muito tempo numa esquina, pois ali se produz uma sensação incômoda, porque teoricamente é concebida para ser um lugar de passagem” (Scramin).

História e filosofia se fazem presentes no discurso nada homogêneo de seus cruzamentos, não bastassem as questões geográficas atinentes ao construto. “E outras, atravessadas pelas esquinas do discurso reflexivo, indicam que a literatura está no cruzamento da Rua Heráclito com a Rua Parmênides. Ali, onde o pensamento é pensado, nascendo numa esquina, como escreve Caio, leitor de César Aira” (Scramin). Aprendo com Caio que “Uma coisa não é nada sem a imagem que fazemos dela”.


E como se recuperasse a modernidade precoce de Machado de Assis em algumas palavras dispersas pelas esquinas da palavra me deparo com a imagem de que “Pagu, com um piparote, traduziu toda a filosofia matriarcal de Oswald de Andrade, quando em uma de suas páginas ilustradas, nua porque livre, escreveu para o homem: “vae ver si estou na esquina”.

Gosto de como Caio Moreira extrai do leitor uma inteligência nativa que repousa por entre as dobras. “O único jeito de não produzir a dobra é continuar andando em linha reta ou cessar a caminhada”. E vou caminhando entre a denotação e a conotação na busca incessante da decodificação sugerida. “O ensaio nasceria não do encontro do autor com um tema, mas de “dois temas entre si”. A esquina é esse diagrama”. Mas como se dá essa convergência entre dois pontos, dois polos, dois mundos? Simplesmente “As coisas se encontram, se esquinam”. Considero bastante inteligível a proposta desse livro. E a ideia de sua gênese me parece coroar a leitura com as palavras derradeiras: “Tudo isso fiquei sabendo frequentando uma biblioteca instalada entre a Coronel Rupp e a Max Metzler. Mais não digo!” (Moreira).

 

4. A leitura faz a diferença na vida de qualquer pessoa

Aprendi com Ana Elisa Ribeiro que é da janela que se vê o vento, a chuva, o ruído da rua; que o amor pode viver boiando morto na piscina de água (quase) limpa; que os calendários e corredores servem como marcadores de tempo e espaço; que a conjugação de individualidades pode, sim, ser definida com mais otimismo; que as crias, tão diferentes em suas especificidades; que redefinir sempre é mais fácil do que resolver; que escaleras não guardam marcas de arrependimento; que o silêncio de Paris, por exemplo, deve ser igual ao daqui; que a paixão é palavra efêmera, graças a Deus; que dentre outras imprecisões, plantam-se saudades na forma de tentativas de definição e que já existem em outros dicionários, esses volumes que não dão conta de tanta imprecisão.

No final de 2021 escrevi para ela depois de ler seu livro de crônicas, lançado à época, e reproduzo aqui, no momento em que torço muito para que seja a vencedora do Jabuti na categoria infanto-juvenil, com sua tragicomédia shakespereana. Ana Elisa em sua dedicatória para mim deixa transparecer a ideia de que conheço melhor do que ninguém sobre essas insanidades, e eu fico a pensar de que ela está falando? Da escrita, do tempo, da memória, dos tipos de educação a que nos submetemos? Ou mesmo de amor e seus quiprocós? (finjo que não sei que é para iniciar o escrito).

Leio seu livro e vou deglutindo as palavras enquanto alinhavo o que leio do volume; começo a misturar os assuntos das crônicas propositalmente. “Se você escreve para si, para resolver um contentamento seu, saberá sobreviver. O resto será uma partida de… truco. Meio na sorte, meio no grito e com muito blefe”. Este fragmento sugere certo conselho aos escritores do momento. E ela os provoca logo nos primeiros textos que abrem o volume.

“Pra que serve tanta informação, tanto relatório, tanto número, tanto texto? Pra tomar decisões. É pra isso que serve saber isto e aquilo. E, mesmo assim, não há garantias sobre perfeição, acerto e precisão”.. Garantias não há mesmo, para nada. E as reflexões sobre o universo escolar vazam sentidos similares: “Lastimo dizer, mas os horizontes da escola não irão além dos currículos preestabelecidos, parados em 1945. Não dá para fazer muito sem o empreendimento, sem rasgar novos horizontes à força de muita curiosidade e investigação”.

Mas nem por isso, leitores, seus cabelos brancos, e ela os têm, podem ser apontados como depreciação estética. Ao refletir sobre eles traz os nomes de Angela Lago e Adélia Prado, grisalhas com muito orgulho e vivências acumuladas. Lago e Prado, sobrenomes imitativos da natureza. Na primeira um espelho d’água e na conterrânea, o verdor que amplia os horizontes do infindável, metáfora de campo e mesmo de jardim, que, como sublinha Ana Elisa, “também é edição, diagramação e design”.

E o que dizer das gírias, véi? E esses nomes de autores que já morreram e ainda ocupam espaço nas salas de aula? E os que ainda vivem, mas são desconhecidos de seus próprios contemporâneos? E o discurso da escola diante da mutabilidade da vida moderna, como reverberam os encontros de pais, em que quase aparecem somente mães? “Não pode chegar atrasado, tem de usar uniforme completo, o banho de sol dura 15 minutos, lanche saudável e as demais orientações do regime semiaberto”.

A última parte do livro é a que produz maior encantamento no leitor, seguramente, embora misture amor e morte, o que por si só garantiria muito quiproquó. Mas lá encontro um questionamento louvável: “Quando é que acontecem os beijos surdos?”. E me descubro também em uma de suas revelações que “A gente ser quem é, com o tempo, vai se tornando um grave defeito”.

Também já estive a passear pela rambla, primeiro acompanhado, da segunda vez solito. Naquele tempo ainda bebia e almoçava diariamente com a presença de um tannat dos bons, acompanhando uma pasta ou um pescado. É verdade que nunca ouvimos tanto falar sobre a morte quanto ultimamente. Penso também em ser cremado um dia. Mas já temos duas covas em um condomínio fechado. Em uma delas repousam pai e mãe e na outra a avó materna jazz sozinha, como a esperar por alguém para lhe fazer companhia. Há três vagas em cada uma e ainda temos outras três a serem preenchidas.

Ana escreve sobre seus desejos pós-mortem, como fala do planejamento da mãe para esse dia que virá. Pareço ouvir de sues lábios que os locais em que gostaria de ter as cinzas espalhadas seriam ambientes que costuma frequentar, o que me parece simpático, legítimo, possível, mas ao mesmo tempo ela mesma diz que “não é toda livraria que vai aceitar uma coisa dessas. Nem todo restaurante, nem toda padaria”. Devo concordar com a reflexão proposta. Busco na lembrança a existência de alguns desses beijos surdos, das boas coisas que a memória faz questão de guardar.

 

5. O alto da colina

 

…ninguém é verdadeiro na lucidez. Ninguém. Nem mesmo a mãe de vocês.

TATIANA SALEM LEVY

 


A literatura projeta em cada um, abismos especiais; assim foi; assim é. Uma mulher sai para caminhar em direção à Vista Chinesa. Ela mora no Jardim Botânico, é o que se lê no Termo de Declaração expresso do dia 24 de agosto de 2014, lavrado às 16h21min. Ela se declara branca, solteira e nascida em sete de abril de 1981, conforme se lê nos autos literários:

 

A declarante ressalta, ainda, que quer retomar sua vida e não quer mais se defrontar com a necessidade de ter que participar de procedimento de reconhecimento de pessoa, por fotografia ou pessoalmente; pessoa, sobre a qual, devido ao estresse vivido no momento do crime, não consegue ter certeza plena de ser o verdadeiro autor do fato. E mais não disse. Nada mais havendo, mandou a Autoridade Policial encerrar o presente Termo que, lido e achado conforme, assina como Vítima.

 

A violência no Rio de Janeiro é expressa pela consumação do estupro em uma tarde ensolarada rumo à Vista Chinesa. Ela, uma arquiteta que trabalhava na construção nas obras do complexo esportivo construído para os jogos olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. Uma mulher independente, com muitos projetos a realizar. Ele, um homem sem rosto, cuja face nebulosa confunde a tentativa de reconstruir, via retrato falado, seu semblante. Ela, sentindo-se inutilizada, roubada de seu próprio corpo. Ele, com par de luvas não se sabe a cor, para não deixar impressões digitais durante o ato criminoso. Corria o ano dos Jogos Olímpicos realizados na cidade ma-ra-vi-lho-sa (!).

 

Nos primeiros três anos de análise, eu quase não falava, às vezes entrava muda e saia muda, às vezes irrompia no meio da sessão, vou embora, às vezes queria desistir, pagar para ficar muda não faz sentido, aquele silêncio, uma de costa para a outra, falar o quê, falar para quê, falar como se eu estivesse sozinha mas com uma sombra atrás de mim, uma sombra que de vez em quando pontuaria a minha fala, pegaria uma frase, uma palavra, ela se interessava pelo que estava fora do lugar e fazia espirais em torno, outro caminho a partir da pedra no meio do caminho, e só depois de três anos eu comecei a falar, e aí não parei mais, eu entrava falando, saía falando, eu queria sessões extras, aquelas me pareciam poucas, queria passar vinte e quatro horas falando com a Márcia, e de repente ela havia me ligado, foi ideia dela vir até a minha casa para me ouvir, ela estava lá, sentada na minha poltrona, e eu não conseguia falar, eu não queria falar.

 

A dificuldade de se reconstituir o momento reflete o trauma. Lembro-me do que dizia Saramago: se quer enxergar a ilha, tem que sair da ilha. Sair do trauma é fundamental para enxergar o acontecido, mas como? As imagens vão sendo reconstituídas aos poucos. Reescrever, ou mesmo reconstruir um momento traumático é reviver o trauma, dor que só mesmo quem passa pode dimensionar. Cada detalhe nesse mosaico perigoso do reencontro com o fato. Como a lembrança do colar arrancado pelo agressor. Somente a viagem ao México vai resolver a lembrança de sua avó.

 

No vilarejo, nos deparamos com uma loja de máscaras, então eu pensei, não pode ser coincidência, antes de lembrar que sempre que descubro alguma coisa ela torna a acontecer. Entramos. Havia tudo quanto é tipo de máscara: rostos meio humanos, meio monstruosos, meio simiescos, meio diabólicos, extremamente coloridos, um sorriso escancarado e sarcástico, a boca bem aberta, os dentes à mostra, como se rissem da nossa cara, da cara de quem as vê, como se rissem da humanidade toda, da nossa humanidade, da nossa pequenez, da nossa prepotência, do nosso terror da morte, da nossa incapacidade diante do inevitável, do acaso, um riso de deboche, um riso dos deuses, um riso sobre-humano, fascinante, sedutor e repulsivo ao mesmo tempo, um riso que você não quer ver mas para o qual não consegue parar de olhar, um riso que você não esquece.

 

Lembro-me que, aos dezesseis anos de idade assisti, em 1978, ao filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. Com bolinhas nas genitálias, depois sem o artifício. Os jovens saíam com máscaras a praticar crimes. A coloração alaranjada referendava o caráter lisérgico da mescalina. O uso de máscaras pelas personagens do romance, Julia e Michel, em seus jogos eróticos, sua estada no México, onde ela vai enterrar o colar promove uma situação de conforto para a personagem, incapaz de usar novamente aquela joia.

Penso no livro, em sua estrutura. São duas partes. Como se fossem introdução e desenvolvimento, mas e o fim? Ou introdução e fim, mas não seria todo o processo de análise o desenvolvimento, a busca de si mesma, o resgate mais do que a memória, mas do próprio corpo, exumado de si? Pareço estar diante de três planos: o passado, infância da protagonista, basilar para a reconstituição do próprio ser; o futuro próximo, que, em busca do passado acontece na viagem ao México – o colar é sintomático disso. E o presente, o tempo do ocorrido. A passagem de um para outro se dá com simples espaços que atiram o texto de um a outro plano sem maiores separações. O deslizamento de terra na estrada Dona Castorina, por conta daquela chuva

 

que por sua vez encharca o solo, arrastando tudo, as plantas, os animais, os objetos ali deixados, a clareira, arrastando o homem, o rosto do homem, a lembrança do rosto do homem, e de repente penso que de dentro da terra surgirão as violências sofridas naquela terra, as violências sofridas por aquela terra; com a água, a lama e as árvores, deslizarão também a dores, os ossos, os pedaços de carne dali arrancados, arrastando as histórias, a memória, enquanto sirenes de bombeiro invadem o meu ouvido, e digo a mim mesma que a salvação virá da terra ou não virá, a floresta invadindo e devorando a cidade, a mata comendo o asfalto, a salvação para o Rio de Janeiro é, sempre foi, sempre será, a sua própria morte.

 

Ela queria apenas fazer a caminhada antes da reunião de trabalho. Ela queria apenas continuar sendo a dona do próprio corpo. Ela queria, deixou de querer, mas depois voltou com tudo, como a força daquelas águas, daquela bendita chuva. Tatiana Salem Levy precisa ser lida urgentemente, relida, necessariamente, difundida pela força das palavras que traduzem a condição humana.

 

6. Juntando uns cacos!

O camarada entrou no busum pela porta da frente, jogou fora uma conversa de que a família estava passando necessidades, que havia sido assaltado na rodoviária, que levaram a bolsa da esposa e que os filhos passavam por um apuro danado. Em minha cabeça ela chorava pelos cantos e os filhos com o nariz escorrendo, andavam esfomeados atrás de alimento. Qualquer cachorro abandonado seria mais feliz do que aquele.

Sacou rapidamente vinte “pila” da carteira e indagou sobre a situação em que estavam. Não haveria ainda se dirigido à assistência social do município? As respostas do cidadão estavam na ponta da língua e, por ser final de semana, passaram a ser mais convincentes suas contra-argumentações. Eis que a senhora da frente também lhe estendeu algum trocado, ao passo que eu ignorava o movimento; talvez pela eterna desconfiança de quem já passou fome e nunca precisou daquele expediente pra arrumar um prato de comida. Longe de mim qualquer juízo de valor.

Aquele “pila” me projetava aos tempos de Rio Grande do Sul, das noitadas na Cidade Baixa, das leituras na biblioteca da Casa de Cultura Mário Quintana, dos passeios pelo brique e a feirinha ecológica do Bonfim. O Bar do João, o pôr-do-sol no Escaler, Bar do Beto na Venâncio Aires, primeiro na esquina, depois do outro lado, no meio da quadra. O Van Gogh, Báh! Capaz que aquilo daria em alguma coisa. O motorista avisa que teria sido golpe, a consciência de que se ajudou a quem precisava passou a representar uma tranquilidade pela consciência de amor ao próximo, independente da natureza do obséquio.

A viagem seguiu tranquila enquanto a conversa se aproximou mais de experimentos anteriores. Puxando da memória uma história atrás de outra a gente se divertiu com aquela caceteação toda. Hoje recebi a visita daquela senhora, enquanto me recupero de uma intervenção cirúrgica, há verdadeiramente males que vêm para o bem.

Volta e meia caio em algum desses golpes. Lá fora o sol está bem quentinho, nem parece que neste exato momento muita gente não tenha almoçado. Eu, privilegiado como sou, penso no lanche da tarde. Acho que vou comprar um bolo para o café, mesmo sem tomar o pretinho básico por conta da gastrite.

 

Alguma coisa no caminho

 

Os caminhos se cruzam – eternos vai-e-vem. A maldição dos vinte e sete engoliu muitos astros e estrelas da cultura pop/rock. Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Kurt Cobain e Amy Whinehouse são alguns deles. Peço a uma garota que me indique uma música de que gosta muito e ela o fez; trouxe a mim o Nirvana em seu lamento estilo cool em que se lê (em tradução no youtube):

 

Debaixo da ponte

a lona abriu um vazamento

e os animais que eu capturei

todos se tornaram meus bichos de estimação

e eu estou vivendo só de grama

e o teto está gotejando

e tudo bem em comer peixe

porque eles não têm nenhum sentimento

alguma coisa no caminho

 

Dizem alguns coaches da moda que uns constroem pontes enquanto outros constroem muros, certo? Mas ao construirmos pontes esquecemos que os não atingidos pelas demandas, os desconsiderados, menos afortunados ou qualquer outra denominação muitas vezes acabam habitando essas brechas. “Debaixo da ponte” é uma expressão que, de uma forma ou de outra, se encaixa nessa perspectiva. O furo no teto indica o grau de despertencimento social.

É de se reparar que o terceiro verso se inicia com a conjunção aditiva “e”, sugestão que induz o leitor/ouvinte a pensar que no entorno do habitat são capturados animais de várias naturezas “todos se tornaram meus bichos de estimação”. Reparem que a mesma conjunção aparece nos três versos seguintes, ou seja, são quatro inserções do “e” em um conjunto de nove versos.

Essa conjunção é utilizada para se adicionar elementos que em conjunto enformam determinado discurso. Neste caso, a relação íntima de um “eu-lírico” com os animais. A relação de simbiose atinge seu clímax no verso cinco “e eu estou vivendo só de grama”, o que induz o leitor/ouvinte à ideia de que esse ser humano tratado como animal incorpora os instintos mais primitivos, e nem por isso torna-se cruel, ou desumano.

A afirmação anterior se fortalece com os versos sete e oito, se não vejamos: “e tudo bem em comer peixe / porque eles não têm nenhum sentimento”. O fato de o teto estar gotejando demonstra que, mesmo estando abaixo da ponte, teoricamente protegido da chuva, por exemplo, esse vivente ainda vê gotejar sobre a sua cabeça, o que deixa clara a falta de proteção do ambiente.

O clássico do Nirvana parece antecipar algum tipo de desconforto com a sociedade de classes, com o mandonismo dos poderosos, com a falta de fraternidade entre os iguais. “Alguma coisa no caminho” de cada um de nós percebe?

 

 

REFERÊNCIAS

LEVY, Tatiana Salem. Vista Chinesa. São Paulo: Todavia, 2021.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

MOREIRA, Caio. Avenidas. Joinville, SC: Micronotas, 2020.

___. Oriki daqui. Curitiba: Medusa, 2019.

RIBEIRO, Ana Elisa. Doida pra escrever. Crônicas. Belo Horizonte: Moinhos, 2021.

SCRAMIN, Susana. Prefácio. In: Avenidas. Joinville, SC: Micronotas, 2020.

SILVA, Evandro Cruz. O embranquecimento. São Paulo: Patuá, 2024.

TAVARES, Hênio. Teoria Literária. 12ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.

 


LUIZ RENATO DE SOUZA PINTO
. Graduado em Letras-Literatura (UFMT), atua na docência desde 1998; Mestrado em História (UFMT) e o Doutorado em Leras (UNESP). Atualmente trabalha com Ensino Médio e Superior (Graduação e Pós-Graduação) no IFMT. Desenvolve oficinas de Escrita Criativa (em verso e prosa); Poesia e Filosofia; Letra e Imagem; Narrativas Curtas; Estruturas de Romance; Literatura e Outras Artes. Possui três romances publicados: Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Xibio (2018), Cardápio Poético (1993) e Gênero, Número, Graal (2017) livros de poemas. Autor também de Duplo Sentido (contos e crônicas), A filha da Outra (2020) – novela; Cabeça, Tronco, Membros – ensaios sobre os caminhos da palavra (2021) – ensaios; A gaveta, o lápis, o papel (2022) – novela; e O que é do boi homem não lambe (2023) – poemas. Reflete acerca da construção de personagens, enredos, espaços e tempos, mas, sobretudo, sobre a posição do foco narrativo, os olhares sobre as personagens e as coisas, o entorno.




RAQUEL GAIO (Brasil, 1981). Poeta e fotógrafa. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia Das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), Manchar a memória do fogo (2019) e Com as patas no grande hematoma (2023). Artista convidada desta edição de Agulha Revista de Cultura.





 


Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 03 – REVISTA RUÍDO MANIFESTO (BRASIL)

Artista convidada: Raquel Gaio (Brasil, 1981)

Editores:

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