Cecília Meireles, Maria Lúcia
Dal Farra e Leila Ferraz. Um dia na morada imprevisível de cada uma delas. O
que me deram de loucura e imprudência, naquela esfera mágica em que os sentidos
são uma revelação não apenas da harmonia correspondente como também da voltagem
inesgotável do paradoxo. O ato de estar o mais possível fora de si acaba por
equivaler à entrada em uma metafísica do ser. Assim como as fábulas expõem os
ramos de nossa precaução ou benevolência, por vezes uma má assimilação do
desejo arromba a nossa compreensão de seus algoritmos como uma manada de
búfalos rompendo as carnes suadas do tempo e as receitas indescritíveis dos
elixires da imortalidade. Era isto? O poema, ao final, era para ser apenas
isto? Nos levar de volta a um estágio que vivemos a perder e encontrar? Pois
com essas três mulheres eu aprendi a não empacotar jamais a alma para viagem alguma.
Elas são como as enamoradas de um eremita, a linha que traço entre o que
escrevo e o que elas de algum modo vão me revelando escada após escada de nosso
percurso. Quando converso com duas delas, sinto a presença da outra, e quis de
algum modo lhes indagar se acaso eu não estava vendo fantasmas nessas pontes
pênseis que arriscamos erguer entre os mundos. O olhar equivale ao que é visto.
A tempestade no mar talvez inexista antes de nosso olhar. A profundeza de um
vão, de um miolo vazio, a ausência de alma em quem nos ameaça, cada uma dessas
mulheres me despertou um abismo distinto, a sombra caudal de um abismo único, o
olho que observa além da matéria provável, a mais profunda ausência de Deus
onde a personalidade de quem sonha ergue a cidade de mil olhares.
Em cada uma delas aprendi que
nenhuma ortodoxia nos satisfaz e que o valor sagrado da existência da criação
nessas mulheres não se limita a uma igreja, a um culto apocalíptico da criação,
mas antes ao princípio da metamorfose como o símbolo revelador da identidade.
Graças a elas aprendo que o que sou é o que somos. Se as reúno aqui neste
ensaio significa que as portas possuem uma tradição copiosa de expectativas
quanto ao que se encontra dentro e fora de seu domínio. Talvez conversando um
pouco sobre a linhagem de nossos anseios e devassidões, seja possível perceber
que elas excedem a condição de deuses que defendem, cada um, um estágio da
imaginação. Quem são elas? Transcendências, alumbramentos, transmutações.
Talvez estejam aí as chaves para adentrar a poética de cada uma. Cecília
refulge com um lirismo que refaz as visões do sonho e da vigília, impregna a
realidade de uma fina contemplação que permite ao leitor acompanhá-la em uma
viagem que a cada passo revela os enigmas da alma universal. Maria Lúcia
reconhece em si uma passagem silenciosa e vária para o mundo das palavras,
tanto lhe atrai, a ela mesma, abrir as
palavras, sondar seu espírito errante, e de maneira tão cativante nos diz
que a natureza de seu alumbramento não é senão a luz expansiva e desigual que o
outro lhe direciona, intencionalmente ou não. Leila alimenta seus verbos com o
esplendor e a volúpia de um caminho que percorre pelos dois mundos da carne,
sua vida física e os desafios prazerosos do desejo. Ela mesma revela que cria com as palmas das mãos viradas para o céu,
prontas para receberem essas dádivas do inconsciente. Não é outro o sentido
de sua transmutação, a descoberta de uma coisa em outra.
Sob o signo desses portais
anunciados eu me sinto à vontade para fazer reverências a essas três vozes que
me acompanham muito além de todas as leis físicas. Não importa a graça
alcançada de haver escrito a quatro mãos com Leila e Maria Lúcia, ou as linhas
psicografadas que me foram enviadas por Cecília. Tudo isto nos propiciou uma
grande intimidade. Simbolismo, expressionismo, surrealismo. Tampouco essas aves
com seus voos singulares, as imagens sugestivas de tempo e espaço, seus rasgos
reflexivos, nada disso, sempre as senti a favor de um sonho maior, considerando
chamado e pronúncia de seus desafios, a cordilheira repleta de grutas que se
descortinava à minha frente, de algum modo recordei agora o que disse Manuel
Bandeira a Mário de Andrade quando este lhe desacreditou por haver afirmado
escrever de um jato só um poema em impecável correção formal. Bandeira então
lhe disse que a forma é uma consequência natural da entrega à criação. Não é
uma obsessão ou uma imposição de sentido. Isto é tão bonito de ler, e essas
três mulheres o sabem. São impecáveis em sua entrega à própria existência, da qual
a criação é uma raiz essencial.
Começamos por Cecília? Na
última entrevista que ela deu, ao jornalista Pedro Bloch, nos revela uma
adorável curiosidade: Uma das coisas que mais me encantavam em minha vida
de infância era o eco que vivia em casa de minha avó. Eu vivia procurando o meu
eco. Mas tinha vergonha de perguntar. Recolhida, tímida, deslumbrada, me
debruçava no mistério das palavras e do mundo. Queria saber, mas tinha imenso
pudor de confessar minha ignorância. A imagem de alguém à procura do próprio eco retrata a poesia em seu
auge de esplendor. Gladys Mendía, tradutora/editora mais recente de Cecília ao
espanhol, observa: Por meio de uma expressão
poética rica e simbólica, Meireles explora a interconexão de todas as coisas e
a natureza efêmera da existência humana. Seu chamado para renunciar às divisões
artificiais e abraçar uma identidade expansiva e eterna oferece uma visão
reconfortante e unificadora que desafia as preocupações mundanas e temporais. Se atentamos para as
variações temáticas de alguns de seus livros, é impossível não perceber que se
trata de uma mesma lente que sonda minuciosamente as alterações de humor do
mundo, a exiguidade da alma humana, a natureza mutante até mesmo da percepção
acerca desses planos físicos e materiais. Cecília tinha um olho carismático,
que dava o prestígio certo a cada coisa observada. Quando conversei sobre ela
com Leila Ferraz, me revelou uma proximidade mais ligada a vestígios ou
suspeitas do que propriamente ao ambiente estético. Me disse: Meu corpo é de palavras e minha boca beija
cada uma delas quando as pronuncio. Talvez Cecília Meirelles tivesse essa
sensação, também, porque ao ler seus poemas, principalmente os poemas, é o que
me toca a pele e o coração, criando imagens belíssimas em minha cabeça. Essa
irradiação da beleza a golpes de uma simplicidade da revelação.
Quando Gladys Mendía me pediu
para escrever umas breves palavras para constar em sua tradução de Cânticos, de Cecília, eis o que a
memória me revelou:
A noite a
encontramos na poesia de Cecília Meireles como um cântaro de horizontes, as
folhas inúmeras de uma árvore-mãe, aquela que estende seus galhos por todo o
espírito humano. A noite e sua conexão com a eternidade que a poeta sabe amar
e, através dela, nos cativar com sua imagem reveladora de caminhos que sequer
havíamos imaginado. É tão bonito quando ela nos diz que o espírito desfaz o
efêmero, que a retidão nos impede de extirparmos porções do mar. Tudo em sua
poesia faz da violência um paradoxo, quando ela é arbitrária e tirana, e não uma
força natural da existência. O verbo em Cecília toca Deus como um silêncio que
nos percorre a extensão inumerável de todos os sentidos. Graças a este contato
abissal que ela põe em tudo é possível nos sugerir trocar o curto sonho humano pelo sonho imortal, como um presságio de que a
vida se multiplica não lá fora, mas sim em nosso íntimo. Assim eu sempre
compreendi a ideia de eternidade que esta perene senhora dos ritmos evoca em
tua poesia, mesmo quando corre o risco de dissipação ou dilaceração naqueles
momentos em que retrata o social ou o folclórico. Talvez tenha sido fruto de
seu impulso pela descoberta de uma brasileira que a tenha levado a avançar pelo
território de tais temas sem nada temer. E nisto não esteve sozinha em sua
geração modernista. Tampouco perdeu a dimensão de seu voo, a dimensão poética
que alcançou em sua voz singularíssima, o que nos dá prova o salto profundo dos
salmos deste livro que tão belamente traduz agora para o espanhol a venezuelana
Gladys Mendía.
Outro dia, ao conversar com
Maria Lúcia Dal Farra, situamos aquele frágil mundo das influências literárias,
sugerimos autores de importância para um e outro. Mas quando dei pela ausência
de Cecília ela me disse:
Admiro imenso a Gilka, a Lupe Cotrim Garaude, a
Adalgisa Lery, a Francisca Júlia, mas a Cecília é hors
concours: não conheço nenhuma poetisa
como ela, com esse nível de perfeição no sugerir, no transcender os territórios
sobre os quais se ocupa, na delicadeza de sensibilidade, na discrição, na
feminilidade profunda do olhar na apreensão do mundo; no tipo de filtro
espiritual e místico que utiliza para pensar a vida e senti-la; na destreza dos
versos, no primor da escrita e não sei dizer mais em quantas outras tantas
qualidades, demasiadas, para além do seu pendor pelo Oriente e pelas práticas
religiosas (com laivos esotéricos) de lá.
Tenho diversos ensaios sobre a sua poesia, que me
encanta loucamente, também por causa da ascendência portuguesa.
Ela foi criada e educada por sua avó, que era dos
Açores, e que lhe legou toda uma sabedoria dos seus hábitos de então, da sua
cultura diferenciada: uma postura mística, uma finesse de espírito impressionante, uma atenção ao
banal. E isso, para além da empregada Pedrina, que sempre a assombrou com as
histórias do nosso folclore! E por causa da sua coragem ímpar – uma estoica! –
não só na escrita, mas também na sua vida difícil e muito machucada por perdas
e injustiças.
No cenário literário brasileiro (e olha que no
português, o Gaspar Simões, que era muito invocado e meio intratável, a
enaltece sobremaneira! além de muitos outros críticos portugueses de então!),
creio que ela é a matriz da poesia feminina – muito embora (e friso isso muito
bem!) ela raramente (muito raramente mesmo) se expusesse claramente como mulher,
no sentido de gênero.
Mas esse fundamento está por tudo quanto escreveu,
e eu sempre me remeto àquele longo poema dela, de 1956, o “Prisão”, e que
pertence aos seus Dispersos, e
que termina, depois de multiplicar geometricamente de uma para quatro e, assim
por diante, o número de mulheres presas no mundo:
Quatro mil mulheres, no cárcere,
e quatro milhões – e já nem sei a conta,
em cidades que não se dizem,
em lugares que ninguém sabe,
estão presas, estão para sempre
- sem janela e sem esperança,
umas voltadas para o presente,
outras para o passado, e as outras
para o futuro, e o resto – o resto,
sem futuro, passado ou presente,
presas em prisão giratória,
presas em delírio, na sombra,
presas por outros e por si mesmas,
tão presas que ninguém as solta,
e nem o rubro galo do sol
nem a andorinha azul da lua
podem levar qualquer recado
à prisão por onde as mulheres
se convertem em sal e muro.
Talvez tenha sido, no seu tempo, a mais
intelectualizada das poetas brasileiras, a mais estudiosa e aplicada, digamos
assim. Não esquecer que também foi educadora e professora; conferencista que
viajou mundo afora.
Seu primeiro marido, o artista plástico Fernando
Correia Dias, foi ilustrador da Águia, revista
que antecede o Orpheu, e que já
traz a marca modernista e a presença de Pessoa. Cecília era amiga de Armando
Côrtes-Rodrigues (que foi a Violante de Cysneiros do primeiro Orpheu), também açoriano como sua
avó, com quem carteou permanentemente durante 28 anos: nada mais nada menos que
246 peças!
Como se vê ela foi ligada ao modernismo português,
tendo convivido com Ronald de Carvalho, o represente do Orpheu no Brasil, sem falar de outros escritores portugueses
seus admiradores, como o sogro do Murilo Mendes, o Jaime Cortesão e tantos
outros. Ela é a primeira aqui no Brasil a trazer o Pessoa em antologia
preparada por suas mãos.
E há mesmo aquele célebre caso do seu programado
encontro com o Pessoa, que lhe rendeu – com dedicatória! – um dos primeiros
volumes publicados do Mensagem – mas que, infelizmente, não lhes permitiu
reunirem-se, porque o horóscopo do Pessoa o aconselhara a não comparecer à
Brasileira, onde ela o aguardava – em vão!
A Cecília é, para a minha poética, uma
estrela-guia.
São considerações que valem uma vida. Talvez as
novas gerações de poetas no Brasil desconheçam a poesia de Cecília Meirelles, o
que é uma infâmia. Cabe ainda lembrar o que afirma Gladys Mendía na edição de Cânticos: Os versos sugerem uma busca pela transcendência e uma dissolução das
barreiras convencionais do eu e do tempo. Meireles explora a futilidade das
divisões impostas pelo homem, como a separação entre a terra e o céu, ou a
ideia de pertencimento a uma pátria. Em vez disso, ela nos convida a adotar uma
perspectiva expansiva, ilimitada no tempo e no espaço, refletindo uma unidade
com tudo o que existe. São modos deliciosos, carinhosos, de tocar a poesia
de quem tinha, segundo ela mesmo, por vício
maior amar as pessoas. É o que sinto, em especial, até hoje quando a leio. Este
encontro ao mesmo tempo estranho e vital, entre duas almas que não se
conheceram. Pela amizade tão entranhável que tenho com as duas outras, Maria
Lúcia Dal Farra e Leila Ferraz, é uma triangulação mágica essa que nos une a
Cecília Meirelles.
Não à toa pensei nelas três ao me propor o desafio
deste ensaio. As chaves são recordadas: transcendências, alumbramentos, transmutações. Meu
primeiro encontro com Maria Lúcia Dal Farra se deu naquele cenário infernal da
fronteira entre México e Estados Unidos. Até hoje não entendo bem o que nos
reservou o destino ao definir aquela terra assustadora e quente como o sítio
ideal para nosso primeiro abraço. O fato é que rimos de tudo, os dias foram
leves em Ciudad Juárez, lemos nossos poemas, palavreamos com outros poetas, e
voltamos para casa certos de que ali havia sido o esboço de uma grande amizade.
Logo em seguida lhe fiz uma entrevista, trocamos livros, conversamos além do
possível no palco virtual dos e-mails, porém não nos encontrávamos pessoalmente
uma vez mais. Chegamos a escrever um livro a quatro mãos. O Brasil, no entanto,
é um país tão curioso que durante anos não houve como romper a barreira do
espaço que nos separava – não importa que vivamos em duas cidades em uma mesma
região, o nordeste do Brasil, a menos de 2 mil km de distância –, nada. Somente
em 2024 voltamos a nos encontrar, a primeira vez em terra brasileira, em evento
surrealista na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo. No mesmo encontro
também estava Leila Ferraz. As duas não se conheciam. Fui o ponto culminante
dessa fortuna da amizade. No evento, Leila foi recebida como o nome mais
expressivo do Surrealismo. Senti o carinho imenso da plateia. Também ao evento
compareceu Paulo Paranaguá. E houve menção à morte recente de Sergio Lima. O
trio foi o grande responsável pela presença do Surrealismo nos anos 1960 no
Brasil. O cenário era expressivo o suficiente para gerar uma memória do que
representava. No entanto, não se percebeu a relevância do acaso. Toda a
imantação mágica da data – o evento se dava em torno das comemorações do
centenário de publicação do primeiro manifesto do Surrealismo – não foi
suficiente para evitar o vício adotivo do ego.
Mas ali estávamos, ali me
encontrei pela primeira vez no Brasil com Maria Lúcia Dal Farra e revi Leila
Ferraz, ao mesmo tempo em que elas ali mesmo se conheceram. Ah Cecília
Meireles, vamos retomar o princípio das chaves: transcendências, alumbramentos,
transmutações. Um enigma despercebido como tal. Porque a lei máxima do país
será sempre essa: desconhecer a si mesmo. Quando conversei com Leila, ela me disse:
Também com Maria Lúcia Dal Farra o tempo se
reconfigura interminavelmente, porque damos uma tamanha intensidade às nossas
conversas que quase as somamos todas como se fossem frutos de um mesmo momento.
Quando indaguei a ela sobre o espírito da escritura, não sei ao certo o que me
levou a pensar naquele sintoma que se passa em nosso cérebro, de percepção de
padrões em certos estímulos visuais. Não queria me referir à chamada imagem
fantasmagórica, mas o fato é que vemos
formas dentro de formas, e graças a isto é que muitos poemas encontram em nossa
mente sua porta de saída. Maria Lúcia me disse algo curioso a este respeito:
Eu sempre quero ver o que lá não está. E não pense
que algum escritor famoso me ensinou isso: foi o meu pai que, desde muito cedo,
me atentou sobre tal olhar. Ele me dizia que eu nunca deveria encampar aquilo
que os outros pensavam e registravam, mas que eu sempre procurasse descobrir
outros ângulos e qualidades naquilo que estava diante de mim, fosse real ou não
– porque isso me faria mais feliz.
Quero dizer que fomos (nós, quatro irmãs) criadas
dessa maneira, e você bem pode imaginar o fuzuê que é uma reunião da gente,
porque cada uma é bem diversa da outra; todas, no entanto, sustentando essa
diretriz de comportamento na sua habitação do mundo.
Então, tenho para mim, que há sempre uma
perspectiva, um realce, um lance, um dado, um segredo na realidade ou naquilo
que está diante de mim, que não está a descoberto – e é justo isso o que eu
procuro quando escrevo. Diria que é a minha bússola diante do papel e do que
estiver observando, lembrando, contemplando.
Mas para chegar a isso é preciso também que eu
conheça os outros pontos-de-vista sobre aquele assunto, enfim, sobre aquele
objeto (seja ele qual for), e, nesse sentido, tenho de me aplicar um bocado
para alicerçar a minha posição. Isso quer dizer que estou sempre em
interlocução com alguém, com um parecer sobre o mesmo ponto – o que é de fato
trabalhoso e... prazeroso!!! Eu sou uma estudiosa do mundo.
Porque nunca estou sozinha quando escrevo, estou
sempre num conversê
animado e povoado de gente. Muitas vezes a sensação é que estou num campo santo
(creio que falo mais e quase sempre com o passado) que se abre ao meu
conhecimento, cujos túmulos não estão interditos porque se abrem para mim,
porque são livros, obras primas que lá estão, de maneira que todo mundo fala
comigo nesse momento de escrita.
Não sei, talvez o que te revelo seja um método de
trabalho e não um espírito da minha escrita, como você me pede. Talvez esse
espírito seja eu estar plenamente em felicidade quando escrevo, porque a
primeira coisa que se escancara para mim sou eu mesma, e esse conhecimento, que
é especialíssimo e só se dá dessa maneira, me enche de uma inquietação que me
faz muito bem e me mostra que estou viva.
Não sei, talvez se trate de responder a uma
permanente indagação – de por que vim ao mundo. Isso não é pretensioso, creio,
mas é algo que cada um de nós devia botar no seu horizonte para se interrogar.
E a resposta não é assim tão fácil de se dar – porque a pergunta nunca cessa de
insistir a cada vez. E a gente muda, mas a questão persiste, porque, como diz o
Camões, a mudança também muda, e não muda mais como soía acontecer...
O mistério da escrita em muito
se relaciona com o mistério da própria vida. O que lemos é apenas uma parte do
que somos. As leituras podem até revelar, isoladamente, um domínio da escrita,
porém a criação está além desse patamar. Querem saber mais? Eu também. Porque a
versão derradeira da vida é seu esgotamento ou a ilusão do fim. Quanto mais
conversamos com essas duas mulheres, mais descobrimos sobre a vertiginosa
trilha de um mundo que não damos pela conta no cotidiano. O mundo da escrita?
Não exatamente. A escrita, claro, possui sua linha própria, não se deixa
contagiar pelo engodo de outros carretéis, mas é uma pequena parte do que
representa a criação em si. Cecilia Meireles nos deu uma pista valiosa sobre
essa relação com a escrita: Nunca esperei por momento algum na vida. Vou
vivendo todos os momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas,
não para ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém
ou de alguma coisa. Quando adoeci e tinha que repousar uma hora depois do
almoço, ficava calculando quanto poema deixava de escrever, quanta coisa linda
deixava de ler e conhecer naquelas horas perdidas. Mas aprendi também a
renunciar. Não tenho poema predileto. Ainda não o escrevi. A intenção é que é
perfeita. Às vezes, um poema viaja comigo muito tempo sem ser escrito. Se não
lhe dou muita importância, vai embora. Tenho muita pena dos poemas que não
escrevo. E também muita dos que escrevo.
A leitura é uma fração da
vida. A apreensão do mundo se dá de imprevisíveis maneiras. O acaso garante que
nem sempre estamos onde esperávamos estar. Maria Lúcia Dal Farra foi muito
direta ao falar de suas raízes:
Penso que as minhas leituras e a minha terra
(tomando por esta o lugar da minha natividade, a minha família, os amigos, os
hábitos, os acontecidos, a cultura local, a vida que tive na minha casa de
infância e de adolescência, as terras que adotei durante a minha vida de adulta
até agora e seus costumes) são basicamente as minhas raízes vivas – digamos
inapropriadamente – autóctones.
Creio que essas experiências transparecem de algum
modo na minha escrita. E mesmo no meu vocabulário, na minha sintaxe, na melodia
(que busco encontrar nas minhas letras) e daí outra raiz “autóctone” – a
música.
Toda a minha família, a mais ancestral, toca um
instrumento ou mais e canta, e eu nasci nesse meio, e canto pelo menos com o
meu pai desde os 5 anos de idade. Logo após comecei a estudar piano e canto
lírico, de maneira que a música está nas minhas tripas, irreversivelmente. E é
muito natural que ela também seja buscada e – esperançosa - encontrada por mim
nos meus poemas.
Aliás, penso, quando comecei a escrever, era muito
mais a oitiva que parecia me guiar, porque esse era o maior repertório que eu
tinha, além das minhas leituras. Meu pai nos levava para conhecer os velhos da
minha cidade, deixava-nos na casa deles para escutarmos as histórias que
contavam; ou nos levava aos velórios dos negros para ouvirmos as incelências;
levava-nos à roça para convivermos com os colonos; às festas de interior, onde
recolhia folclore (era um dos seus grandes interesses para além da pescaria e
da heráldica – e talvez por isso a minha paixão pelas artes plásticas: basta
ver os meus poemas ecfrásticos).
Na época de estudos do meu pai, o Juó Bananère
estava muito em voga nos círculos de imigrantes italianos, e o meu pai escreveu
vários poemas satíricos nesse patois; produziu diversas emboladas e pôs a sua
sanfona semitonada de botões (uma tradição que vinha dos suas bisavós – para
você ter ideia, Flori, só na minha casa havia 4 delas, todas Stradellas, e
papai tocava até ária de ópera nelas) para trabalhar, além do canto e do violão.
Ele adorava dizer poemas longos, assim como a minha mãe, daqueles muito
românticos e meio trágicos, que nós, as filhas (que chorávamos a cada vez)
fomos, com o tempo decorando, um por um.
A propósito do que me pergunta, Flori, uma amiga
minha, que era linguista, me dizia não saber reconhecer na minha escrita as
minhas fontes - segundo ela, era uma grande bagunça, porque havia de tudo um
pouco: linguajar e sotaque caipira de Botucatur (a gente escreve assim quando
quer enfatizar a nossa caipirice); um tanto de acento carioca (que não sei como
foi parar em mim, visto que nunca frequentei o Rio de Janeiro!); termos
inusitados ao brasileiro, advindos do português de Portugal; sintaxe por vezes
lusitana; uma certa inflexão francesa (que ainda me é remanescente, acho, na
oralidade, uma vez que tratei de me educar assim, lá, para não me tolherem e me
descriminarem, e esses tiques nunca me abandonaram mais, ficaram impressos na
minha língua).
O querido
João Lafetá, que foi meu amigo e colega, e que, no leito de morte, ainda leu o
meu Livro de Auras, me falou
mais ou menos isso no que concerne às minhas influências literárias, aliás. E
deveras: é uma mistureba total, mesmo quando estou conversando com um autor
específico e quero me colar a ele.
No que escrevi na adolescência e não publiquei, eu
era muito Pessoa, por quem estava apaixonadíssima – e continuo, mas sem o
exagero antigo. O Machado de Assis, que amo, não suponho que apareça na
linguagem dos meus poemas; o mesmo para o Eça (mas vou focar somente os poetas,
não sem antes lembrar do Proust, do Walter Benjamin, do Bachelard); o Jorge de
Lima sim; o Murilo Mendes também; o Bandeira também, o Mário de Andrade, algum
Drummond, muito João Cabral, sobretudo depois que vim para o Nordeste.
O Francis Ponge me é muito especial, o Baudelaire;
o Rilke, nem se fala; a Edna Saint-Vincent Millay; o T.S.Eliot; o Lorca; o
Lezama Lima; a Silvina Ocampo; a Sylvia Plath; o Jorge de Sena, o Herberto
Helder demais; a Florbela é mais como emblemática, e menos uma influência
poética, digamos assim; a Fiama Hasse Paes Brandão; a Sophia de Melo Breyner
Andresen; o Carlos de Oliveira – sublinho mais os que já não estão aqui, mas
estão comigo, e mais perto de mim. Também o meu aprendizado esotérico me
acompanha. Estamos falando de raízes.
Quando a lemos pensamos que o
mundo se refaz a cada instante, e que não há propriamente um instante em que a
história receba o respingo de um congelamento, uma máquina de fixação que lhe
determine um status a ser seguido, venerado, contradito, esquecido. Estar vivo
é outra coisa. Criar é ir além do tempo. A mesma indagação sobre as
contradições que ocasionalmente suportem a criação eu fiz à Leila, que me
disse:
Eu escrevo pela imensa paixão de me
transbordar. Sempre tive emoções, percepções, memórias e invenções em excesso.
Comecei a falar muito cedo e lembro-me de episódios de quando ainda era
bebê. Talvez tivesse a visão periférica
do mundo, ou seja, visse tudo em 180° e bastava um movimento para conquistar os
360° que me cercavam. Quase nada me passava despercebido e minha imaginação se
confundia com a realidade. Tive a sorte
de ter nascido em uma família absolutamente intensa, que valorizava a cultura e
as coisas belas. Havia muita liberdade e
abertura para dar asas e voar. Às vezes eu sentia não fazer parte desse grupo
de familiares que me cercavam, porque estava sempre os observando como se
fossem personagens. De certa forma, eu construía uma realidade própria que aos
poucos foi ganhando forma e tão logo aprendi a ler e escrever já comecei a
externar meus pensamentos através de verbalização e escritos. Aos poucos,
deixei-me encantar por versos, poemas, contos e leitura de revistas e jornais –
atividades raras para crianças de 6 ou 7 anos. Assim fui crescendo e tornei-me
boa aluna em redação. Adorava narrar, descrever, inventar – escrever!
Minhas primeiras influências
foram os livros de Júlio Verne – todos, pois tínhamos a coleção completa e, em
seguida, As aventuras de Tarzan. E não
parei mais, mergulhei em Monteiro Lobato e descobri um prazer raro: ler
dicionários. Estes, então, passaram a ser os meus prediletos porque davam o
nome das coisas e me faziam descobrir as que nem eu imaginava existirem. Assim
cresci! E, claro, comprometida com toda a literatura formal escolar. Do primário
à Universidade. E mais um pouco. As minhas preferências se concentraram em
livros sobre filosofia e tudo o que fosse concernente ao pensamento. Daí para
os livros orientais foi um pulo. E deles para os esotéricos outro. Durante anos
dediquei-me disciplinadamente a estudar literatura, sociologia, psicologia e
principalmente sobre artes e fotografia. E jamais parei de ler. Até hoje.
Contudo, mantive uma fidelidade à leitura de Fernando Pessoa, Yeats, os
clássicos brasileiros, nossos poetas, como Bandeira, entre outros , e Millôr
Fernandes, além de toda a corrente de pensadores, romancistas e escritores
modernos e contemporâneos, como Octávio Paz,
Umberto Eco, Yourcenar, e, é claro, a partir dos 20 anos, com minha
proximidade ao Surrealismo, André Breton, Benjamim Péret, Joyce Mansour e todos
os surrealistas ou aqueles que deram ao Surrealismo o conteúdo para que este
movimento se tornasse o que se tornou. Pouco importando a época ou mesmo
seguindo uma ordem cronológica.
Por todo esse histórico, creio ter
um estilo meu. Único e exclusivo. Uma expressão de sentimentos, sensações,
filosofia próprios. Na verdade, uma Fala própria e individual. Como se fosse um
idioma natural, intrínseco ao meu ser. Não me vejo dentro de um estilo; talvez
nem o tenha. Escrevo o que me chega e muitas vezes da forma que me chega.
Pratiquei escrita automática por um tempo e depois, durante cerca de 15 ou 20
anos escrevi poemas – ainda inéditos – tentando encontrar um estilo. Algo no
qual pudesse me enquadrar. Mas, rebelde que sou, transgrido e não me prendo.
Escrevo no tom da minha liberdade. Nos últimos anos tive a felicidade de
encontrar Floriano Martins e juntos, a quatro mãos, durante muito tempo, nos
correspondêssemos e creio que daí produzimos poemas belíssimos, exemplares, com
ritmo, conteúdo, forma e liberdade. Belos poemas. Então percebi, já nesta
velhice, ser capaz de ordenar meu caos interno e criei poemas intensos em
estilos, forma e conteúdo. Poemas que fazem uma enorme diferença no sentido dos
meus trabalhos. E mais ultimamente, nos meados dos meus setenta anos, já
chegando aos 80, encontrei toda a beleza poética que procurei a vida inteira.
Tenho criado poemas que conquistam um lugar no mundo da poesia. Com sentido e
movidas pela estética de versos e busca da perfeição na escolha das palavras.
Estes são os poemas que concluem o meu existir. E me dão significado.
O mundo era só isto? Um
significado buscado ao queimar da palha, ao piscar de um olho, ao mergulho
inesperado no vazio? Criar talvez defina melhor o mundo do que ele próprio
porventura possa esperar de si. Não somos um trapo de qualquer realidade.
Tampouco somos a regulação de um sistema existencial. O mundo nos apanha em
lugares inóspitos. O imprevisível atordoa, provoca, até mesmo antecipa as
reações mais díspares. Escrever é parte do viver. Eu não pretendi um ensaio
crítico sobre a poesia de Cecília Meirelles, Maria Lúcia Dal Farra e Leila
Ferraz. A minha ideia era criar um espectro sugestivo, uma teia de curiosidade
em torno da poesia de cada uma delas, de modo que o leitor pudesse reconhecer
sua importância e reconhecer-se na dimensão poética de cada uma delas. Este é o
ponto. Os ensaios em geral nos informam. O que desejei aqui foi estar entre
elas e atiçar a curiosidade do leitor.
Abraxas
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).
ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 260 | abril de 2025
Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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