A música se
confunde com a própria vida, tudo nela é imensidão. Os sons da natureza são
também os sons do corpo humano, o dentro e o fora se fundem, todos os sons que
a floresta pode fazer nós os deciframos em nosso íntimo e nosso corpo
corresponde a cada um, como uma síntese, como os sons de uma criança que ensina
a própria alma a crescer. Quando em 1970 Naná Vasconcelos trabalhou com
crianças em um hospital francês, a convite do psiquiatra Tony Lainé, observou
que elas não o consideravam um músico, e sim a música. Naná recordou que esse
momento foi um divisor de águas em sua vida, pois a partir dele concebeu uma
nova dimensão para a sua criação. É possível, tanto pelo impacto da recepção daquelas
crianças, a afinidade instantânea com seu mundo embriagante e atípico, como
também por quem teve acesso aos vários projetos que ele desenvolveu com
crianças. Duas décadas depois, já residindo no Brasil, ele criou o ABC das Artes e ABC Musical, com menores carentes em idade de 7 a 10 anos. Naná
encontrou nessa meninada o que pode haver de mais gratificante na vida de um
criador: aquele portal escancarado entre a vigília e o sonho, a realidade com
seus incríveis desafios e a imaginação repleta de maravilhas incansáveis.
Deixar essa passagem permanentemente em aberto é uma dádiva. Claro que Naná
sempre foi propenso a essas outras vozes, venham do além ou de uma sincronia
com diversos mundos. No entanto, com as crianças o que ele tinha diante de si
era a perspectiva de traçar paisagens sonoras e visuais que alimentassem uma
nova humanidade. Aquelas crianças significavam para Naná um verdadeiro encontro
com o milagre. Se ele era a música, elas eram ele, preciosa transmutação de
sentidos. Naná Vasconcelos é alguém que veio ao mundo para realizar-se no
outro. Era essa a caligrafia de seu olhar, o dialeto de seu riso, sua expressão
franca e extensa iluminada por ritmos constantes repletos de significado. Naná
Vasconcelos era um símbolo. Não cabe compará-lo a ninguém porque os símbolos
existem como a soma de linguagens. São mais do que um credo ou uma altercação
do mistério. Os símbolos não relatam, modificam ou comparam. Eles são a
essência das relações, modificações ou comparações da existência humana. O
pintor Juan Gris disse certa vez: Pode-se
inventar isoladamente uma técnica, um procedimento, não se pode inventar do
zero um estado de espírito. Quando as crianças identificam Naná como sendo
a música, é justamente isto o que se passa: elas o percebem como um estado de
espírito.
Por onde
passava com aquele protagonismo determinado
pelo berimbau, Naná refletia um espanto e uma afinidade. Viagens, amigos por
toda parte, o encontro com brasileiros longe de casa, cada vez mais a música
evocava seu espírito repleto de sons e ritmos, tanto assombrosos quanto um
caudal de maravilhas. Aos poucos ia definindo uma espécie singularíssima de voz
do inconsciente que abrange todos os seres. A descoberta de instrumentos
ligados a raízes asiáticas e africanas, a sua casa espiritual sempre presente
em todos os seus momentos de descobertas do mundo. Na época em que residiu em
Nova York dividindo apartamento com Glauber Rocha e o curador cinematográfico
Fabiano Canosa, este recorda que Naná andarilhava pela casa conversando com o
berimbau, tratando o instrumento como uma extensão de si mesmo. Quando o vemos
tocar, o modo como lida com a cabaça, a sensualidade do encontro amoroso entre
a varinha e o caxixi, essa voz incrivelmente mágica e singular define o modo de
ser de alguém que se descobriu a essência da música. As crianças tinham razão.
Tinham razão
Milton Nascimento, Don Charry, Egberto Gismonti, Pat Matheney, uma enxurrada de
músicos singulares que a seu lado buscaram uma origem que estava além da
biografia pessoal de cada um deles. Naná costumava dizer que em cada estado brasileiro se deu uma África
diferente. No encontro com esses músicos todos, o que vemos é uma
alteridade sua, um abraço carinhoso, uma aceitação da cultura do outro. Uma
vez, ao conversar sobre como conheceu Pat Metheny, Naná revelou:
Essa passagem
joga com a sedução que Naná Vasconcelos definia, com todo seu espírito, como um
dom de transcender todas as seções isoladas da alma humana. Ele costumava
dizer: Meu coração bate e já é percussão,
o que no Brasil talvez tenha sido confundido como um intuitivo sem base sólida.
Longe disto, mas é sempre bom que se diga, a essência da criação artística no
Brasil radica nessa alquimia entre o gênio puro, a observação do entorno, o
manuseio curioso com várias técnicas. Na música, por exemplo, não teríamos como
chegar a espíritos arquetípicos sem a compreensão desse caldeirão de primárias
referências. Naná Vasconcelos incansavelmente referiu suas origens. Os bares
populares da infância, incluindo o palco que frequentava nos cabarés. Quando
chegou ao Rio deu de cara com a Bossa Nova e a Tropicália. Uma biografia dissonante
logo o levou a Buenos Aires, Paris, Nova York. Por onde passou sempre esteve a
lembrar, sobretudo a si mesmo, que duas vertentes atuavam em seu íntimo como um
desafio: seguir os passos de Villa-Lobos no que este compreendia, de modo raro,
os sons da natureza, e buscar dar ao berimbau o mesmo cofre de essências que
Jimi Hendrix havia dado à sua guitarra. Este era o espírito de Naná. Mesmo
quando, de retorno ao Brasil, descobre a maravilha da relação entre música e
infância, a vertente esplêndida de um diálogo entre dois mundos, aquele que
detém um mínimo de experiência à qual se dispõe arejar a consciência em busca
da outra metade, a que desconhece tudo o que tem pela frente.
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).
ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 260 | abril de 2025
Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
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