quarta-feira, 18 de junho de 2025

MARIA LÚCIA DAL FARRA (1944)

 


MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil, 1944). Poeta, ensaísta e conferencista, autora de quatro livros de poesia que se destacam entre os melhores de nossa lírica: Livro de Auras (1994), Livro de Possuídos (2002), Alumbramentos (2012), Terceto para o fim dos tempos (2017), e Livro de erros (2024). Além deles, é autora de um livro de contos, Inquilina do Intervalo (2005) e dois outros de crítica literária: O Narrador Ensimesmado (1978) e A Alquimia da Linguagem (1994), este último em Portugal.

 

 

HERANÇA

 

Para Zeba e Acê Dal Farra

 

Ouço ao longe o chocalho da burra-madrinha:

é o nono que se avizinha,

cometa que chega do confim das terras,

de encurvadas léguas que o retiveram.

 

Já se fez (como de hábito) a visita ao cemitério.

Pulou (há pouco) o muro das almas.

Saltou na noite (capote colonial ao vento)

para dentro das lendas que o povo conta

sobre secreta aparição local.

Foi tomar bênção à mãe

levar-lhe as flores que colhe

pelas picadas afora

– solta móvel onde cultiva

Rebentos íntimos da memória.

 

Beijo as mãos geladas da pedra em que demorou.

Não tenho medo nem frio, na ampla capa me aninhou.

Devolvo-lhe sua sanfona (saudade a mais amargada)

repara nos botões gastos – esquece que papai a herdou.

 

Ouço do fole remoto da noite um acorde!

É o nono-cometa que se apeia do tempo

e vem partilhar com a neta (que não conheceu)

velhas tarantelas de legadas gestas.

 

 

A MÚSICA

 

Flexível como a corda que a tange

ela vibra. O leão aprofundado no instrumento

espera o momento certo para saltar –

que é quando se casa o sopro

com as cordas.

 

Tudo lhe á de lembrar a floresta

o som do vento

o riacho quebrando-se

a flecha que o espera para segui-lo

sem, contudo, nunca o alcançar.

 

A música é para ouvir e lembrar

(sobretudo)

o jamais vivido,

o que não teve memória.

Mesmo o monocorde das cores

não impede a passagem do que silva e se alça

– como por encanto.

Daí seu fascínio,

a mágica a perscrutar

(nas nossas fibras)

a ressonância que a funda

– apenas a ela.

 

LOUCURA

 

A órbita da loucura é imensa.

 

Aviso às incautas criaturas

tanto quanto

aos navegantes sem rumo.

Nela se movem constelações superiores

ilimitadas águas

e as mãos com que Deus nos acena

(segundo a segundo)

com a sua graça.

 

Consolos prontos a redimir o mundo

palavras ausentes de escrita

ali se asilam

e mais

o risco do iminente abissal.

 

É tão amplo o rosto da loucura

que podem caber nele

quaisquer

das nossas muitas faces

 

– inclusive esta com que agora me empenho

em apreendê-lo.

 

 

 

 

SYLVIA PLATH

 

Com o planeta da minha mente

vejo negras as árvores. Frias e cinzas
erguidas num sonho mau.

Há vapor do dia em vias de nascer

que (em barreira transparente)

me separa de pra onde quero ir.

Branca de cartilagem (esparadrapo

a cobrir-lhe a ferida)

a lua ainda goza seu pleno direito –

vem chupando o mar, a última de suas tarefas noturnas.

Fundo de panela, alumínio machucado ao alto.

Melhor: tampa redonda de forno a gás.

 

No quintal as roupas do varal se encontram

em desconforto. Repõem

suas manchas, o sangue menstrual.

Expõem o uso, o amassado do afeto

o invisível gesto que ali se busca

enxugar.

Há manejos de armas brancas

por baixo da planura das palavras.

 

 

CEBOLA

 

Gosta dos dias longos

esta milenar senhora!

Memorialista,

enrodilha-se na lembrança das próprias folhas

em permanente esforço de perpetuá-las.

Preferida dos faraós,

deve (por cero) ter inspirado a técnica

em que se eternizaram.

 

Objeto arqueológico de todas as idades,

esta esfinge

foi dita em sânscrito, persa,

latim, grego. Guarda por exemplo

(em gravidez poliglota)

a nostalgia do antigo lar egípcio,

a travessia do deserto, a ausência da mesa,

a carência de alento –

o fundo pranto hebreu que ainda hoje

(inadvertido e fortuito)

compartilha

com quem lhe devassa a alma.

 

Percorre com faca teu ventre sagrado

é topar com inscrições inauditas,

passagens secretas,

falsas portas,

inesperadas relíquias.

 

Que apenas a maldição que eu mereça

recaia sobre mim!

 

 

RETRATO DE MULHER DE FRENTE

 

De tanto esperar pelo meu olhar,

enrubesceu. Aguardou-o

anos a fio

mas emana dela ainda

a mesma timidez

igual esperança. Há

(quem sabe)

uma indagação impossível

na boca rubra e natural.

 

A aura do objeto

mistura-se a seu cabelo

como se a existência

tivesse transcendido o momento

em que por certo nos encontraríamos.

 

Malgrado estar eu aqui –

tudo nela ainda espera por mim.





FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983). Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes, aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30 anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 261 | junho de 2025

Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 



 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário