quarta-feira, 18 de junho de 2025

LUCILA NOGUEIRA (1950-2016)

 


Lucila Nogueira é poeta, ensaísta, contista, crítica e tradutora. Tem vinte e dois livros de poesia publicados, a saber: Almenara (1979), Peito Aberto (1983), Quasar (1987), A Dama de Alicante (1990), Livro do Desencanto (1991), Ainadamar (1996), Ilaiana (1997), Zinganares (1998), Imilce (1999), Amaya (2001), A Quarta Forma do delírio (2002), Refletores (2002), Bastidores (2002), Desespero Blue (2003), Estocolmo (2004), Mar Camoniano (2005), Saudade de Inês de Castro (2005), Poesia em Medellin (2006), Poesia em Caracas (2007), Poesia em Cuba (2007), Tabasco (2009) e Casta Maladiva (2009). Seu livro de estreia, Almenara, obteve o prêmio de poesia Manuel Bandeira do Governo do Estado de Pernambuco, no ano de 1978 – essa premiação lhe foi novamente concedida pelo livro Quasar, em 1986. Lucila foi escritora-residente na Casa do Escritor Estrangeiro de Saint-Nazaire em dezembro de 1999. Foi professora da Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Pernambuco. Dirigiu o Seminário de Estudos Literários Contemporâneos em sua instituição de ensino. Foi Curadora Literária da Departamento de Letras de 1998 a 1999 Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas – FLIPORTO nos anos 2007 e 2008. Foi Diretora Cultural e de Intercâmbio Internacional do Gabinete Português de Leitura do Recife, onde editou por cinco anos a revista de lusofonia Encontro, sobre a qual promoveu lançamentos nas Universidades de Évora, Porto e Complutense de Madri. Colaboradora sempre presente nas páginas virtuais da Agulha Revista de Cultura, Lucina Nogueira tinha em planos, ao lado de Floriano Martins, o ousado projeto de edição de 19 antologias dedicadas à poesia de cada país hispano-americano, projeto abortado por ocasião de sua morte, quando estavam traduzindo o segundo título, sobre a Venezuela. Da coleção chegou a ser publicado apenas o primeiro volume: Mundo Mágico: Colômbia – Poesia colombiana no século XX (2007).

 

 

SE AINDA HOUVER AMOR

 

Se inda houver amor eu me apresento.

E me entrego ao princípio do oceano.

E se me atinge a onda, úmida eu tremo

esquecida de insones desenganos.

E se inda houver amor eu me arrebento

feliz, atravessada de esperança

e mesmo lacerada inda assim tento

quebrar com meu amor todas as lanças.

E se inda houver amor terei alento

para aguentar o inútil desses anos

e não me matarei, sonhando com o tempo

em que me afogarei no seu encanto.

e se inda houver amor, ah, me consente

ser pasto de tua chama, astro medonho.

E se inda houver amor, eu simplesmente

apago esta ferida do meu sono.

 

 

 

 

MAS NÃO DEMORES TANTO

 

O corpo - dizem - já não será mais o mesmo

em seu reflexo exterior,

mas alguma coisa se diga das cavernas fosforescentes

que navegam a fome do demônio

na hora do seu resplendor

 

Olha o meu corpo antigo na curva do chafariz

ou no leme do navio.

Eu sou um pássaro noturno perturbado.

Eu te ofereço os meus seios muito brancos

numa escada secreta do mar Cáspio.

 

Alguém falou de um modo descuidado

e as gárgulas de Notre Dame

contornaram os mamilos

como breves e clandestinos fogo-fátuos.

 

O corpo - dizem - já não será o mesmo,

desesperadamente eu te desejo

enquanto navego rochas subterrâneas

à beira da consciência humana

e o racha da atmosfera interfere na faixa luminosa

bem no centro da tela da televisão que se quebrou.

 

Porque naquele tempo

o amor era como um príncipe bêbado e forçosamente hindu

ele era como a voz rouca de Dioniso

fazendo soar as teclas do piano austríaco

abandonado na passarela vermelha

de um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus.

 

Saí pelo ancoradouro embriagada

arrastando candelabros escarlates

no rio de letreiros luminosos

enquanto a chuva batia no bico duro daqueles seios

ardendo sempre de tanto amor.

 

Todos eram demais e não sabiam

mas quando tu me pegaste forte

eu me surpreendi tímida

e até hoje estou fugindo entre palmeiras

pelas estradas líquidas do vinho e do neon.

 

Digo que continua urgente a ilusão desse momento

acometido de inenarráveis confissões.

Utopia presa na cartilagem úmida,

quando tua boca recobrir o seio

seremos então as duas outras faces

de uma mesma única possessão,

como uma estória colada na outra

enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância

que uma água subitamente morna quase apagou.

 

Como dizer, sem te estranhar: recusa-me

que a dama nua ao telefone pode estar no transe

a que tanto aspiras sob o vermelho das lanternas

enquanto a chuva cobre os telhados à beira-mar.

Tudo agora se tornou tão urgente

que dói a espera imemorial das bonecas

sobre a madeira escura

imóveis mas não inertes

a aguardar seu número de magia

quebrando a banalidade dos noticiários da televisão.

 

A blusa de cetim verde tem um decote de princesa judia

assassinada nua em campo de concentração

esplêndido violinista, vamos enlouquecendo devagar.

A blusa de cetim verde deixa entrever

a parte morta da carne branca

sob a luz do globo fosforescente

girando sobre os dançarinos

amanhã invisíveis do bar Royal.

 

Fecha os olhos e pensa no que quiseres

enquanto as mãos e as bocas

cumprem roteiros de miragens desérticas,

enquanto eu toco novamente

o meu piano austríaco na calçada do cais

e o mar quase arrebenta as janelas dalinianas

do Armazém XIV.

 

Porque o espírito há-de ser sempre o mesmo

eu desafio a tua preferência

e a blusa de cetim verde sem meu corpo dentro

tem ainda um oceano de lantejoulas

refletindo a vibração da pele

que por alguns momentos a habitou.

 

Dragão gigante

língua demoníaca

união clandestina

avesso encantamento

abismo vulcânico

onde a partitura se desfez em notas a cobrir a pauta

que guia o violoncelista ao Palácio de Cristal.

 

Fecha os olhos e beija-me de modo frágil

porque tudo se tornou mais urgente

desde o Museu Serralves

e os desenhos rosa do mármore

revelam caminhos recifenses da pele emparedada

sonhando o êxtase da ressurreição.

 

O teu olhar tem o mesmo brilho de um atirador de facas

enquanto giro na roda sobre mim mesma

dramaticamente presa nas cordas

ao som de Tchaicovsky na Abertura 1812.

 

O teu olhar é como um sino milenarmente gigante

rondando os patamares da Régua

até a calçada de Copacabana,

o teu olhar é como um barco viking pedindo enseada

desde os coqueiros do Recife

até os verdes pinheiros galegos

que deram sombra ao romance dos meus bisavós.

 

Sei que hás de vir sob a neve enluarada

conduzindo lanterna no pescoço do cavalo branco

e me tomarás a galope em tua capa de veludo escuro

enquanto no circo abandonado

a trapezista continuará dormindo

completamente nua

na jaula dos leões.

 

Sei que hás de vir ferozmente enfeitiçado

nesse rapto anunciado para cruzar as águas do Capibaribe ao Douro

e dançaremos à luz de um candelabro de sete braços

até o sol secar as sete saias

tiradas ao som de sete violinos

durante as sete noites da encantação.

 

Mas não demores tanto.

Que amar é a arte

de se fazer presente

e tudo aquilo que precisamos

é de poesia

loucura e ênfase

no ato heróico de reabrir as portas

da carne mansa que se equivocou.

 

Que o corpo - dizem - já não será o mesmo

e o que era assédio pode retemperar-se em fuga

e até nós – dizem – não seremos os mesmos

no estranho instante de raio laser

em que chegar sem aviso o prazer da manhã.

 

 

MONÓLOGO TARDIO

 

eu gostava do cheiro da sua pele

eu gostava do tom da sua voz

do seu silêncio doce pela casa

e fui levando as horas de pavor

fui superando o pânico das crises

quatro utis em peregrinações

máquinas domiciliares de glicose

máquinas domiciliares de pressão

o açúcar e o sal comum escondidos

mas apesar dos sustos e dos riscos

contava que me esperava para sempre

sem aquela pele fria na manhã da segunda-feira

no sábado eu toquei teu braço ouvindo sua respiração

sem saber que ela já era uma despedida

eu falei até amanhã à uma hora

mas tu foste de manhã logo cedo sem me esperar

eu tremia e chorava e não conseguia

vestir a tua roupa no domingo de sol

agora voltou minha ciclotimia

o meu pavor total das pessoas banais

e ninguém para rir das pessoas de plástico

e eu já não tenho mais com quem conversar

todos os dias o meu monólogo tardio

ninguém para me ouvir com sublime paciência

ao chegar do trabalho exausta e deitar no sofá

I wish you were here

dancei e cantei Pink Floyd na sua sessão de saudade

e houve mesmo quem dissesse que você estava entre nós

a doença veio não se sabe de onde talvez hereditária

eu dizia tudo o que não é fatal tem que ser controlado

mas depois as complicações não se entenderam mais

saí da universidade no meio da aula de teoria literária

de táxi no engarrafamento atrás da ambulância do hospital

lembro da placa dos quase dois meses em Canaã

eu dando aula no intervalos das visitas sob as árvores

na Praça de Casa Forte em meio às luzes do outro natal

e antes fora em Olinda Bairro Novo no São Salvador

você estremecendo ao me ver e retomar a consciência

e eu tomando isso como prova de um grande amor

às vezes penso que foi tudo culpa mesmo da linguística

o nome Alfa era um aviso que eu não soube decifrar

regressão em estado Alfa vidas passadas o transe dos xamãs

passividade e pacificação clarividência telepatia premonição

mundo alfa estado intermediário entre o sono e a vigília

mundo alfa espaço sagrado onde habita a harmonia

mundo alfa começo de onde vem a fonte

você frente a frente com o seu fim

ontem entraram no apartamento dois passarinhos

e ficaram voando pela casa em contraponto

na véspera da sua ida entrara um passarinho doente

ficou no quadro da ponte do Porto e conseguiu sair

a casa está impregnada de você

a sua voz me chamando no mezanino

você vendo toda noite os noticiários de todos os canais

assistindo comigo documentários e filmes europeus

e ultimamente preferindo os nacionais do Canal Brasil

você um sociólogo resgatado do cenário underground

segurei trinta anos toda a carga da nossa vida prática

e empurrei sozinha até uma hérnia carros intermináveis de supermercado

protagonizando empregos difíceis e causando estranheza ao senso comum

trazendo sempre para casa uma comida diferente ao voltar do trabalho

ainda que fosse a quilômetros de distância e descesse tarde da noite em estradas escuras

foram tantos os momentos e lugares onde desperdicei beleza e energia

eu que vestia as nossas filhas no Recife com roupas de Renoir

passeio agora com elas e os netos de Boa Viagem a Piedade

de Casa Forte à Cidade Universitária e ao Paço Alfândega

de Porto de Galinhas à Praia dos Carneiros e a Itamaracá

antes que recomecem todos suas viagens à Suécia e ao Ceará

e fico sem remédio na mesma cidade da minha infância solitária

com a mesma velha máquina de sonhos cotidianamente a me percorrer

caminho triste nesta casa e não sei o que irá me acontecer





FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983). Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes, aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30 anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 261 | junho de 2025

Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 



 

 

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