SE AINDA HOUVER AMOR
Se inda houver amor eu me apresento.
E me entrego ao princípio do oceano.
E se me atinge a onda, úmida eu tremo
esquecida de insones desenganos.
E se inda houver amor eu me arrebento
feliz, atravessada de esperança
e mesmo lacerada inda assim tento
quebrar com meu amor todas as lanças.
E se inda houver amor terei alento
para aguentar o inútil desses anos
e não me matarei, sonhando com o tempo
em que me afogarei no seu encanto.
e se inda houver amor, ah, me consente
ser pasto de tua chama, astro medonho.
E se inda houver amor, eu simplesmente
apago esta ferida do meu sono.
MAS NÃO DEMORES TANTO
O corpo - dizem - já não será mais o mesmo
em seu reflexo exterior,
mas alguma coisa se diga das cavernas fosforescentes
que navegam a fome do demônio
na hora do seu resplendor
Olha o meu corpo antigo na curva do chafariz
ou no leme do navio.
Eu sou um pássaro noturno perturbado.
Eu te ofereço os meus seios muito brancos
numa escada secreta do mar Cáspio.
Alguém falou de um modo descuidado
e as gárgulas de Notre Dame
contornaram os mamilos
como breves e clandestinos fogo-fátuos.
O corpo - dizem - já não será o mesmo,
desesperadamente eu te desejo
enquanto navego rochas subterrâneas
à beira da consciência humana
e o racha da atmosfera interfere na faixa luminosa
bem no centro da tela da televisão que se quebrou.
Porque naquele tempo
o amor era como um príncipe bêbado e forçosamente hindu
ele era como a voz rouca de Dioniso
fazendo soar as teclas do piano austríaco
abandonado na passarela vermelha
de um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus.
Saí pelo ancoradouro embriagada
arrastando candelabros escarlates
no rio de letreiros luminosos
enquanto a chuva batia no bico duro daqueles seios
ardendo sempre de tanto amor.
Todos eram demais e não sabiam
mas quando tu me pegaste forte
eu me surpreendi tímida
e até hoje estou fugindo entre palmeiras
pelas estradas líquidas do vinho e do neon.
Digo que continua urgente a ilusão desse momento
acometido de inenarráveis confissões.
Utopia presa na cartilagem úmida,
quando tua boca recobrir o seio
seremos então as duas outras faces
de uma mesma única possessão,
como uma estória colada na outra
enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância
que uma água subitamente morna quase apagou.
Como dizer, sem te estranhar: recusa-me
que a dama nua ao telefone pode estar no transe
a que tanto aspiras sob o vermelho das lanternas
enquanto a chuva cobre os telhados à beira-mar.
Tudo agora se tornou tão urgente
que dói a espera imemorial das bonecas
sobre a madeira escura
imóveis mas não inertes
a aguardar seu número de magia
quebrando a banalidade dos noticiários da televisão.
A blusa de cetim verde tem um decote de princesa judia
assassinada nua em campo de concentração
esplêndido violinista, vamos enlouquecendo devagar.
A blusa de cetim verde deixa entrever
a parte morta da carne branca
sob a luz do globo fosforescente
girando sobre os dançarinos
amanhã invisíveis do bar Royal.
Fecha os olhos e pensa no que quiseres
enquanto as mãos e as bocas
cumprem roteiros de miragens desérticas,
enquanto eu toco novamente
o meu piano austríaco na calçada do cais
e o mar quase arrebenta as janelas dalinianas
do Armazém XIV.
Porque o espírito há-de ser sempre o mesmo
eu desafio a tua preferência
e a blusa de cetim verde sem meu corpo dentro
tem ainda um oceano de lantejoulas
refletindo a vibração da pele
que por alguns momentos a habitou.
Dragão gigante
língua demoníaca
união clandestina
avesso encantamento
abismo vulcânico
onde a partitura se desfez em notas a cobrir a pauta
que guia o violoncelista ao Palácio de Cristal.
Fecha os olhos e beija-me de modo frágil
porque tudo se tornou mais urgente
desde o Museu Serralves
e os desenhos rosa do mármore
revelam caminhos recifenses da pele emparedada
sonhando o êxtase da ressurreição.
O teu olhar tem o mesmo brilho de um atirador de facas
enquanto giro na roda sobre mim mesma
dramaticamente presa nas cordas
ao som de Tchaicovsky na Abertura 1812.
O teu olhar é como um sino milenarmente gigante
rondando os patamares da Régua
até a calçada de Copacabana,
o teu olhar é como um barco viking pedindo enseada
desde os coqueiros do Recife
até os verdes pinheiros galegos
que deram sombra ao romance dos meus bisavós.
Sei que hás de vir sob a neve enluarada
conduzindo lanterna no pescoço do cavalo branco
e me tomarás a galope em tua capa de veludo escuro
enquanto no circo abandonado
a trapezista continuará dormindo
completamente nua
na jaula dos leões.
Sei que hás de vir ferozmente enfeitiçado
nesse rapto anunciado para cruzar as águas do Capibaribe
ao Douro
e dançaremos à luz de um candelabro de sete braços
até o sol secar as sete saias
tiradas ao som de sete violinos
durante as sete noites da encantação.
Mas não demores tanto.
Que amar é a arte
de se fazer presente
e tudo aquilo que precisamos
é de poesia
loucura e ênfase
no ato heróico de reabrir as portas
da carne mansa que se equivocou.
Que o corpo - dizem - já não será o mesmo
e o que era assédio pode retemperar-se em fuga
e até nós – dizem – não seremos os mesmos
no estranho instante de raio laser
em que chegar sem aviso o prazer da manhã.
MONÓLOGO TARDIO
eu gostava
do cheiro da sua pele
eu gostava
do tom da sua voz
do seu
silêncio doce pela casa
e fui
levando as horas de pavor
fui superando
o pânico das crises
quatro
utis em peregrinações
máquinas
domiciliares de glicose
máquinas
domiciliares de pressão
o açúcar
e o sal comum escondidos
mas apesar
dos sustos e dos riscos
contava
que me esperava para sempre
sem aquela
pele fria na manhã da segunda-feira
no sábado
eu toquei teu braço ouvindo sua respiração
sem saber
que ela já era uma despedida
eu falei
até amanhã à uma hora
mas tu
foste de manhã logo cedo sem me esperar
eu tremia
e chorava e não conseguia
vestir
a tua roupa no domingo de sol
agora
voltou minha ciclotimia
o meu
pavor total das pessoas banais
e ninguém
para rir das pessoas de plástico
e eu
já não tenho mais com quem conversar
todos
os dias o meu monólogo tardio
ninguém
para me ouvir com sublime paciência
ao chegar
do trabalho exausta e deitar no sofá
I wish you were here
dancei
e cantei Pink Floyd na sua sessão de saudade
e houve
mesmo quem dissesse que você estava entre nós
a doença
veio não se sabe de onde talvez hereditária
eu dizia
tudo o que não é fatal tem que ser controlado
mas depois
as complicações não se entenderam mais
saí da
universidade no meio da aula de teoria literária
de táxi
no engarrafamento atrás da ambulância do hospital
lembro
da placa dos quase dois meses em Canaã
eu dando
aula no intervalos das visitas sob as árvores
na Praça
de Casa Forte em meio às luzes do outro natal
e antes
fora em Olinda Bairro Novo no São Salvador
você
estremecendo ao me ver e retomar a consciência
e eu
tomando isso como prova de um grande amor
às vezes
penso que foi tudo culpa mesmo da linguística
o nome
Alfa era um aviso que eu não soube decifrar
regressão
em estado Alfa vidas passadas o transe dos xamãs
passividade
e pacificação clarividência telepatia premonição
mundo
alfa estado intermediário entre o sono e a vigília
mundo
alfa espaço sagrado onde habita a harmonia
mundo
alfa começo de onde vem a fonte
você
frente a frente com o seu fim
ontem
entraram no apartamento dois passarinhos
e ficaram
voando pela casa em contraponto
na véspera
da sua ida entrara um passarinho doente
ficou
no quadro da ponte do Porto e conseguiu sair
a casa
está impregnada de você
a sua
voz me chamando no mezanino
você
vendo toda noite os noticiários de todos os canais
assistindo
comigo documentários e filmes europeus
e ultimamente
preferindo os nacionais do Canal Brasil
você
um sociólogo resgatado do cenário underground
segurei
trinta anos toda a carga da nossa vida prática
e empurrei
sozinha até uma hérnia carros intermináveis de supermercado
protagonizando
empregos difíceis e causando estranheza ao senso comum
trazendo
sempre para casa uma comida diferente ao voltar do trabalho
ainda
que fosse a quilômetros de distância e descesse tarde da noite em estradas escuras
foram
tantos os momentos e lugares onde desperdicei beleza e energia
eu que
vestia as nossas filhas no Recife com roupas de Renoir
passeio
agora com elas e os netos de Boa Viagem a Piedade
de Casa
Forte à Cidade Universitária e ao Paço Alfândega
de Porto
de Galinhas à Praia dos Carneiros e a Itamaracá
antes
que recomecem todos suas viagens à Suécia e ao Ceará
e fico
sem remédio na mesma cidade da minha infância solitária
com a
mesma velha máquina de sonhos cotidianamente a me percorrer
caminho
triste nesta casa e não sei o que irá me acontecer
FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983). Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes, aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30 anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 261 | junho de 2025
Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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