quarta-feira, 18 de junho de 2025

JORGE DE LIMA (1893-1953)

 


Parnasiano, modernista, regionalista, surrealista, místico e épico, o poeta Jorge de Lima nasceu em União dos Palmares (AL) em 1893 e faleceu no Rio de Janeiro em 1953. Dois mil e treze marca, portanto, os 120 anos de seu nascimento e 60 de sua morte. Filho de um comerciante abastado, mudou-se com a família para Maceió em 1902 e, sete anos depois, foi estudar medicina em Salvador. Concluiu o curso em 1914, no Rio de Janeiro. Voltou para Maceió em 1915, e lá dividia o tempo entre a medicina, a literatura e a política. Em 1930, mudou-se definitivamente para o Rio. Na então capital federal, montou um consultório onde reunia amigos como o poeta mineiro Murilo Mendes e os romancistas nordestinos Graciliano Ramos, alagoano, e José Lins do Rego, paraibano. No final dos anos 30, o consultório passou a ser usado também como ateliê de pintura, outra arte que passou a cultivar. Jorge de Lima estreou na poesia com o livro XIV Alexandrinos (1914), todo composto de sonetos parnasianos. Pertence a esse volume o soneto “O Acendedor de Lampiões”, incluído exaustivamente em antologias e compêndios escolares. O poema reflete sobre a vida do personagem-título, que “ilumina a cidade”, mas “talvez não tenha luz na choupana em que habita”. Em seus livros seguintes, Jorge de Lima aparece como autor modernista de timbre marcadamente regional. O grande destaque desse momento é o conhecido poema “Essa negra Fulô”. Posteriormente, suas inclinações místicas, combinadas com surrealismo e religiosidade católica levaram Jorge de Lima para novos rumos poéticos. Em parceria com Murilo Mendes, ele escreve Tempo e Eternidade. Na obra completa dos dois poetas figuram poemas desse livro, lançado em 1935. Mas em cada uma aparece somente a parte de cada autor. Em sebos ainda é possível encontrar o volume original, com as duas partes, cujo preço hoje ultrapassa a casa dos 1000 reais. No mesmo diapasão místico de Tempo e Eternidade, Jorge de Lima publica A Túnica Inconsútil, em 1938. Nesse volume encontra-se o poema “O Grande Circo Místico”, que relata a saga da família austríaca dona do Grande Circo Knieps, companhia que percorria o mundo no início do século passado. O poema inspirou o espetáculo de dança homônimo assinado por Chico Buarque, Edu Lobo e Naum Alves de Souza. Há também um filme dirigido por Cacá Dieguez, ainda não lançado. Outro livro de profundo naipe religioso é Anunciação e Encontro de Mira-Celi (1943), personagem mítica e épica embebida no catolicismo místico do poeta. Por fim, em 1952 Jorge de Lima traz a público Invenção de Orfeu, que é de longe sua obra mais ambiciosa. Nela estão apuradas e reunidas todas as grandes mitologias do poeta. Com base em Dante Alighieri, Camões e em textos bíblicos, Invenção de Orfeu é um painel de explorações oníricas, surrealismo e momentos épicos. Poema de fôlego camoniano, divide-se em dez cantos, cada qual com numerosos poemas em diferentes métricas e formatos. No total, a obra estende-se por cerca de 300 páginas. Trata-se de uma criação complexa que ainda aguarda um trabalho de exegese mais profunda. Neste boletim, deixei de lado o Jorge de Lima parnasiano, modernista, regionalista e religioso e concentrei a atenção em outros textos, que estão em Poemas Escolhidos (1932), Livro de Sonetos (1949), e Invenção de Orfeu (1952). Multiartista, Jorge de Lima também escreveu romances e, nas artes plásticas, pintou, esculpiu, desenhou e fez colagens. A primeira imagem da coluna ao lado mostra o retrato da filha Maria Thereza, pintado por ele.

Um abraço, e até a próxima, [Carlos Machado]

 

 

DISTRIBUIÇÃO DA POESIA

 

Mel silvestre tirei das plantas,

sal tirei das águas, luz tirei do céu.

Escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo

para oferecer ao Senhor.

Não tirei ouro da terra

nem sangue de meus irmãos.

Estalajadeiros não me incomodeis.

Bufarinheiros e banqueiros

sei fabricar distâncias

para vos recuar.

A vida está malograda,

creio nas mágicas de Deus.

Os galos não cantam,

a manhã não raiou.

Vi os navios irem e voltarem.

Vi os infelizes irem e voltarem.

Vi homens obesos dentro do fogo.

Vi ziguezagues na escuridão.

Capitão-mor, onde é o Congo?

Onde é a Ilha de São Brandão?

Capitão-mor que noite escura!

Uivam molossos na escuridão.

Ó indesejáveis, qual o país,

qual o país que desejais?

Mel silvestre tirei das plantas,

sal tirei das águas, luz tirei do céu.

Só tenho poesia para vos dar.

Abancai-vos, meus irmãos.

 

 

O GRANDE DESASTRE AÉREO DE ONTEM

 

Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranquila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.

 

 

ANUNCIAÇÃO E ENCONTRO DE MIRA CELI, I

 

O inesperado ser começou a desenrolar as suas faixas em que estava escrita a história da criação passada e futura.

Retirou a sua imensa cabeça de dentro da torre, sob o estrondo das muralhas desabadas com o seu gesto.

A estreita porta abriu-se reverente para ele passar.

O pátio interior espraiou-se como um lago, e as colunas eternas que sustentavam as abóbadas substituíram os seus braços e as suas pernas.

Entretanto, ele continuava incluso na eternidade. Nos blocos retangulares de suas órbitas estavam encerradas inúmeras gerações.

Era tão velho que morava dentro da morte.

Era tão jovem que inscrevera no seu peito de pedra o nome de várias mulheres.

Dentro dos aquedutos que irrigavam os jardins suspensos em suas frentes haviam navegado muitos povos experientes.

Acharam a sua carne tão áspera como a sua solidão.

(…)

Era preciso ir à eternidade: ele já se encontrava nela.

Que nome mais antigo que o seu e da musa saída de si?

O horror ao espaço e à fragmentação obrigou-o a encher a planície de colunas com as insígnias de seus amigos e de operários que com ele trabalhavam.

Olhai atentamente os espelhos, que os vereis lá dentro.

E se vedes guerras, são sempre cenas bélicas contra grifos vigilantes ou sonâmbulos.

Entretanto, aparecem outros temas mais determinados: são as faces do Pai sob os mais vários signos; mas todas estas faces são uma, sob distribuição tripartite.

O inesperado ser luta pelos seus irmãos acossados e ama a magnitude do perigo.

As suas flechas já atravessam os corações superpostos de um pelotão de demônios.

E se nessa luta ele se declara morto, é que a morte lhe dá maior panorama da vida.

 

 

[O CAVALO EM CHAMAS]

 

Era um cavalo todo feito em chamas

alastrado de insânias esbraseadas;

pelas tardes sem tempo ele surgia

e lia a mesma página que eu lia.

 

Depois lambia os signos e assoprava

a luz intermitente, destronada,

então a escuridão cobria o rei

Nabucodonosor que eu ressonhei.

 

Bem se sabia que ele não sabia

a lembrança do sonho subsistido

e transformado em musas sublevadas.

 

Bem se sabia: a noite que o cobria

era a insânia do rei já transformado

no cavalo de fogo que o seguia.

 

Era um cavalo todo feito em lavas

recoberto de brasas e de espinhos.

Pelas tardes amenas ele vinha

e lia o mesmo livro que eu folheava.

 

Depois lambia a página, e apagava

a memória dos versos mais doridos;

então a escuridão cobria o livro,

e o cavalo de fogo se encantava.

 

Bem se sabia que ele ainda ardia

na salsugem do livro subsistido

e transformado em vagas sublevadas.

 

Bem se sabia: o livro que ele lia

era a loucura do homem agoniado

em que o íncubo cavalo se nutria.

 

 

[AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS]

 

Aqui foi um lugar de calmas horas,

ali era a distância. Em cima o pássaro.

Na planta essa raiz, e agora a ausência,

agora esse tecido alinhavado

por entre unhas de dedos invisíveis.

Apagaram-se as coisas tintas com

o sopro das palavras: geografias,

paciências, velhos trigos, decisões.

Aqui era um sinal, ali um número,

em cima esse fagote, e o anzol das plantas

fisgando o grão já grávido de sumos.

Agora esses molares ruminando

amargores sumidos, sais de medos;

agora a linha preta, a fronte baixa,

a luz escurecida, as mariposas.





FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983). Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes, aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30 anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 261 | junho de 2025

Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


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