Um abraço, e até a próxima,
[Carlos Machado]
DISTRIBUIÇÃO
DA POESIA
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros não me incomodeis.
Bufarinheiros e banqueiros
sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde é a Ilha de São Brandão?
Capitão-mor que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos, meus irmãos.
O GRANDE
DESASTRE AÉREO DE ONTEM
Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor
para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez,
despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas
arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor.
Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue
dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista,
mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como
se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou
ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu
como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos
pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranquila
e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente,
vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes
que pensam que é o arrebol.
ANUNCIAÇÃO E ENCONTRO DE MIRA CELI, I
O inesperado ser começou a desenrolar as suas faixas em que estava escrita
a história da criação passada e futura.
Retirou a sua imensa cabeça de dentro da torre, sob o estrondo das muralhas
desabadas com o seu gesto.
A estreita porta abriu-se reverente para ele passar.
O pátio interior espraiou-se como um lago, e as colunas eternas que sustentavam
as abóbadas substituíram os seus braços e as suas pernas.
Entretanto, ele continuava incluso na eternidade. Nos blocos retangulares
de suas órbitas estavam encerradas inúmeras gerações.
Era tão velho que morava dentro da morte.
Era tão jovem que inscrevera no seu peito de pedra o nome de várias mulheres.
Dentro dos aquedutos que irrigavam os jardins suspensos em suas frentes haviam
navegado muitos povos experientes.
Acharam a sua carne tão áspera como a sua solidão.
(…)
Era preciso ir à eternidade: ele já se encontrava nela.
Que nome mais antigo que o seu e da musa saída de si?
O horror ao espaço e à fragmentação obrigou-o a encher a planície de colunas
com as insígnias de seus amigos e de operários que com ele trabalhavam.
Olhai atentamente os espelhos, que os vereis lá dentro.
E se vedes guerras, são sempre cenas bélicas contra grifos vigilantes ou
sonâmbulos.
Entretanto, aparecem outros temas mais determinados: são as faces do Pai
sob os mais vários signos; mas todas estas faces são uma, sob distribuição tripartite.
O inesperado ser luta pelos seus irmãos acossados e ama a magnitude do perigo.
As suas flechas já atravessam os corações superpostos de um pelotão de demônios.
E se nessa luta ele se declara morto, é que a morte lhe dá maior panorama
da vida.
[O CAVALO EM CHAMAS]
Era um cavalo todo feito em chamas
alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia
e lia a mesma página que eu lia.
Depois lambia os signos e assoprava
a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei
Nabucodonosor que eu ressonhei.
Bem se sabia que ele não sabia
a lembrança do sonho subsistido
e transformado em musas sublevadas.
Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado
no cavalo de fogo que o seguia.
Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.
Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.
Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.
Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o íncubo cavalo se nutria.
[AQUI FOI
UM LUGAR DE CALMAS HORAS]
Aqui
foi um lugar de calmas horas,
ali
era a distância. Em cima o pássaro.
Na
planta essa raiz, e agora a ausência,
agora
esse tecido alinhavado
por
entre unhas de dedos invisíveis.
Apagaram-se
as coisas tintas com
o
sopro das palavras: geografias,
paciências,
velhos trigos, decisões.
Aqui
era um sinal, ali um número,
em
cima esse fagote, e o anzol das plantas
fisgando
o grão já grávido de sumos.
Agora
esses molares ruminando
amargores
sumidos, sais de medos;
agora
a linha preta, a fronte baixa,
a
luz escurecida, as mariposas.
FRANKLIN CASCAES (Brasil, 1908-1983). Folclorista, ceramista, antropólogo, gravurista e escritor. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 66 anos. A Universidade Federal de Santa Catarina mantém um arquivo com a obra de Cascaes, aproximadamente 4.000 peças em cerâmica, madeira, cestaria, gesso, gravuras em nanquim e desenhos a lápis, além de um razoável conjunto de escritos que envolvem lendas, contos, crônicas e cartas, todos resultados do trabalho de 30 anos do escritor junto a população ilhoa coletando depoimentos, histórias e estórias místicas em torno das bruxas, herança cultural açoriana. Por sugestão de Elys Regina Zils, Franklin Cascaes é o artista convidado da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 261 | junho de 2025
Artista convidado: Franklin Cascaes (Brasil, 1908-1983)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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