A tradição barroca e maneirista da literatura
portuguesa em que Ana Hatherly tantas vezes mergulhou, para dela colher
elementos formais, temáticos, simbólicos e de variada ordem com os quais
reinventaria a poesia portuguesa nos anos 60 e se reinventaria também a si
mesma, não poderia deixar de dar lugar a uma profusa produção ensaística sobre
essa categoria. Por isso, este seu livro completa uma trilogia iniciada em
1997, continuada em 2003 e terminada postumamente, nesta edição que a autora já
não chegou a ver pronta. Este livro último estabelece um paralelismo com os
seus dois antecessores, através do subtítulo. Assim, depois de Aspectos
do Imaginário Barroco, seguiram-se os Aspectos da Sensibilidade
Barroca e, finalmente, estes Aspectos do Pensamento Utópico
Barroco, que explicitam a utopia nos temas da esperança, do desejo, da
viagem, do mito, do misticismo, da imaginação e, ainda, nos recursos à
metáfora, à simbologia, à alegoria, à metamorfose. Ana Hatherly escrutina os
textos utópicos barrocos quer na sua dimensão profana, quer na ampla vertente
religiosa, inevitavelmente resultante da sociedade portuguesa contrarreformista
e pós tridentina.
Na explanação de todas essas vertentes, Ana
Hatherly procurou subtrair o Barroco ao sentido restrito de utopia social em
que muitos encerraram a utopia de Thomas More, explicitando as relações
inusitadas entre o real e a sua representação, que permitem a fecundidade de
mundos novos, não existentes, ocultos.
O lançamento da obra – que tive o gosto de
apresentar – ocorreu a 7 de janeiro de 2018, na Fundação Calouste Gulbenkian,
durante a programação prevista no âmbito da exposição “Ana Hatherly e o
Barroco: num jardim feito de tinta”, como forma de nos levar a todos ao âmago
das preocupações de Ana Hatherly, que sempre procurou os fios explícitos e
implícitos que conduzem o leitor e o criador ao caminho da inspiração e da
leitura interartística. A exposição retomou, no seu título, parte do admirável
verso de Ana Hatherly, que abre um dos seus poemas em que a poesia é, também,
metapoesia.
No seu
jardim feito de tinta
Com insólita
serenidade
O poeta
percorre as áleas da memória
E caminhando
por entre os signos
Contempla a
distração nula do tempo
O paradoxo
incrível do ser
A ferida
íntima da alma.
Este último livro de Ana Hatherly é constituído por
dez ensaios, sete deles inéditos, com a sua procedência identificada na página
imediatamente anterior à bibliografia geral da autora, embora de quatro deles
não se esclareça o enquadramento da sua criação. A sequência dos ensaios no
livro não obedece à cronologia da sua produção, mas a uma ordem interna do
próprio livro, que parte dos textos mais explicitamente esclarecedores do
pensamento utópico barroco e termina com uma reflexão sobre o lugar do Barroco
no século XXI, seguida da interpretação da presença destes códigos na poesia
experimental, que encerra a publicação. Ao refletir, nestes dois últimos
textos, sobre tempo, temporalidade e tradição, Ana Hatherly reflete também
sobre as formas de representação do tempo, em que o espelho assume relevância
particular, ao apresentar-se como plano recetador de vários tempos e objetos,
projetando-os e desdobrando-os em imagens da história do homem e do mundo.
Hatherly debruça-se sobre o seu significado simbólico ao longo da História,
dando-lhe também a sua própria interpretação: uso metaforicamente a imagem do espelho para ilustrar a importância que
o ressurgimento do Barroco teve no experimentalismo português dos anos 60-70.
A força utópica do Barroco que Ana Hatherly
procurou cartografar nestes ensaios foi também a que a inquietou poeticamente a
si própria e que germinou particularmente num poema seu, inserido na
antologia O Pavão Negro:
O que é que
leva o meu barco
para esta
praia
onde um
poder esquivo
se contenta
com a
ambígua oferta de palavras?
Estamos aqui
no exíguo
barco do desejo
exibidos
na frágil
singularidade do verbo
Insatisfeitos
sempre
aguardamos
que se abram
as
impensáveis portas da ilusão.
Cada ensaio deste livro constitui uma tentativa
progressiva de Ana Hatherly de se adentrar na explicitação dos sentidos dos
textos barrocos, lidos e divulgados também ao leitor a partir do paradigma utópico
que se expressa logo desde o título. No terceiro ensaio, Ana Hatherly entra em
diálogo estreito com a produção de outros críticos e ensaístas da literatura,
como Maria Lucília Pires, por exemplo, cujas pistas interpretativas propostas
na antologia Poetas do Período Barroco, a propósito de um
soneto de António Barbosa Bacelar, Hatherly explícita e
intencionalmente segue, para confirmar a relação intertextual que Lucília Pires
sugeria existir entre o soneto “Amoroso desdém de um belo agrado”, de Bacelar,
e o soneto “Um mover d’olhos, brando e piadoso”, de Camões. Nesse sentido, este
texto de Ana Hatherly é quase um exercício escolar de análise, mas o seu
objetivo é demonstrar que reescrever não é decalcar e que o Barroco é uma
reescrita criativa e transfiguradora da tradição que o antecedeu.
Para Hatherly, os códigos artísticos entram em
diálogo com a moldura cultural e social que aceita o seu modo de representação,
isto é, a forma como a imaginação neles constrói a expressão. A fricção entre o
real e o representado é, no entanto, uma permanência transversal a todos os
tempos, de que resulta um homem, leitor e espectador sempre inquieto, em busca
dos sentidos da arte, dos textos, da vida. O Barroco foi, para Ana Hatherly,
uma época que exigiu que se visse para
além do visível, para além do real, descobrindo a invisível essência na fugaz
aparência de todas as coisas. O artista barroco, ao constituir uma
vitalidade num tempo de representação simbólica, aponta a polissemia do real e
propõe o labirinto como imagem de um mundo em que é necessária orientação, guia
e esclarecimento. Tesauro, o pregador e tratadista italiano, famoso
sobretudo pelo seu tratado Il cannocchiale Aristotelico (1670), é, neste quarto
ensaio, chamado à colação, para explicar que o verdadeiro poeta é aquele que se mostra capaz de estabelecer conexões
entre as coisas, ainda que sejam as mais díspares, através do seu engenho,
isto é, da sua capacidade de encontrar semelhança entre coisas dissemelhantes.
Nessa visão de artista, o poeta descobre
e revela as profundezas da aparência,
tal como propôs Claude-Gilbert Dubois, autor que Ana Hatherly também recupera,
para explicar a simultânea unidade e
multiplicidade de que decorre a
necessidade obsessiva de interpretar, de dar a ver no invisível, de dar a ler
no ilegível, mostrando o que se furta à visão imediata da superfície do real,
porque não há vazio: tudo tem algo dentro, tudo é por fora e por dentro.
Na esteira destas reflexões, Ana Hatherly deteve-se
na forma como a arte pós tridentina, colocada ao serviço da Igreja, construiu
símbolos, metáforas e alegorias no âmbito da moralização da realidade, para a
qual a natureza contribuía com as suas flores, frutos, plantas e pedras
preciosas, que equivaliam a significados ocultos, que alguns autores, como
Isidoro Barreira, por exemplo, transferiam para tabelas de equivalências que
funcionavam como autênticos dicionários e auxiliares na descodificação dos
sentidos.
No quinto texto desta coletânea, citando Roger
Dadoun, a autora constata, que a vocação
da utopia não é a de ir em direção ao real, mas, pelo contrário, a de se alçar contra o real, de se afirmar
como o seu mais ardente rival. A sua percepção e delineação do conceito de
utopia barroca levara-a já, no ensaio inicial deste livro, a afirmar que o objetivo do pensamento utópico barroco (…)
não será o de cair na ilusão, mas o de realizar algo dentro da própria ilusão.
No entanto, para a autora, o valor operatório de um determinado passado
cultural é o de suscitar reflexão (no seu duplo sentido de pensamento e de
reflexo projetivo), gerando tradições de
vanguarda. Sublinhando o valor do tempo na evolução artística, no ensaio A reinvenção do espelho: reflexos da época
barroca na Poesia Experimental (que encerra a presente coletânea) Hatherly
regressa a Adorno (um autor que estruturou, de forma marcante, a totalidade da
sua obra ensaística), justamente pelos aspetos que permitem realçar a validade
da metáfora do espelho como ferramenta para nos situarmos no justo
enquadramento e perspectiva de nós mesmos, face a cada época (passado, presente
ou futuro): Uso metaforicamente a imagem
do espelho para ilustrar a importância que o ressurgimento do Barroco teve no
Experimentalismo português dos anos 60-70 do século XX. Uma tradição de vanguarda torna-se então no
equivalente a um espelho afetado pelas leis da mudança e da substituição, uma
metáfora da variabilidade.
Se o título desta coletânea de ensaios é Esperança
e desejo: aspectos do pensamento utópico barroco, não é possível deixar de
notar que, nos dois textos finais deste livro, se nota uma certa desilusão de
Ana Hatherly, ao pensar a arte contemporânea numa época tecnológica de consumo
e de mundos virtuais, que parece ter esbatido, se não perdido, a essência do
real, do espaço e do tempo. Assim, no ensaio sugestivamente intitulado “Diante
de uma desconhecida e fria azul piscina”, Ana Hatherly acentua a ideia de uma
quase paradoxal utopia do passado e
afirma, através das palavras de J. M. Rodrigues da Silva: a utopia, essa invenção do futuro que funcionava como um projeto de
mudança, foi substituída pela indiferença, se não pelo vazio. (…) A confiança
no futuro perdeu-se. No mesmo ensaio, convoca um texto seu, a “tisana 351”,
sublinhando essa incerteza face ao
possível futuro:
Tisana 351. A consolação da escrita. Penso
em Boécio escrevendo no limiar do desaparecimento, mas acreditando na
virtualidade dum real futuro. No meu século especulamos sobre a virtualidade do
real de nenhum futuro. Destruction
is fun, dizia um menino ontem na TV falando dos seus videogames.
Ao longo da ensaística de Ana Hatherly, tem o
leitor a possibilidade de penetrar na sua biblioteca mental, nas referências
amplas e diversas com que dialogou e recriou, inovou, pensou, replicou. Theodor
Adorno, Fernando Pinto do Amaral, Gaston Bachelard, Ernst Bloch, Omar
Calabrese, Jacinto do Prado Coelho, Deleuze, Jean Delumeau, Orosco Diáz, Claude
Gilbert Dubois, Gilbert Duran, Francisco Leitão Ferreira, Angus Fletcher,
Focillon, Gombrich, Guatari, Linda Hutcheon, Lyotard, Ares Montes, Walter
Moser, Santo Agostinho, Vítor Serrão, Vítor Aguiar e Silva, Luís de Moura
Sobral e muitos outros nomes são também convites a outras tantas leituras. Na
prática literária e artística, António Barbosa Bacelar, Tomás Pinto Brandão,
Jorge da Câmara, Camões, Soror Maria do Céu, Violante do Céu, Paul Éluard,
Soror Madalena da Glória, Gregório de Matos, Josefa de Óbidos, Luís Nunes
Tinoco são apenas algumas das referências mais evidentes, entre a enorme
profusão autoral com que entretece os seus ensaios. Por isso, teria valido a
pena, nesta edição, um índice onomástico que convocasse e tornasse fácil e
rápida ao leitor a localização de qualquer destes autores.
A edição destes ensaios de Ana Hatherly foi
particularmente cuidada. Ana Marques Gastão, que a orientou e supervisionou,
teve a preocupação de não apresentar estes textos de forma impessoal,
desligados da natureza de artista da sua autora, falecida em 2015. Se a
história da leitura e da cultura se interrogou várias vezes sobre o modo pelo
qual um leitor dá sentido a um texto de que se apropria, há, neste caso, que
perguntar também de que modo o editor de uma obra pode contribuir para a
descodificação e maior inteligibilidade dos textos que publica. No caso
de Esperança e Desejo – aspectos do pensamento utópico barroco,
existiu claramente uma proposta de leitura comparatista e interartística dos
textos, que muito beneficia o conjunto destes dez ensaios, criando dinamismos
entre o texto e o leitor, como sugeria Iser. Se já não podemos ouvir a voz de
Ana Hatherly, podemos acompanhar-lhe o traço e criar relações de interrogação
entre as dez imagens que precedem os outros tantos capítulos deste volume de
ensaios. E louvo infinitamente a escolha de desenhos da série “Metamorfoses da
Romã”, de Ana Hatherly, para, através das várias etapas e transformações deste
fruto, significar a maior ou menor legibilidade das formas, até à
impossibilidade de discernir qualquer forma ou motivo. As romãs acompanham as
considerações sobre mundos outros, desejados ou invisíveis, que se ocultam sob
formas que desconfortavelmente nos exigem descodificação, sentido,
questionamento: porque “tudo é por fora e por dentro”. As romãs de Ana Hatherly
são simultaneamente perspectivadas do exterior e do seu interior, exibindo um
corte de plano coronal, onde a essência e a estrutura do fruto se expõem, em
bagos cujos traços os aproximam de corredores labirínticos ou de grafismos de
escrita.
Não poderíamos esperar destes ensaios de Ana
Hatherly publicados postumamente senão a sua natureza de chamamento,
descodificação, convocação de vozes, relação, numa linguagem que Hatherly
partilha com a da sua poesia. Constituindo este volume os
derradeiros textos publicados da sua autora, a organizadora desta edição
incorporou pertinentemente, no seu final, uma bibliografia total de Ana
Hatherly, que é simultaneamente uma bio-bibliografia. Mas se a vida e a obra se
cumpriram, a leitura coloca cada texto seu na transcendência do tempo,
superando o efémero.
ISABEL MORUJÃO é professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço & Memória” (CITCEM). Doutorou-se em 2005 com a tese Por trás da Grade: poesia conventual feminina em Portugal (secs. XVI-XVIII), editada em 2013 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, tendo constado da short list do prêmio Pen Club português. A sua área preferencial de investigação é a escrita feminina dos sécs XVI-XVIII, nas suas várias tipologias e manifestações.
JORGE DE LIMA (Brasil, 1893-1953). Poeta, ensaísta bissexto, artista plástico. Sua obra está ligada à segunda geração do modernismo brasileiro, apresentando traços do surrealismo e símbolos religiosos e pagãos da cultura negra. Misticismo mágico que melhor o situa como um mestiço lírico, e ele próprio um dia diria: O lirismo perdeu a sua liturgia. Esta liturgia era exatamente o que sempre buscou recuperar, tendo se aventurado por diversos modos de composição, do soneto ao poema branco e a poesia épica. Em uma dessas vertentes criativas enveredou pelo recorte fascinante da colagem surrealista, seu grande poema plástico, que o traz à nossa edição como artista convidado.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 04 – TRIPLOV (PORTUGAL)
Artista convidado: Jorge de Lima (Brasil, 1893-1953)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
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