sexta-feira, 4 de julho de 2025

FLORIANO MARTINS | Conversa com Maria Estela Guedes

 


FM | Vamos começar pelas razões de ser do título e a velha questão em torno de ser ou não ser uma revista.

 

MEG | Triplov.pt. O Triplov não é uma revista, sim o editor da Revista Triplov. Triplov, escrito VVV, é o nome de uma revista publicada em Nova Iorque por André Breton. Há vinte e quatro anos, idade do Triplov, que uns consideram portal, outros plataforma, mais modestamente website, eu não sabia isso. Eu diria que é uma editora, mas podem chamar-lhe o que quiserem e pronunciar triplo V ou triplov. Só não gosto que lhe chamem revista porque isso se presta a confusões e a sua estrutura não é a de uma revista. Basta ver que o atualizo quase todos os dias. A revista tem certa periodicidade. Então, o nome Triplov não significa, o nome conta histórias: a do surrealista-mor, André Breton, não a conheço; quanto à minha, conto-a de novo. Quando fundei o Triplov, quis homenagear um mestre, um artista plástico, ensaísta, cineasta (o filme Dom Roberto é co-fundador do novo cinema português, o que sai da comédia de pátio, muito cantada, para o filme promovido pelos Cahiers du Cinéma), escritor, que muito me influenciou: José Ernesto de Sousa. Trabalhei com ele, fomos a Madrid, à Fundación Juan March, onde estreou o seu multimídia Almada, um nome de guerra, para o qual o Ernesto de Sousa me nomeou assistente de realização. Diga-se que o componente principal do espetáculo é um filme com o artista e escritor Almada Negreiros. Bom, a dada altura, o Ernesto criou um grupo de três, encarregado de animar o meio artístico de Lisboa, e realmente fizemos umas festas, editamos a caixa Pipxou, e etc. Componentes do grupo, chamado VVV: ele, José Ernesto de Sousa, eu, Maria Estela Guedes, e um colega das aulas de fotografia da Cooperativa Diferença, uma galeria com 40 anos, marco histórico na abertura de Portugal às vanguardas, Fernando Camecelha. Pensei que o VVV era o Veni vidi vici de Júlio César, não me preocupei com o assunto, apesar de algo imodesto. Quando criei o Triplov e o dediquei ao Ernesto de Sousa, tive de descobrir um nome para o site, e saiu esse: VVV ou triplov. Já agora, quem finalmente me veio a esclarecer sobre o fato de VVV ser a revista de Breton, foi um dos mais distintos surrealistas brasileiros, que muito veio a colaborar com o Triplov e com a Agulha Revista de Cultura, amigo nosso, Claudio Willer. A partir daí, o Triplov passou a ser animado por artistas e escritores atraídos pelo VVV implícito no Triplov, o que muito ajudou o site a progredir: surrealistas e jovens autores da América Latina, convocados sobretudo por ti, Floriano Martins, e por Claudio Willer.

 

FM | Na época em que surge Triplov, qual o cenário de publicações afins em Portugal, virtuais ou não?

 

MEG | Só havia duas ou três publicações importantes em suporte de papel, ligadas à Fundação Calouste Gulbenkian e à Universidade, e virtuais só me lembro de uma, a Storm Magazine, salvo erro conduzida pela Maria João Cantinho e pela Helena Vasconcelos. Nesse tempo de pioneirismo, o que havia era meia dúzia de blogues e ainda só começavam a despontar as páginas de instituições. A mais importante revista era e continua a ser a Colóquio, da Fundação Calouste Gulbenkian, nas duas versões, Letras e Artes. As revistas importantes são as acadêmicas e digamos que na Academia todos se portam bem, todos seguem as normas. Não há espaço para as transgressões da experimentação, não há liberdade para cometer erros. Tudo isso acaba por ser assimilado décadas depois, passado já o impacto inicial, mas no ato da criação, o absolutamente novo é um corpo estranho, daí que não tenha entrada na Academia. Então nada anti-normativo existe nelas, são, e muito dignamente, grandes veículos difusores de cultura. O Triplov tem espaço para a travessura e para o erro, não existem muitas normas para além da exigência de envio de textos em Word e imagens em .jpeg, por isso aproveito, enquanto seu porta-voz, para dizer algo de muito polémico e temerário, mas que avalio com o maior sentido crítico e consciência de justiça: hoje, a revista que ombreia em importância com a Colóquio, é A Ideia, de origem anarquista, liderada pelo nosso comum amigo, o escritor António Cândido Franco, e basta o anarquismo para sugerir que nela existe uma porta aberta para o não-normativo. O António Cândido desempenha com A Ideia o papel que tu desempenhas com a Agulha Revista de Cultura: independentemente de outros méritos, as duas revistas têm feito um levantamento extenuante dos autores surrealistas, alguns perfeitamente desconhecidos até então. A diferença reside no suporte e consequente difusão do conteúdo: em suporte de papel, A Ideia é uma revista de culto, com tiragem limitada; a Agulha Revista de Cultura, virtual, chega potencialmente às mais recônditas partes do mundo.

 

FM | O próximo passo seria então, em 2009, criar dentro do selo Triplov uma publicação periódica, a Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências. Houve uma primeira etapa em que a revista mantinha um vínculo direto com a Agulha Revista de Cultura, porém logo se estabeleceu uma nova série, que hoje se encontra já com mais de 60 números publicados. Quais as particularidades relevantes dos bastidores da criação dessa revista?

 


MEG | Foi muito bom partilhar contigo a Revista Triplov, que já passou por várias fases, entre elas uma em cooperação com o José Augusto Mourão, e hoje é monotemática: cada tomo ocupa-se de apenas um autor. Contigo as vantagens foram a da abertura ao universo criador da América do Sul e a de tu seres uma pessoa organizada, que queria reuniões com pauta… Floriano, eu nunca trabalhei com pautas, fiquei aterrada quando tal propuseste!

Hoje, penso: quem, minimamente representado no Triplov, merece, ou aguenta, um tomo inteiro da Revista? Digo tomo em vez de número porque a revista deixou de ser numerada. Então penso no autor e pergunto-lhe se estaria interessado nisso e até hoje só recebi um não, um não de modéstia, de quem não se sentiu à altura. Mas eu não busco só o autor no cume da sua glória, não me interessam os demasiado consagrados, esses não precisam de mim, busco quem já tem obra, mas é ainda razoavelmente desconhecido, alguém que a Revista Triplov possa ajudar a progredir na sua carreira.

De momento não tenho ninguém com quem partilhar a tarefa. Ninguém como tu, Flor! Estou por aqui sozinha a pôr ficheiros no céu, e nem sequer posso recorrer ao Magno para solucionar problemas técnicos, porque o Magno morreu em janeiro passado. Tenho saudades do trabalho em equipa, se bem que eu só saiba fazer tudo sozinha. Muitos colaboradores pensam que o Triplov é uma empresa, que eu dou ordens e espero ser obedecida por uma dúzia de funcionários. Fico vaidosa, quer dizer que a imagem do Triplov é essa, algo em grande, estilo Vale do Silício, mas realmente, por detrás do ovo, se me permites surrealizar um tanto, por detrás do ovo do triplovo nem galo existe, só mesmo uma galinha...

 

FM | Também em 2009 é criado um dossiê intitulado “Surrealismo: Poesia & Liberdade”, onde se recolhem, em especial, textos críticos valiosos para a compreensão do Surrealismo, seus fundamentos e atualidade. Posteriormente surge um pequeno desdobramento intitulado “Surrealismo actual”. Qual a razão de ser dessa participação e o que provocou a não continuidade do dossiê?

 

MEG | Não tenho conhecimento de nada disso, Flor… Quero dizer: não me lembro de ter existido compromisso de continuar algo… Floriano Martins, o especialista em surrealismo és tu e não eu… De qualquer modo, tecnicamente, isso tornou-se impossível. Agora eu trabalho com o WordPress, que não admite dossiês, os trabalhos são isolados, independentes uns dos outros. Mais dossiês sobre surrealismo, só em tomos monotemáticos da Revista. Organiza um, manda e eu ponho-o no céu. Em todo o caso, os autores do Triplov pertencem maioritariamente ao que vocês, na América, chamam surrealismo. Eu não excluo quase ninguém, a porta está aberta para todas as tendências da modernidade. Nota: eu só convido para a Revista Triplov, para o Triplov, mais semelhante, nos conteúdos, a um jornal, aceito as propostas de colaboração que me chegam. O meu trabalho está reduzido ao mínimo: o de pôr em linha.

 


FM | Triplov cresceu muito, abriu afluentes inesgotáveis, em várias áreas, de tal modo que, até mesmo pelo acesso labiríntico a esses afluentes, possa dar a impressão de que não se tem controle sobre seu gigantismo. Como se comporta a sua direção hoje? Quem compõe o núcleo editorial e como o mesmo é organizado?

 

MEG | O fato de ser inviável partilhar o trabalho de pôr em linha faz com que a equipa editorial não exista, a bem dizer. A M Céu Costa, vice-diretora, é consultada quando preciso, mas pauta é coisa que não existe. Vou publicando quando as colaborações chegam, e felizmente existe um certo número de colaboradores regulares que só eles já bastam para assegurar a atualização do portal: A.M. Galopim de Carvalho, português, Adelto Gonçalves, do Brasil, os portugueses António Barros, Nicolau Saião e António Justo, mais aqueles a quem peço desculpa por não me acorrerem de momento à memória, ah, sim, Rolando Revagliatti da Argentina, existe um núcleo de autores assíduos que garante a vitalidade do Triplov e acolhe os recém-chegados, pois há sempre os que entram de novo. “Pauta” eu nem sabia o que era, aprendi contigo…

 

FM | Em termos de recepção, influência, diálogo, quais as relações estabelecidas com revistas, fundações, bibliotecas virtuais etc., dentro e fora de Portugal?

 

MEG | Sim, a Faculdade de Letras, através do CLEPUL, organizou um tomo da Revista Triplov e de vez em quando envia colaborações; o mesmo aconteceu com as vanguardas, sediadas no portal Po.Ex, que também organizaram um tomo, através do António Barros. Eu mesma sou convidada para colóquios e outras sessões presenciais. Para colaborar em antologias, sim, muitos convites. A maior parte da interação verifica-se entre Portugal e Brasil, significando isto que vai dando frutos valiosos a nossa associação originária: Agulha+Triplov ou Estela+Floriano. O Triplov é conhecido sobretudo no campo universitário ou acadêmico, em termos gerais. Uma das amizades maiores do Triplov e sua Revista é com universidades de São Paulo, através de Ana Maria Haddad Baptista, responsável pela curadoria da obra de Marco Lucchesi, atual diretor da Fundação da Biblioteca Nacional. É ele o autor contemplado no próximo volume da Revista Triplov. Já agora, que perguntas sobre bibliotecas, tive a honra de ser convidada por Ana Maria Haddad Baptista, diretora, para o conselho científico da Revista do Livro, publicada pela Biblioteca Nacional. Tudo isto decorre da existência do Triplov e Revista Triplov.

 

FM | Se pensamos em aspectos como destino, missão, obsessão, dentre outros acidentes existenciais, quem é a Maria Estela Guedes?

 

MEG | Olha, Flor, eu devo ser alguém como a Padeira de Aljubarrota, mulher de armas, capaz de travar batalhas sozinha contra uma dúzia de agressores, apesar de preferir ficar enrolada no sofá a comer amendoins enquanto passam na telinha os episódios da série “Vera” e do jurássico “Perry Mason”…

 

FM | Como anda a tua criação?

 


MEG | A minha criação nunca é prioritária. Prioritário és tu, com esta entrevista, inserida numa Agulha Revista de Cultura que parece dedicada a mim, tanto de mim mostra, e desde já agradeço, comovidamente. Prioritária é a Revista Triplov, dedicada a Marco Lucchesi, que quero pôr em linha hoje à noite ou amanhã… Não recuso nada a ninguém, colaboro quando pedem. Vai sair, aí no Brasil, uma antologia dedicada a Machado de Assis. Contos, seguindo a norma de se relacionarem com Machado de Assis. Pois bem, fui até ao nosso atual Museu Miguel Bombarda, ex-hospital de alienados homónimo, para me inspirar no panóptico, fiz pesquisa, deu muito trabalho o conto! Vai sair em junho, junta Miguel Bombarda, alienista que morreu dois ou três dias antes de implantada a nossa República, assassinado por um doente ou pseudo-doente, junta esse revolucionário a personagens de O alienista, de Machado de Assis.

O meu livro mais recente, saído em 2024 nas Edições Esgotadas, é um conjunto de ensaios, Corpus Corpus – José Emílio-Nelson & Herberto Helder.

 

FM | Esquecemos algo?

 

MEG | Esquecemos tudo o que falta, Flor! Tem de ser assim, para da próxima vez termos algo de novo para conversar. E falta, pelos vistos, mais assunto surrealista. Fico à espera dele para um dos próximos tomos da Revista Triplov.

Que não esqueça de maneira nenhuma o que até aqui também ainda faltava: um beijo enorme para ti, compagnon de route, e um abraço a esse Brasil que venho seguindo de longe, com o qual tenho sofrido bolsonarices inenarráveis, porque muito vos amo.




FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entrevista realizada em maio de 2025. 




JORGE DE LIMA (Brasil, 1893-1953). Poeta, ensaísta bissexto, artista plástico. Sua obra está ligada à segunda geração do modernismo brasileiro, apresentando traços do surrealismo e símbolos religiosos e pagãos da cultura negra. Misticismo mágico que melhor o situa como um mestiço lírico, e ele próprio um dia diria: O lirismo perdeu a sua liturgia. Esta liturgia era exatamente o que sempre buscou recuperar, tendo se aventurado por diversos modos de composição, do soneto ao poema branco e a poesia épica. Em uma dessas vertentes criativas enveredou pelo recorte fascinante da colagem surrealista, seu grande poema plástico, que o traz à nossa edição como artista convidado.

 


Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 04 – TRIPLOV (PORTUGAL)

Artista convidado: Jorge de Lima (Brasil, 1893-1953)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025




∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário