sexta-feira, 4 de julho de 2025

MANUEL RODRIGUES VAZ | Três reflexões para passar bem a noite: Curt-Meyer Clason, Denis Diderot e Vitório Káli

 


1
Curt-Meyer Clason: o nosso cometa cultural

Embora a 5 mil quilómetros de distância, em Luanda, devido à minha profissão de jornalista, tinha acesso a toda a imprensa que se publicava em Portugal, pelo que tenho ainda na lembrança que, no princípio dos anos 70, as manifestações culturais na capital portuguesa apresentavam uma constância recorrente algo estranha: tinham origem, cada vez com mais frequência, no Goethe-Institut de Lisboa.

Não havia volta a dar: eram exposições, eram concertos, eram palestras, eram colóquios, eram encenações teatrais, enfim, eram todo um sem número de manifestações a que acorria um público cada vez maior e mais interessado.

O causador destas coisas estranhas no ambiente penumbroso e estático que era a Lisboa daquela época, tinha um nome: chamava-se Curt-Meiyer Clason (1910-2012) e sobre a sua estada em Portugal à frente do Goethe-Institut, em que reflecte sobre a sua acção, deixou disto testemunho no livro Diários Portugueses, que a Editora Documenta publicou em 2013.

Curt Meyer-Clason não precisa de apresentação. A sua ação cultural, no sentido mais amplo do termo, como o nosso cometa cultural, durante os sete anos em que dirigiu o Instituto Alemão de Lisboa, constitui credencial suficiente para quem, nesta cidade e neste país, estava minimamente atento ao que se passava à sua volta. […] Ele foi o nosso cometa cultural. Como diz João Barrento, que traduziu os Diários Portugueses: Ao longo das suas 400 páginas o discurso flui, variado e vivo, cheio de nuances e de uma invulgar capacidade de observação de pessoas e de factos, que nunca valem por si, mas sempre por aquilo que revelam de uma situação existencial, política e cultural. É uma crónica literária de um dia a dia cheio de revelações e descobertas, em que as mais pequenas coisas, mesmo a conversa aparentemente mais estéril ou o mais seco papel oficial, se transformam num meio de chegar às mais recônditas e por vezes insuspeitadas formas de pensar e agir de dois povos e de dois mundos, entre os quais Meyer-Clason se situa. Situação nada cómoda para quem, desde que pôs pé neste país, procurou agir à margem de (entenda-se: quase sempre contra) receios diplomáticos, interesses económicos e estratégias políticas, e assim transformar o seu Instituto num dos mais vivos e abertos fóruns culturais de Lisboa, uma Cidade antes entorpecida e reprimida, e depois um pouco perdida na doce anarquia dos primeiros tempos da Revolução.

Sobre este período, diz-nos ainda o germanista João Barrento, O que Meyer-Clason fez na Lisboa entre a primavera marcelista e o período pós-PREC poucos o fizeram: chega a Lisboa e em pouco tempo muda a paisagem cultural de uma Cidade meio adormecida e espartilhada pela censura de uma ditadura disfarçada, isolada e já descrente de si mesma. E fá-lo entrando pela porta da esquerda, de uma esquerda certamente não coesa, marcada por tonalidades que os Diários espelham, e que vão da mais ortodoxa à mais festiva. Mas também abrindo portas que o regime normalmente fechava, trazendo ao seu Instituto figuras, alemãs e não só, que só aí poderiam ser vistas e ouvidas, fazendo germinar sementes que o terreno estéril da ditadura não conhecia. Aí, no Goethe desses anos, como escrevi algures, podiam pensar-se coisas que cá fora eram impensáveis.

Por sua vez, Rui Esteves salienta que recordar Curt-Meyer Clason é recordar um homem singular. Um escritor singular. E assinala: Saliento escritor, de que os Diários Portugueses são a prova. Aí encontra-se condensada uma visão de Portugal, uma visão de estrangeiro (amigo e estrangeirado), um olhar atento sobre a sociedade, as mentalidades e a cultura portuguesas. Um retrato de uma experiência de vivência (em forma diarística, com recorte literário e reflexão constante) da fase do fim da ditadura. Um livro de sagacidade mordaz, mas repleto de humor. Certeiro, muito atento e tremendamente bem escrito. E político. Um livro político. Mas terno também. Um livro que traz consigo a singularidade de uma visão do mundo (Weltanschauung), pelo olhar de um homem de causas, firme, que sabia o que queria.

De várias maneiras podemos afirmar que estas memórias são, antes mais, uma reflexão sobre a Europa, e aqui vale a pena lembrar que têm muito a ver com as teses de Eduardo Lourenço, que acaba de nos deixar, constituindo acima de tudo um ponto alto para nos conhecermos melhor como povo e como nação, através de um Outro que nos quis compreender da melhor maneira, e que o conseguiu, levando-nos a também nos conhecermos melhor, o que é sempre conveniente para nos melhorarmos.

De várias formas, Curt conseguiu fazer do seu Instituto um polo dinamizador de cultura e de saber, um lugar de encontros, um contributo para o progresso, empenhando-se em divulgar a cultura alemã, mas permitiu também que nas instalações do Instituto se desenvolvessem atividades culturais de autores e artistas portugueses – entre peças de teatro, conferências e debates – que possibilitaram um espaço de discussão de ideias, muitas das quais em oposição ao regime ditatorial salazarista. Meyer-Clason – atravessando na sua existência praticamente todo o século XX – viveu ainda no Brasil, Argentina, França e na Alemanha natal, vindo aí a falecer em 2012 com cento e um anos.

Mas deixemo-lo falar: No fundo, sei pouco de Portugal, sei pouco da sua história. Conheço alguns escritores, traduzi alguns livros, visitei o país uma vez. Mas falo e escrevo a sua língua, mais exactamente a língua do maior território descoberto por Portugal, o Brasil, esse idioma de vogais claras, vibrante, cantante, enriquecido pela África negra e pelo Japão, que tornou mais leve a austera sintaxe retórica do português europeu, mais fechado, mais cerrado. E continua: Pois é, ninguém diz uma palavra sobre Portugal, sobre o seu presente soterrado, sobre o seu futuro hipotecado. Mas, quem é este Ninguém? Naturalmente, ninguém, todos e cada um dos que nem pensam nas pessoas deste país, nada têm que ver com ele, mas apenas agem como se. Como se. Os gestores da cultura das nações ocidentais olham do alto do seu camarote, pachorrentos, entediados, para o palco dos acontecimentos portugueses, a maior parte das vezes sorriem sem darem por isso, ou bocejam sem darem por isso. Falam com os Portugueses, geralmente num francês mediano, se não forem franceses, e por isso não reconhecem as suas particularidades, o seu valor específico, porque não aprofundam a língua. (…). E os naturais do país baixam o olhar quando uma palavra impensada aborda a actualidade portuguesa, ou então atravessam o interlocutor com o olhar e deixam-lhe a liberdade de escolher entre estar a ser ignorado, posto a nu ou crucificado. Eles, todos, parecem estar de acordo numa coisa: o silêncio, e sobretudo o silêncio que oculta alguma coisa, é de ouro, para além de poupar os nervos e de ser o menor dos males e o menor dos sacrifícios. Para quê criar problemas para si, e também para os outros? A vida é tão curta e pode ser tão agradável – especialmente em Portugal. E é claro que todos «amam» este país, dizem, e isso quer dizer: as suas praias sem fim e sem gente, os seus vinhos saborosos e baratos, especialmente o verde, os seus bordados a preços baixos, feitos à mão, as criadas submissas (encargos sociais é coisa que praticamente não existe), a grande variedade de peixes… E então, meu caro, isto não é fantástico? E as hortaliças, aqueles enormes pimentos, em travessas de estanho nas montras, parecem pinturas de Braque, e ao fundo esta luz viva de Portugal, as mais puras transparências, indescritível… Ah, se eu pudesse pintar tudo isto, este céu reverberando de aromas, é de perder a cabeça, um abismo de encantamento em que desejamos afundar-nos, sozinhos, completamente a sós, e ir desaparecendo pouco a pouco…

Cyro de Mattos, autor brasileiro traduzido por Meyer-Clason, que também traduziu para alemão alguns dos mais importantes escritores brasileiros mas é conhecido sobretudo por ser o tradutor de Guimarães Rosa, qualificou-o como um verdadeiro e apaixonado construtor de pontes literárias, e Berthold Zilly (2012), num artigo in memoriam bastante elogioso, descreve Meyer‑Clason como o mais importante mediador entre o mundo ibero-americano e o mundo germânico no século XX, um mestre da língua alemã, um grande humanista, tendo-se revelado ao longo da sua vasta vida um incansável militante contra qualquer tipo de preconceito racista, social ou nacionalista, em favor da liberdade e da justiça social, um intrépido homem de letras polivalente, [e] cosmopolita.


Resumindo: a par de um embaixador britânico que esteve acreditado em Lisboa no início deste século, Alex Allis, que até casou com uma portuguesa, Curt-Meyer Clason foi o diplomata que melhor nos compreendeu e aceitou com as nossas forças e fraquezas. Ele apenas lamentava que não tivéssemos arranjado dirigentes para nos merecerem. Por ele, em suma, fez o que sentia que tinha de fazer, isto é, incutir que a competência e a consciência eram o horizonte orientador da sua ação e devia ser a de nós todos. Foi, portanto, e acima de tudo, um homem lúcido, à boa maneira de Fernando Pessoa, o que lhe valeu, claro, muitas incompreensões e inimizades. Não esqueçamos que o Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão chegou a enviar um funcionário propositadamente para o espiar, e era normalmente repreendido pelos gestores de algumas empresas alemãs que não gostavam que ele desse importância aos intelectuais portugueses mais recalcitrantes.

 

2 Diderot e a arte de pensar livremente

Numa altura em que as grandes figuras do século XVIII andam esquecidas (assim como muitos dos seus princípios), esta biografia – Diderot e a arte de pensar livremente, edição da Temas e Debates, 2019 – ajuda de vários modos a ressuscitá-las. Nela encontramos Diderot, um homem de pulso, a gerir toda uma enciclopédia e resistindo a todas as pressões do seu tempo. É um livro de leitura fácil, cheio de peripécias e humor, quer do tempo de Diderot, quer da sua vida pessoal. Interessantes são as relações atribuladas com Jacques Rousseau, homem demasiado sensível, e com Catarina, a grande; assim como o capítulo dedicado às suas mais importantes obras literárias.

Trata-se de uma biografia de Diderot plena de vivacidade, retratando de forma magistral o filósofo profeta que ajudou a construir os alicerces do mundo moderno. Neste livro organizado tematicamente, Andrew S. Curran descreve de forma vívida o relacionamento tormentoso de Diderot com Rousseau, a sua curiosa correspondência com Voltaire, as suas paixões amorosas e as suas opiniões frequentemente iconoclastas sobre a arte, o teatro, a moral, a política e a religião. Porém, o que este livro evidencia de forma brilhante é a maneira como a tumultuosa vida pessoal do escritor se tornou uma componente essencial do seu génio e da sua capacidade para escarnecer de tabus, dogmas e convenções.

Afirmando que Os filósofos como Diderot eram as estrelas de rock da sua geração, nesta biografia que dedicou ao autor da Enciclopédia, Andrew Curran mostra um homem brilhante, irrequieto e provocador, cujo nome se tornou conhecido das elites cultas do Vaticano a S. Petersburgo. Catarina, a Grande, da Rússia, foi uma leitora fiel de Diderot, e, além de o ter apoiado financeiramente, convidou-o a deslocar-se a à então capital russa para estudar a possibilidade de democratização do Império Russo.

Denis Diderot nasceu no dia 5 de outubro, em 1713, numa pequena aldeia de província francesa – Langres. O seu falecimento foi em 1784, em Paris. As suas principais influências no ramo foram: Voltaire, Isaac Newton, John Locke e Baruch Espinoza.

Filho de um mestre cuteleiro, cedo os pais perceberam que era dotado de uma inteligência excecional. Estudou num colégio jesuíta com o objetivo de se tornar abade – mas o lugar que ambicionava foi-lhe recusado. O seu espírito inconformista haveria mais tarde de fazer dele um feroz opositor da Igreja, tendo feito uma campanha contra Deus durante toda a sua carreira.

Desde os primórdios dos seus estudos, a sua grande preocupação foi em relação ao homem e à sua natureza. Sem sombra de dúvida, podemos afirmar que ele foi um dos maiores admiradores da vida na sua essência.

E, para comprovar o fenómeno da vida, Denis Diderot nunca se apoiou em bases cristãs ou religiosas de qualquer vertente. Pelo contrário: ateu, ele também foi extremamente materialista, nada o tendo impedido de seguir livremente com as suas próprias crenças. Algumas delas, que servem de base para a interpretação de pensamentos filosóficos, artísticos e/ou de natureza são utilizadas até aos dias atuais.

Entre os anos de 1729 e 1732, Denis Diderot partiu para a sua primeira formação universitária. Em Paris, ganhou o diploma em Artes. Paralelamente, ele tornou-se um grande estudioso de matérias como filosofia, literatura, legislações e, até mesmo, algumas teorias matemáticas. Além disso, foi um dos símbolos da época iluminista e inspirador para o desenvolvimento da Revolução Francesa – principalmente na escolha dos ideais nacionalistas.

No ano de 1745 o filósofo foi, pela primeira vez, contratado para dar a sua contribuição numa enciclopédia inglesa – mesmo que só para desempenhar uma tradução. Pelo jeito, ele desenvolveu o gosto pela coisa, uma vez que a partir de então foi um profissional primordial para o desenvolvimento de inúmeros materiais nesse sentido.

Quando trabalhou com o filósofo Jean Le Rond d’Alembert na organização de uma nova enciclopédia, a conhecida Enciclopédia, Denis Diderot nem sequer imaginava que, anos depois, seria uma das grandes influências pelas cabeças que comandavam a Revolução Francesa. O motivo? A sua essência extremamente materialista e racionalista ao mesmo tempo, propondo de forma instantânea uma separação entre os interesses do Estado e da Igreja. Este maciço dicionário não só trouxera para a ribalta o sacrilégio e o livre pensamento, como espoletara um escândalo que durara décadas e envolvera a Sorbonne, o Parlamento de Paris, os jesuítas, os jansenistas, o rei e o papa. Além disso, ele também se ocupou de assuntos como o combate às crenças negativas (como as superstições, por exemplo) e as próprias manifestações de pensamentos que se estabeleciam no âmbito de inúmeras instituições religiosas.

Encarcerado devido ao seu ateísmo em 1749, Diderot decidiu reservar os melhores escritos para a posteridade – ou seja, para nós. No extraordinário espólio de originais não publicados, Diderot desafia todas as verdades aceites no seu século, da santidade da monarquia à justificação racial do tráfico de escravos e às regras da sexualidade humana.

Conhecido sobretudo como filósofo e autor (com d’Alembert) da Encyclopédie (publicada entre 1750 e 1772), Denis Diderot (1713-1784) foi uma das mais ilustres figuras do Iluminismo. A sua atividade fervilhante tocou muitas áreas: escreveu sobre o colonialismo, imaginou a evolução das espécies antes de Darwin, denunciou a escravatura e fez crítica de arte.

Idolatrado por Catarina, a Grande, da Rússia, adquiriu para ela o núcleo inicial da coleção do que viria a ser o Museu do Hermitage em São Petersburgo, e foi generosamente recompensado. Embora tenha atingido a celebridade em vida, guardou os seus escritos mais pessoais e controversos para serem publicados a título póstumo.

Mas nem na morte encontrou repouso: no inverno de 1793, nove anos depois do seu desaparecimento e durante os desmandos da Revolução, um bando de ladrões de sepulturas profanou o seu túmulo. Depois de retirarem da cripta o caixão de chumbo de Diderot, os homens limitaram-se a despejar o corpo em decomposição para cima do chão de mármore da igreja, conta Andrew S. Curran.

Entre estes escritos, encontravam-se dois romances muito diferentes, mas igualmente brilhantes. O primeiro, A Religiosa, é uma cativante pseudobiografia de uma freira que sofre inimagináveis maus tratos depois de anunciar que quer abandonar o convento. De vários modos é uma recriação e a denúncia do que tinha acontecido a uma das suas irmãs.

O segundo, Jacques, o Fatalista, é um antirromance inconclusivo, em que Diderot usou a ficção para abordar o problema do livre-arbítrio. Mas havia também grossos livros de apontamentos de crítica artística revolucionária, uma crónica da raça humana sem intervenção divina, com tonalidade de ficção científica, um tratado político secreto escrito para Catarina, a Grande, uma sátira humorística sobre o absurdo dos costumes sexuais cristãos, passada no Taiti, bem como algumas das mais comovedoras cartas de amor da história da literatura francesa. Quando nos familiarizamos com o âmbito da obra de Diderot ficamos estupefatos: entre outras coisas, o Filósofo sonhou com a seleção natural antes de Darwin, com o complexo de Édipo antes de Freud e com a manipulação genética duzentos anos antes de a ovelha Dolly ter sido planeada.

Estas obras ocultas não surgiram nos meses posteriores à morte de Diderot; foram despontando ao longo de décadas. Alguns dos seus livros perdidos foram publicados durante os anos de declínio da Revolução Francesa; outros apareceram ao longo da Restauração dos Bourbon (1814-30), enquanto ainda outros dos seus escritos emergiram durante o Segundo Império (1852-70). Aquela que foi talvez a adição mais importante ao corpus de Diderot surgiu em 1890, quando um livreiro descobriu uma versão manuscrita completa da obra-prima de Diderot, Le Neveu de Rameau, na banca de um bouquiniste, nas margens do Sena. Neste tumultuoso diálogo filosófico, nunca traduzido em Portugal por razões pouco surpreendentes, o escritor deu corajosamente vida a um inesquecível anti-herói, que exaltava as virtudes do mal e do parasitismo social, ao mesmo tempo que pregava o direito ao prazer desenfreado.


Dizer que o surgimento destes livros perdidos teve efeito nas gerações subsequentes seria dizer pouco. A efusiva crítica artística de Diderot inspirou Stendhal, Balzac e Baudelaire. Émile Zola atribuiu às «vivissecações» que Diderot realizou da sociedade o fundamento do naturalismo que caracterizou os seus romances, bem como os de Balzac. Os teóricos sociais ficaram também fascinados pelo pensamento presciente de Diderot. Karl Marx, que se inspirou profundamente nas reflexões de Diderot sobre a luta de classes, incluiu o escritor na sua lista de autores preferidos.

E Sigmund Freud atribuiu o crédito ao pensador do ancien régime pelo reconhecimento dos desejos psicossexuais inconscientes da infância em Le Neveu de Rameau, muito antes de os seus colegas psicanalistas o terem feito. Embora muitos críticos continuassem a menosprezar o escritor por ser demasiado ateísta, ou demasiado paradoxal, ou demasiado desmedido, Diderot tornou-se apesar disso o escritor preferido da vanguarda do século XIX.

A amplitude total da influência de Diderot, contudo, não foi verdadeiramente conhecida até que um jovem académico alemão, Herbert Dieckmann, localizou o derradeiro esconderijo perdido dos escritos de Diderot. Tendo ouvido rumores de que os conservadores descendentes de Diderot continuariam a possuir alguns dos manuscritos perdidos originalmente dados à filha do escritor, o professor de Harvard obteve finalmente autorização para visitar o castelo da família na Normandia, em 1948.

Depois de ter vencido as suspeitas pós-guerra do curador, que ficou inicialmente desconfiado com a sua pronúncia germânica da língua francesa, Dieckmann acabou por ser guiado até alguns armários no segundo piso do castelo. Ao entrar numa divisão que continha vários armários separados, precipitou-se para o primeiro e escancarou o painel da porta. Esperando, talvez, encontrar uma ou outra obra perdida, foi confrontado com uma enorme pilha dos escritos encadernados de Diderot. Tão atordoado ficou que simplesmente caiu no chão. O derradeiro esconderijo de Diderot, a coleção perdida de manuscritos que dera à sua filha, fora finalmente encontrado.

Denis Diderot nunca usou métodos agressivos para impor as suas crenças, ideias e pensamentos. Entre os principais deles, estão:

 

Para Diderot, a ciência deve ser o principal motor para o desenvolvimento da sociedade em vários aspectos, sendo ela primordial também para o processo dos seres humanos e demais espécies;

A política, para ele, só precisa ser aplicada por um motivo: responsabilidade em eliminar, por completo, todas as diferenças sociais – entre raças, idades, géneros e outros. Esse foi um dos seus ideais mais criticados e, certamente, o mais difícil para ser aplicado nas sociedades atuais, uma vez que depende de inúmeros fatores que o filósofo nem sequer considerou nesse período;

Uma das características mais chamativas e que envolvem a própria personalidade de Denis Diderot é em relação aos seus pensamentos sobre religião. Ao invés de tentar induzir a população a ser contra ela (considerando que ele era ateu), ele sempre deixou claro que a religião pode sim existir, desde que se restrinja unicamente às áreas de formação do caráter e comportamento dos seres humanos;

Mesmo que ele tenha vivido entre os anos de 1713 e 1784, as suas crenças e pensamentos já envolviam a tecnologia e os bons feitos que ela poderia desenvolver. Sendo assim, Diderot defendia a importância da mesma para a sociedade. Além disso, ele pensava que a tecnologia poderia ser um instrumento para a eliminação das desigualdades sociais;

As suas principais críticas foram acerca da concentração de poder, tanto no sentido da influência da Igreja, como também do modelo de governo absolutista.

 

Mas os seus amigos alcunharam-no também de O Filósofo porque ele se tornara o maior defensor do poder emancipador da filosofia. Muito mais do que Voltaire, Diderot era o rosto de uma oposição cada vez mais reivindicadora e cética a todas as ideias recebidas: a personificação de uma era que estava a sujeitar a religião, a política, os costumes coevos e toda uma série de outras noções a uma interrogação fulminante. A sua Enciclopédia resumia a sua missão de uma forma muito sucinta quando dizia que o papel do filósofo era pisar a seus pés o preconceito, a tradição, a antiguidade, as alianças partilhadas, a autoridade – numa palavra, tudo aquilo que controla o espírito do rebanho comum.

As mais conhecidas entre as suas publicações são: As Joias Indiscretas, Pensamentos Filosóficos, Enciclopédia, Carta sobre os cegos para uso dos que enxergam, Princípios filosóficos sobre a matéria e o movimento, Ensaio sobre a pintura, O sobrinho de Rameau, Tiago, o Fatalista e A Religiosa.

Cerca de trezentos anos depois do seu nascimento, Diderot tornou-se agora o mais relevante dos filósofos do Iluminismo. Ter-se abstido de publicar (ou de se revelar como seu autor) as suas ideias mais avançadas durante o seu período de vida não foi simplesmente uma questão de evitar a perseguição; escolheu intencionalmente abdicar de uma conversa com os seus contemporâneos para poder estabelecer um diálogo mais frutuoso com as gerações posteriores – em resumo, conosco. A sua sincera esperança era a de que nós, os compreensivos e esclarecidos interlocutores do futuro, fôssemos finalmente capazes de ajuizar acerca dos seus escritos ocultados, escritos que não só questionam as convenções morais, estéticas, políticas e filosóficas do ancien régime, mas também as nossas.

Esta obra é realmente uma biografia espirituosa do filósofo profético e compreensivo que, juntamente com Voltaire e Rousseau, ajudou a construir os fundamentos do mundo moderno. Como diz no final o seu autor, Ao escrever numa era de sistemas poderosos e sistematização, o pensamento privado de Diderot abriu a filosofia ao irracional, ao marginal, ao monstruoso, ao sexualmente perverso e a outros pontos de vista não conformistas. O seu mais importante legado será, talvez, esta cacofonia de vozes e ideias individuais. Os leitores atuais continuam a ficar espantados com a sua disponibilidade para fornecer uma plataforma ao impensável e ao incómodo e para questionar todas as autoridades herdadas e todas as práticas padronizadas – sejam elas religiosas políticas ou sociais. Como filósofo, Diderot não é um Sócrates nem um Descartes e também nunca pretendeu sê-lo. No entanto, a sua alegre e obstinada busca da verdade fez com que seja o mais cativante defensor, no século XVIII, da arte de pensar livremente.

Concluindo: Diderot foi, com certeza, o autor mais importante para que hoje o pensamento livre continue a dominar as nossas preocupações com vista a conseguir uma sociedade melhor, mais justa e mais equilibrada, contribuindo da melhor forma para a felicidade das pessoas que deve ser o nosso objetivo último.

 

3 Vitório Káli: A torrente da palavra de um filósofo que andou por Angola

(…) Fonteségura entrou na loja dos gravadores com aspecto terrível e nem a gentileza de Marília conseguiu demovê-lo da sua agressividade. Marília, que atendia ao balcão, chamou o gerente e a história foi mais uma vez denunciada. O gerente declarou logo à partida que as bobinas se vendiam seladas e a prova, acrescentou com ar de desafio, era que nunca uma coisa destas tivera lugar. Ouviu-se novamente a gravação e o resultado foi o mesmo. O gerente perguntou se não haveria nas proximidades da experiência alguma personagem, mesmo que estivesse escondida, porque sempre poderia, por muito estranho que isto surja aos nossos olhos experimentados, ter ficado gravado um conjunto de sons distantes trazido pelo vento ou por alguma corrente eléctrica do espaço, enfim uma coisa destas assim. Mas não. Naquele sítio do Cerro das Almas Vagantes apenas se encontravam Fonteségura e eu. Mais ninguém. O gerente aconselhou que se fizesse nova tentativa no dia seguinte e no mesmo local e, se possível, à mesma hora. Deu-lhe uma nova bobina, também selada, olhou-o ainda desconfiado, aquele Fonteségura era mesmo um tipo esquisito com a mania dos pássaros, Marília abriu-se num sorriso de tipo profissional pois seria incapaz de meter-se na cama com ele e desta forma regressámos ao nosso laboratório. Nessa tarde, como de costume, voltámos ao Cerro. Fonteségura assegurou-me que ninguém estava por aqueles lados, eu deitei igualmente uma olhadela mais adiante, apenas os pinheiros se perdiam de vista até às margens de sinuosidades do rio Lis, o céu estava límpido como sempre acontece no verão de Leiria, e tão pouco se conseguia vislumbrar ao longe algum milhafre solitário na sua faina de escutar os segredos dos homens. Os pássaros olharam-nos com o seu ancestral interesse (é preciso aqui dizer que os pássaros nos veem como outros tipos de sinais e que fazem a nossa identificação pelo modo que andamos ou falamos ou vestimos, tudo isto obedecerá a uma padronagem típica que os cientistas destes assuntos, Fonteségura inclusive, tratam desde há longos anos. Se não fosse isso torna-se evidente que o planteio de espantalhos de braços abertos nada significaria para os nossos bichos. A bem dizer, uma experiência foi recentemente efetuada por um abstruso conhecedor dos hábitos dos pássaros, o qual pensou provar que é a posição e a indumentária do espantalho que informam os pássaros acerca do significado de alerta que se pretende obter em casos específicos, foi mesmo o caso em que ele se dispôs a ficar durante três dias e duas noites com os braços abertos e vestido à pedinte português num terreno semeado de centeio, tendo observado que os pássaros vinham ali espreitá-lo e depois se pisgavam em grande velocidade) e vigiaram naturalmente os gestos do meu companheiro, julgo que já conheciam muito bem aqueles aparelhos de coisas redondas a girar como os óculos de lentes fortes que Fonteségura usava em operações semelhantes e me intrigavam sempre um pouco enquanto não entendi que, se ele era na realidade um especialista do ouvido, os sons captados apenas se tornavam inteligíveis quando reconvertidos em imagens visuais, isto levou-me a pensar muitas vezes naquele velho ditado de Heidegger sobre a função da visão humana, afinal todos nós descobrimos o mundo com os olhos mesmo que sejamos cegos, (…)

 


Não, não se zanguem comigo. Isto foi mesmo para os chatear, mas não havia outra forma de apresentar o meu amigo Vitório Káli, aliás António Mesquita Brehm, falecido em maio passado. Este excerto, retirado do seu livro Jánika, O livro da Noite e do Dia, faz parte de um parágrafo que se prolonga por 21 páginas. Está quase tudo dito!

Entretanto, vale a pena transcrever parte de um seu depoimento, publicado em 2006:

 

Meu nome é António Mesquita Brehm, tenho 78 anos, e escrevo este depoimento como simples cidadão português e não como Vitório Káli, escritor.

(…)

Em 1962 encontrei-me, pela primeira vez, com Manuel Alegre em Luanda. Sacámos o santo e a senha da algibeira para nos identificarmos e, a partir daquele breve instante, metemo-nos numa das maiores aventuras das nossas vidas. Combinámos formar um único grupo com armas na mão e derrubar o regime de Salazar.

A guerra colonial havia começado tempo antes, centenas de colonos portugueses tinham sido cruelmente abatidos nas matas do norte de Angola e alguns milhares de negros sofriam agora perseguições e morte nos musseques de Luanda. A vergastada emocional paralisou os nervos da população. Mas toda a gente lúcida sabia que se tornara imperioso estancar aquele martírio inútil dos nossos povos.

Se tomássemos o poder em Luanda e controlássemos Angola, faríamos um ultimato a Salazar e encetaríamos negociações com os movimentos de libertação para discutirmos as condições da independência do território protegendo não só os direitos naturais dos angolanos como ainda de todos os portugueses que ali viviam.

Foi então, às vésperas do golpe militar, que um oficial nosso compatriota nos traiu (ele e alguns mais) e nos denunciou à PIDE acusando-nos de estarmos a vender Angola às forças de Satanás. Toda a cabeça do grupo revolucionário foi presa e encurralada na Prisão de São Paulo de Luanda. Nas celas pegadas às do Luandino Vieira, do António Jacinto e do António Cardoso, cujos nomes ficaram bem gravados na literatura angolana.

 

Nascido em Lisboa em 29 de Junho de 1927, filho de Johann Baptiste Brehm, descendente de uma família alemã originária da Baviera, e de Maria Emília Pereira da Silva Bourbon de Mesquita, Vitório Káli é pseudónimo de António Óskar Pereira da Silva Mesquita Brehm, que assinou normalmente com apenas António Mesquita Brehm, outras vezes como Mesquta-Brehm, tendo usado também os pseudónimos de José Luís Conrado e de Elizar Fontenarva.

Licenciado pela Faculdade de Letras de Lisboa em Ciências Histórico-Filosóficas. Foi professor do ensino secundário e do ensino universitário.

Tendo iniciado a sua carreira literária em 1943, com o romance Pólvora e Sangue, editado pela Livraria Avelar Machado, que existiu na Rua do Poço dos Negros, em Lisboa, Vitório Káli atingiu notoriedade com o romance Jánika – o livro da noite e do dia, galardoado com o prémio literário Círculo de Leitores, em 1980, e posteriormente traduzido em várias línguas. Seguiram-se-lhe Tupáriz e as Sementes do Céu (1988) e Terramoto (1992), que tiveram várias edições brasileiras, mas o autor parecia já ter deixado de surpreender os leitores e, apesar de algumas traduções destas obras, os seus livros voltaram a cair na anonimidade que tinha caracterizado os seus textos das décadas de 1940 e 1950. O romance Terramoto foi definido pelo autor como um romance alquímico, pois, segundo o próprio, Escrever um romance ou fazer um poema é penetrar noutras regiões do universo, procurar descobrir as nossas ligações com o passado, nossas vidas anteriores, o seu significado em relação às várias mortes que percorremos. Este romance tem naturalmente um enredo que leva o leitor a contatos do terceiro grau.

O discurso narrativo de Vitório Káli permanece, contudo, inovador e os seus longos parágrafos, caracterizados por uma forma intencionalmente torrencial, remetem em parte para algum do discurso de James Joyce (1882-1941) e para a fluidez quase contínua da oralidade e também do pensamento reflexivo, desprezando a pontuação tradicional, parecem permitir estabelecer, hoje, um certo paralelismo estrutural com a iconoclastia discursiva de alguma ficção do seu contemporâneo José Saramago.

Foi redactor do jornal O Século, de Lisboa, tendo seguido depois para Angola, onde dirigiu o Colégio Luís António Verney, brincou muito aos teatros e apresentou-se essencialmente como filósofo, que era a sua principal vocação, especialmente numa tertúlia artística e cultural no Clube da Terra Nova, em Luanda, de que era o mentor. Nos vários papéis que se foi atribuindo, além de filósofo, ele foi também romancista, dramaturgo, empresário de alto coturno e professor, fazendo sobretudo figura de Platão dando as suas lições aos discípulos à vista das tumbas do Cemitério Novo.

Entre os discípulos podia-se destacar Carlos Pacheco, pelo comprimento e o afinco ao estudo. Ainda hoje há que apreciar mais o seu lado de filósofo do que o arremedo de historiador em que se transformou, pois decidiu misturar demasiado o seu papel de historiador com o de ajustador de contas com o MPLA.

Conta o jornalista Artur Queiroz que Um dia Herr Brehm escreveu O Papagaio da Meia-Noite, uma peça revolucionária nas entrelinhas, que foi apresentada pelo Grupo Experimental do Colégio Verney, que ele próprio tinha criado, e que defendia, pela calada da noite, a independência de Angola. Aproveitando a veia teatral ainda escreveu mais um texto retumbante: Os Balões do Rio Queve. As peças foram impressas nas Indústrias ABC, que detinha o jornal ABC, durante muitos anos dirigido por Machado Saldanha, um indefectível republicano. Depois de alguns delírios, decidimos ensaiar O Papagaio da Meia-Noite, cuja edição teve capa de Carlos Fernandes, um dos expoentes da arte pop portuguesa. Logo nos primeiros dias foi preciso chamar o César Teixeira, ator e encenador de verdade, que hoje vive na Austrália, para pôr ordem no palco.

Efectivamente, na década de sessenta, Brehm interessa-se sobretudo pelo teatro, tendo publicado, como dramaturgo, além da peça acima indicada, também Zarco, o doido (1970), igualmente levado à cena, em Luanda. Ainda em 1970 publicou igualmente em Luanda, Gilgamesh e as muralhas d An-Ki, Ressurreição de Jansen e Cela 4275, pelas Edições Verney. Escreveu ainda Os mitos enforcados (1962), Os túmulos e a corneta, Teorema jogou cacau, a que acrescentou o ensaio Logicificação do teatro existencial.

Em 1947, havia publicado em Lisboa, o livro de poemas Traição, com ilustrações e capa da conhecida pintora Ivone Chinita, e em 1952 sai com Poemas dum ébrio, (História da Física Nuclear ou Problemática dum Bébé). Em 1962 escreveu uma ficção sobre a guerra colonial, Kambuli – O Despertar da Consciência, em edição de autor, que fez circular em edição clandestina em Angola e Portugal e nos corredores da ONU, tendo acabado por ser apreendido pela PIDE/DGS, e ainda é autor de O Canto do Cisne. Estudo filosófico sobre Patinagem Artística, inspirado na obra de Saint-Saens, em que se manifestou pela primeira vez a sua antiga atitude crítica, no campo filosófico. Igualmente com capa de Ivone Chinita, que ainda fez parte da Tertúlia das Galegas, no Bairro Alto, Mesquita-Brehm publicou o romance A Grande Sinfonia (1947), em edição da Guimarães Editores. Trata-se de, como diz o autor, de um livro que exige do leitor um espírito liberto de todos os preconceitos tanto literários como científicos. Como romance, a ação quase que não existe, salvo naquilo que se move em pensamento, na própria antevisão dos factos reais. E o autor não tem dúvidas: Trata-se do primeiro romance de pensamento escrito na nossa Língua. E não é por acaso que ele lembra que os seus escritos estão em consonância com a tradição expressa na obra de um seu antepassado célebre, o Brehm do livro Vida dos Animais.

Vale a pena transcrever das badanas este texto esclarecedor: Dum temperamento híper-excitado, da linha de um Dostoievski e dum Nietzsche, profundo psicólogo do fenómeno humano, é ao mesmo tempo um pensador que o dia de amanhã revelará ao mundo. O seu sistema de Filosofia, sendo nitidamente idealista – é estruturado sobre bases metafísicas de origem oriental. Proclama a não existência da matéria e a existência do Além. Considerado sob o ponto de vista social, ele é um dos mais acérrimos defensores duma unidade europeia – como unidade de Cultura – e daí o seu violento ataque ao comunismo.

Todas estas suas obras trazem no seu cerne o que eu chamo a torrente da palavra. Como no Eclesiastes, no princípio era o verbo, e tudo passa pelo verbo, para o que arranja, um pouco à maneira de Fernando Pessoa, uma dupla identidade, fazendo-se notar na fala do autor uma tentativa de distanciamento entre a figura do escritor e do cidadão comum, do homem de carne e osso. A literatura, no ponto de vista de Káli, confere um status de quase deus ao homem que escreve. A profissionalização do escritor parece não ser uma preocupação, sendo o registo do nome na história da literatura o grande reconhecimento desejado por ele: Mas, como ele próprio diz: Vitório Káli não é propriamente um pseudónimo porque não me escondo atrás dele para conservar meu próprio anonimato […] Vitório é a minha outra dimensão, que apenas contato nos momentos muito especiais da minha existência, que escuto com veneração, me dá ensinamentos mediúnicos, me indica novas portas de entrada para outros universos, com a qual viajo para longínquas regiões desconhecidas e me apresenta a inimagináveis personagens tão reais como qualquer um de nós, embora revestidos de outra simbologia, de outras geometrias e outros conteúdos. Somos dois irmãos, duplos do mesmo ser cósmico que está para além de todos os níveis de conhecimento.

E salienta ainda, Vitório Káli, considerado escritor maldito na sua terra, escreve sobre um universo paranormal, atraente, inquietante, repleto de surpresas, o abismo no além. Káli é quem dentro de mim escreve», afirma ele, esclarecendo que se interessa pela parapsicologia e por fenómenos metafísicos, e é por isso que, no seu texto, épocas e lugares diferentes, reais ou imaginários, convivem em harmonia. Brehm, aliás Káli, insistia candidamente no veio da memória rica em acontecimentos: O meu espírito de aventura vem de criança. Um dia fugi da quinta dos meus avós e fui viver sozinho nos pinhais de Leiria. Gostava dos lobisomens, mas o sonho acabou porque meu pai encontrou-me e trouxe-me de volta.

É com este pseudónimo que publicará em 1988 Tupáriz e as serpentes do céu, integrando 20 histórias que têm álibis históricos e científicos, compondo um texto enraizado no género fantástico e na experiência dos limites, segundo Maria de Lourdes Cortês, professora da Faculdade de Letras de Lisboa. O autor buscou elementos nos gregos e egípcios, no Graal e na Atlântida, no Anel dos Nibelungos e em Nietzsche, no espiritismo, magnetismo e na telepatia, elementos aparentemente sobrenaturais, mas afinal tão próximos, para escrever esses textos em que o mistério irrompe na vida real”, diz a professora.

Na mesma linha tinha publicado em 1982 o livro Terramoto, por si definido como um romance alquímico. E justificava: Escrever um romance ou fazer um poema é penetrar noutras regiões do universo, procurar descobrir as nossas ligações com o passado, nossas vidas anteriores, o seu significado em relação às várias mortes que percorremos. Este romance tem naturalmente um enredo que leva o leitor a contatos do terceiro grau, como agora se diz, mas que penso que traduzem de perto a veracidade dos fatos.

Mas Brehm não se ficará só pela literatura, pois, em 1982, apresentará no Congresso dos Jornalistas Portugueses, a comunicação Ensino de Comunicação social – a formação dos quadros profissionais nos países africanos de língua oficial portuguesa, onde expenderá sobretudo filosofia comunicacional.

Como é de salientar, António Mesquita Brehm não podia ficar desapercebido. O episódio com o escritor António Lobo Antunes é bem paradigmático disso. Efectivamente, Lobo Antunes não pôde publicar o seu livro com o título original – O regresso das Caravelas – porque o Mesquita Brehm já o havia registado em seu benefício na Direção-Geral de Espetáculos e do Direito de Autor, no dia 21 de agosto de 1987, registro que lhe foi deferido a 20 de outubro do mesmo ano. Digno de nota, que Lobo Antunes já havia anunciado anos antes, publicamente, que o seu próximo livro – após a publicação de Fado alexandrino – se chamaria O regresso das Caravelas, conforme o Jornal de Letras também anunciara, no caderno Em Dia. Mesquita Brehm justificou a atitude tomada ao alegar que o título lhe havia sido sugerido há catorze anos, numa conversa que teve com Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola após a independência. Interessante que a versão do romance para as línguas inglesa (The return of the Caravels), francesa (Retour des Caravelles) e alemã (Die Rückkehr der Karavellen) mantiveram o primeiro título pensado por Lobo Antunes.

Tendo-o conhecido bastante bem, penso poder dizer que não acredito nesta sua justificação. Sempre tive grande empatia com ele, porque gosto de tudo o que me cheira a aventura, mas na verdade, se não se pode dizer que fosse um mentiroso patológico, pode-se dizer que fantasiava bastante. Por exemplo, durante muito tempo ele apresentou-se como antigo conselheiro do primeiro presidente angolano Agostinho Neto, o que nunca aconteceu, a não ser que tenha dado a sua opinião sobre o que se estava a passar. Mas, por outro lado, é verdade que ele teve algumas tentativas de intervenção na política angolana, razão porque, como disse no início, esteve preso com o poeta Manuel Alegre, assim como serviu de intermediário para a entrega de cartas da oposição angolana a Mário Pinto de Andrade, que foi um dos primeiros presidentes do MPLA. Diga-se ainda que logo após o 25 de Abril, ele chegou a fundar em Luanda a FRESDA, ou seja Frente Socialista Democrática de Angola, que teve dois militantes, ele e a sua esposa, Lisette Antas. Devido às suas ligações políticas, regressa pouco depois a Portugal, tendo ficado a trabalhar na então Direcção Geral da Comunicação Social, sedeada no Palácio Foz.

A título de curiosidade, assinale-se que a sua mãe, Maria Luísa Mascarenhas Pereira da Silva e Bourbon, era prima direita de Mousinho de Albuquerque, que a visitava amiúde no solar da sua Quinta da Várzea, em Gândara dos Olivais, no concelho da Batalha, a dois passos do centro de Leiria.

Este solar está há muitos anos em ruinas, mas não podia ser vendido, porque a sua mãe inseriu uma cláusula no testamento deixando-lhe a quinta, mas reservando o usufruto aos netos, o que criou alguns problemas na gestão da propriedade.

Enfim, nos vários papéis que se foi atribuindo, além de filósofo, António Mesquita Brehm foi também romancista, dramaturgo, empresário de alto coturno e professor, fazendo sobretudo figura de Platão dando lições aos discípulos. Como acentuo no título, era senhor de uma verbe torrencial, que ultrapassava todos os escolhos, avançando sempre rumo à aventura da palavra que nele nunca tinha limites. Foi uma figura de relevo na Luanda dos anos 60 e 70, nesta altura a viver uma prosperidade que era efeito da guerra de libertação, num ambiente que não passava de uma ficção. Chegava a ser empolgante!




MANUEL RODRIGUES VAZ (Portugal, 1944). Viveu alguns anos em Angola, onde colaborou nos diários A Província de Angola e Diário de Luanda, além das revistas Noite e Dia, Semana Ilustrada e EF. Após o 25 de Abril fez parte da equipe que reabriu o matutino O Comércio de Luanda, onde esteve até setembro de 1974. Também trabalhou na Emissora Oficial de Angola e na Televisão Popular de Angola, TPA. De volta a Portugal, trabalhou, de 1982 a 2000, no Correio da Manhã, onde manteve vasta colaboração no âmbito cultural, designadamente no sector de divulgação de Artes Plásticas. Publicou o livro O Alvorecer do Cinema (1969), Albino Moura – A Cor do Imaginário (1994), À Roda da Fogueira (1996), João Patrício, Um Poeta em Paço de Arcos (1997), A Simbólica nos Desenhos de Troufa Real (2001), Angola, Estórias Esquecidas (2003), Os Galegos nas Letras Portuguesas (2008), dentre outros.
 




JORGE DE LIMA (Brasil, 1893-1953). Poeta, ensaísta bissexto, artista plástico. Sua obra está ligada à segunda geração do modernismo brasileiro, apresentando traços do surrealismo e símbolos religiosos e pagãos da cultura negra. Misticismo mágico que melhor o situa como um mestiço lírico, e ele próprio um dia diria: O lirismo perdeu a sua liturgia. Esta liturgia era exatamente o que sempre buscou recuperar, tendo se aventurado por diversos modos de composição, do soneto ao poema branco e a poesia épica. Em uma dessas vertentes criativas enveredou pelo recorte fascinante da colagem surrealista, seu grande poema plástico, que o traz à nossa edição como artista convidado.

 



Agulha Revista de Cultura

CODINOME ABRAXAS # 04 – TRIPLOV (PORTUGAL)

Artista convidado: Jorge de Lima (Brasil, 1893-1953)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025




∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário