O bárbaro como barbarófono
Com um didatismo pouco comum em obras do gênero, o dicionário Le Grand
Robert de la langue française (2001) adverte seus leitores de que um dos sentidos
da palavra “bárbaro” (homem “incapaz de apreciar as belezas da arte”, grosseiro,
bruto, ignorante) “envelheceu por causa da evolução dos juízos referentes a sociedades
e culturas diferentes”. Mas se atentarmos às rubricas utilizadas nas diversas acepções
do verbete barbare (“envelhecido”, “histórico”, “arcaísmo”), veremos que
as marcas de caducidade estão presentes em praticamente todos os sentidos do vocábulo.
Entre eles, o sentido original (histórico) é o mais
velado. Somente consultando dicionários, manuais de etimologia ou livros de história
descobriremos que a palavra bárbaro (do latim barbarus, derivado do
grego bárbaros) significava, seja em grego, seja em latim, estrangeiro;
pois esse sentido primitivo, já presente no Linear B paparo, [1] caiu em desuso há séculos. Mesmo em grego
moderno a palavra não mais significa “estrangeiro”. [2]
Ainda mais importante do que a etimologia da palavra
bárbaro, no entanto, é a etimologia da palavra grega βάρβαρος. Esta deriva de uma onomatopeia cujo referente
é a fala do estrangeiro, que não passa, para o grego, de um bar-bar-bar ininteligível.
[3] Assim, o βάρβαρος é o estrangeiro, mas o estrangeiro caracteriza-se, antes
de mais nada, por sua fala estranha, balbuciante, incompreensível. [4] O bárbaro é, em primeiro lugar,
o barbarófono, o barbaroglota, o forasteiro que não fala (ou não fala corretamente)
a língua grega.
Uma raiz comum a duas concepções de
cultura
O conceito de cultura é um operador fundamental da antropologia e das ciências
humanas em geral, tendo sido comparado por Kroeber a categorias como “a gravidade
na física, a doença na medicina, a evolução em biologia”. [5] Segundo a conhecida definição de Tylor, publicada em 1871, “Cultura
ou Civilização, tomada em seu amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo
que inclui conhecimento, crença, arte, moral, direito, costume e todas as demais
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade.” [6]
O conceito elitista (ou humanista) de cultura, por sua
vez, enfatiza a busca da excelência ou da perfeição, seja numa determinada área,
seja no todo da realização humana. Aqueles que atingem a excelência (ou uma excelência
em particular) elevam-se, por isso mesmo, por sobre seus contemporâneos,
passando a integrar uma elite que não coincide necessariamente com a elite
política e econômica de seu tempo.
Assim, no sentido antropológico, a cultura apresenta-se
como horizontal e democrática, pois, além de exprimir um compartilhamento
de valores pelos membros de cada sociedade, promove uma igualação de todas
as sociedades humanas como produtoras de valores. No sentido elitista, a cultura
é, ao contrário, vertical e aristocrática, e exprime o movimento ascensional de
um indivíduo ou de um grupo (que pode ser, inclusive, o movimento de toda uma cultura,
no sentido antropológico) a um plano superior de realizações e valores. Em
resumo, uma noção é relativista e encontra em todas as culturas, por mais diferentes
que sejam seus respectivos valores, uma mesma atividade genérica de produção de
valor; a outra é absolutista e almeja uma perfeição que somente os iniciados saberiam
definir e praticar, estabelecendo hierarquias em toda parte e desdenhando de tudo
que seria “inferior”. [7]
Ora, o bárbaro é justamente aquele que não
fala (ou mal fala) grego, estando, por isso mesmo, excluído da compreensão e
da vivência plena dos valores consagrados naquela cultura, e também não pertence
à pólis, estando, por princípio, excluído do exercício da cidadania que fazia
do homem grego, a seu próprio juízo, um homem livre em contraste com os súditos
dos impérios despóticos circundantes. O bárbaro é o estrangeiro, mas o estrangeiro
é aquele que desconhece ou não domina à perfeição os códigos da cultura grega. Nascido
alhures e alheio àquilo que faz do grego um grego, o bárbaro é caracterizado pela
falta. Faltam-lhe, a um só tempo, a pertença e a competência cultural.
Desse modo, a etimologia da palavra grega βάρβαρος revela, talvez um tanto inesperadamente, a existência de uma raiz comum a duas concepções
de cultura – antropológica e elitista – que não só pareciam ser inteiramente distintas,
mas opostas.
Cultura e etnocentrismo
Embora tenham inventado muitas coisas, e entre elas a filosofia e a democracia,
os antigos gregos não inventaram o etnocentrismo. Aquilo que a palavra bárbaro
exprime com tanta clareza – a contraposição entre nós (que ocupamos o centro
do universo) e os outros (os excêntricos) – está longe de ser uma peculiaridade
da cultura grega. Muito ao contrário, o etnocentrismo é universal, e uma das evidências
mais conhecidas dessa universalidade é o nome que inúmeros povos dão a si
mesmos:
Os exemplos são muitos: chamam-se a si mesmos de “homens”,
“gente”, “povo” ou “pessoas” os Guarani (Ava), os Guayaki (Aché), os Waika (Yanomami),
os Esquimós (Innuit); [9] mas também
Bantos, Beothuks, Canacos, Hérulos, Hunos, Kutchins, Maidu, Maoris, Rom, Teutões,
Tuaregues, Tunica. [10] “Poderíamos estender
indefinidamente a lista desses nomes próprios que compõe um dicionário em que todas
as palavras têm o mesmo sentido.” [11]
E ainda que viéssemos a descobrir uma ou outra incorreção etimológica nesse hipotético
dicionário, pois a letra é tantas vezes incerta, dificilmente poderíamos duvidar
do sentido que o anima, e que é invariavelmente o mesmo:
Toda cultura
opera assim uma divisão entre ela mesma, que se afirma como representação por excelência
do humano, e os outros, que participam da humanidade apenas em grau menor. O discurso
que as sociedades primitivas fazem sobre si mesmas, discurso condensado nos nomes
que elas se dão, é portanto etnocêntrico de uma ponta à outra: afirmação da superioridade
de sua existência cultural, recusa de reconhecer os outros como iguais. O etnocentrismo
aparece então como a coisa mais bem distribuída do mundo, e, desse ponto de vista
pelo menos, a cultura do Ocidente não se distingue das outras. Convém mesmo, aprofundando
um pouco mais a análise, pensar o etnocentrismo como uma propriedade formal de toda
formação cultural, como imanente à própria cultura. Pertence à essência da cultura
ser etnocêntrica, na medida exata em que toda cultura se considera a cultura por
excelência. Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença
positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico. [12]
Já havíamos encontrado na palavra bárbaro uma raiz
comum aos dois sentidos fundamentais da palavra cultura, mas agora sabemos seu
nome: etnocentrismo. A esse respeito, Pierre Clastres não poderia ter sido
mais claro: pertence à essência da cultura ser etnocêntrica, na medida exata
em que toda cultura [no sentido antropológico do termo] se considera a cultura
por excelência [ou seja, a cultura superior, o grau máximo de realização das
possibilidades humanas].
Embora tenham inventado a palavra βάρβαρος, os gregos não inventaram
os bárbaros. Tampouco (como o próprio Clastres
reconhece) o Ocidente os inventou. Os bárbaros foram e continuam sendo inventados
a cada encontro entre culturas distintas. O povo indígena que nós aprendemos a chamar
de Cheyenne deu a si mesmo o nome Tsitsistas, que quer dizer… “pessoas”.
O nome Cheyenne, que esse povo não usa para referir-se a si mesmo,
lhe foi atribuído por outra tribo, a tribo Sioux, e significa “aqueles que falam
uma linguagem que não é compreendida”. [13]
Cultura e conflito
Se os conflitos entre culturas se limitassem à troca de alcunhas insultuosas,
o etnocentrismo teria um caráter mormente cômico. Evidentemente, nada está mais
longe da realidade. O corolário da oposição entre nós e outros é a
guerra. [14] A beligerância não marcou
apenas a vida de cidades ou Estados, mas também a das sociedades tribais. São bem
conhecidas as teses de Pierre Clastres a esse respeito: longe de exprimir um impulso
biológico, uma reação à escassez econômica ou o fracasso pontual do sistema de trocas,
a guerra seria um mecanismo de manutenção das sociedades tribais como pequenas comunidades
autônomas e indivisas, ou seja, sem hierarquias internas de poder. Elas não
eram sociedade sem Estado, mas sociedades contra o Estado. [15]
A guerra perdeu, entretanto, essa plenitude de sentido
que teria chegado a possuir, segundo a visão de Clastres, nas sociedades tribais,
e o que a História nos mostra é uma brutal sucessão de sujeições, etnocídios e genocídios.
Enquanto se debate entre as dificuldades do multiculturalismo e o renascimento dos
nacionalismos, a humanidade parece estar fadada aos conflitos entre culturas e civilizações.
[16]
Cultura como resolução de problemas
Embora possua aspectos sombrios, a cultura é muito mais do que uma fonte
permanente de conflitos. Uma cultura pode ser descrita como uma maneira peculiar
de propor e solucionar problemas. Desse ponto de vista, a riqueza da chamada diversidade
cultural nada mais seria do que a expressão da variedade de soluções propostas pelas
diversas culturas. Por exemplo, diferentes estratégias de caça e de coleta e, posteriormente,
diferentes técnicas de plantio e de pastoreio fornecem soluções distintas ao problema
da alimentação; técnicas de combate propõem soluções para o problema da guerra,
e técnicas de cura propõem soluções para os problemas de saúde.
A diversidade de problemas a resolver conduz a uma crescente
especialização. Sejam quais forem as técnicas de cura, elas serão praticadas,
a depender da cultura, por um xamã, um sacerdote, um médico e assim por diante;
mas será pouco provável que um guerreiro se ocupe dessas mesmas técnicas. Em muitas
culturas primitivas, diferentes problemas são resolvidos exclusivamente por homens
ou por mulheres: por exemplo, a caça e a coleta, a fabricação de armas e de utensílios
domésticos. [17] A mitologia dos povos
indo-europeus descreve a divisão dos membros dessas sociedades em três funções bem
demarcadas: soberania, força e fecundidade. [18] Quanto mais complexo for um campo social, maior será a diversidade
de problemas e a especialização de seus membros.
Os problemas recorrentes
Um problema que jamais recebe uma solução definitiva é um problema recorrente.
Todo ser vivo, sendo um sistema relativamente fechado, precisa repor periodicamente
os nutrientes que possibilitam a manutenção de seu metabolismo; assim, a nutrição
é, para o vivo, o problema recorrente por excelência. Outro problema recorrente
comum a muitas espécies animais é a preparação dos filhotes para a vida adulta.
Esse problema reveste-se de especial importância na espécie humana, cujos filhotes
requerem um longuíssimo tempo de maturação e aprendizado. [19] Esse problema acabou dando origem a uma nova função especializada,
a de professor. O problema do aprendizado é recorrente porque se repete a
cada geração, mas também porque, tal como o problema da nutrição, sua resolução
depende da continuidade de uma série de esforços intermitentes, geralmente diários,
que podem se estender por vários anos e mesmo durante toda a vida.
O conceito de problema recorrente implica, portanto,
um paradoxo. É incomum que alguém almoce duas vezes, ou estude novamente uma lição
já aprendida. Cada solução particular dada a um problema recorrente faz parte do
passado e nem sempre poderá ser revertida; ao mesmo tempo, nenhuma solução particular
irá jamais abolir o problema. Sempre será possível mudar os hábitos alimentares,
solucionando o problema da nutrição de maneira diversa. Uma lição já aprendida poderá
ser examinada novamente a partir do surgimento de novos dados ou novas perspectivas.
Assim, ainda que cada cultura descreva a si mesma como a cultura por excelência,
ou seja, como aquela que forneceu as melhores soluções possíveis a todos os problemas
do universo, estes estarão sempre abertos a novas estruturações e a novas
soluções.
Cultura e aprendizado
A competência cultural – a compreensão da língua e dos valores que caracterizam
uma cultura – é adquirida durante a infância e a adolescência. Pode-se dizer, de
maneira simplificada porém rigorosa, que é dando ouvidos aos outros que a
criança aprende a falar e a comportar-se como um membro de sua cultura.
Ao aprender uma língua, entretanto, a criança faz muito
mais do que assimilar os valores de uma determinada cultura: ela passa a pertencer
à espécie humana. [20] A aquisição de
uma linguagem produz as conexões cerebrais que permitirão o desenvolvimento
cognitivo e a interação social.
Os limites do aprendizado e da interação social não
estão predeterminados. A aquisição de linguagem e a socialização geralmente dão-se
no seio de uma cultura particular, mas nada impede, ao menos em teoria, que os horizontes
da criança se ampliem com o passar do tempo. Além de escutar seus pais, irmãos,
parentes, amigos, vizinhos, professores e assim por diante, ela poderá aprender
a ler e a dar ouvidos a homens de outras épocas e de outras culturas. Ela
poderá inclusive aprender outras línguas e aprofundar, tanto quanto possível, sua
compreensão de outros modos de sentir e de pensar. Uma cultura não é, ou não é necessariamente,
uma clausura.
Cultura e aprendizado escolar
Nem os melhores professores do planeta conseguirão ensinar a um aluno aquilo
que ele se recusa a aprender. Para aprender seja lá o que for, é preciso, em primeiro
lugar, que o aluno dê ouvidos a seu professor. Se os alunos ficam a conversar
durante a aula, levarão para casa, como “conteúdo”, apenas o que foi dito entre
eles durante a conversa; e tudo permanecerá na mesma se, uma vez em casa, eles não
derem ouvidos aos livros escolares.
Dar ouvidos, portanto, é muito mais do que escutar o mestre e memorizar o que ele diz.
Esse modelo pode funcionar com crianças pequenas que estão a decorar a tabuada ou
as conjugações verbais. Mas é somente em níveis superiores de complexidade que o
dar ouvidos revela todo o seu potencial: por exemplo, quando arqueólogos
e paleontólogos atentam aos vestígios que a terra oculta, quando o bioquímico investiga
as vias metabólicas, quando o historiador interroga suas fontes e assim por diante.
Nesse sentido, toda ciência é um dar ouvidos e uma variante dessa atenção
à vida de que falava Bergson.
Cultura e esforço
A palavra latina cultura remete ao cultivo: em primeiro lugar, ao
cultivo da terra, à agricultura; ao cultivo do espírito (cultura animi philosophia
est), mas também do corpo; e, por fim, ao culto (veneração). Culto é
o homem que cultiva, inclusive a si mesmo, mas também o homem que cultua (que cultiva
uma religião) e o solo cultivado. Não há cultivo sem esforço. Plantas crescem
muito bem por sua própria conta, e já sabiam fazê-lo muito antes que surgisse algo
semelhante a um homem; mas cultivo não é coleta, e antes de trabalhar na colheita
o agricultor terá de preparar e adubar a terra, plantar as sementes, irrigar a plantação
e impedir que pragas a devorem. Do mesmo modo, o pensador que cultiva problemas,
bem como o atleta que cultiva músculos, só realizam seus objetivos por meio de esforços
sempre renovados.
Um aluno não pode estudar no lugar de outro, e um atleta
não pode exercitar-se no lugar de outro. Nesse sentido, todo esforço é individual.
Ao mesmo tempo, a cultura é uma continuidade de esforços individuais encadeados
ou coordenados entre si. Há coordenação quando esforços individuais se coadunam
e se prolongam em esforço coletivo; numa cirurgia, numa linha de produção fabril
ou num time de futebol profissional, há esforço coordenado e trabalho de equipe.
Mas mesmo onde não existe, a rigor, um esforço coordenado ou um trabalho em equipe,
há um encadeamento de esforços. Só existem atletas e estudantes capazes de
esforçar-se individualmente porque a geração anterior dedicou-se a educá-los, e
a geração anterior só pôde educá-los porque também foi cuidada e educada, por sua
vez, pela geração precedente.
Cultura como produção de si e do outro
Raras são as circunstâncias nas quais é possível dizer que um homem produz
diretamente o outro. Por exemplo, pode-se dizer que o cirurgião que realiza um transplante
de coração produz, efetivamente, seu paciente. É verdade que, mesmo nesse
caso, a cirurgia não será bem-sucedida se o corpo do operado não reagir ativamente
ao procedimento; mas o paciente jamais poderia operar a si mesmo, e é impossível
atribuir-lhe mérito pelo sucesso do transplante. O coração doente, contudo, jamais
teria sido substituído por um saudável se o médico que realizou a operação não houvesse,
em primeiro lugar, produzido a si mesmo como cirurgião. Muitos anos de estudo
e de treinamento foram necessários para que ele se tornasse capaz de entrar
numa sala de operações e realizar uma cirurgia. Sem esse esforço de autoprodução,
não existiria cirurgião, transplante ou cura. Se chegou a haver produção do outro,
é porque houve, antes de mais nada, produção de si.
É essencial notar, entretanto, que a produção de si
ocorrerá mesmo na ausência de esforço, ou seja, mesmo na ausência de uma atividade
finalista, consciente e deliberada. Assim como o atleta se produz como atleta por
meio de exercícios, o sedentário se produz como sedentário sem realizar nenhuma
atividade em especial. O conceito de cultura como produção de si não exclui a atividade
consciente e finalista, mas também não faz dela uma condição imprescindível ao processo
de autoprodução. Querendo ou não, tentando ou não dirigir o processo de autoprodução,
o homem não faz outra coisa senão produzir a si mesmo.
A produção do outro é igualmente inelutável. Minha autoprodução
afeta a produção do outro. Se eu me formo em medicina, estarei produzindo para o
outro um mundo no qual ele terá, ao menos em teoria, uma chance a mais de receber
cuidados médicos. Se eu me produzo como explorador e derrubo uma floresta, estarei
produzindo, para o outro, um mundo mais pobre em poesia e em recursos biológicos.
Por outro lado, ao me produzir como alguém que produz um bem ou mercadoria, não
estou produzindo uma simples “coisa”, um “objeto”; estou, na verdade, produzindo
uma ação virtual sobre outro homem. Ao produzir a mim mesmo, e também ao
produzir mercadorias ou serviços, estarei produzindo o mundo no qual o outro produz
a si mesmo.
O que é cultura?
Em seu livro sobre Nietzsche, Deleuze diz que a cultura é a “atividade genérica”
do homem, ou seja, uma “atividade do homem sobre o homem”. [22] Deleuze refere-se a um tema que Nietzsche
abordou em sua Genealogia da Moral: a atividade genérica da cultura como
adestramento, e seu objetivo mais geral, a produção do homem capaz de
prometer. A visão nietzscheana da cultura mescla antropologia (os rituais de
iniciação como rituais de crueldade, isto é, adestramento violento das forças reativas)
e um propósito elitista (a finalidade mais alta da cultura é a produção do artista
e do filósofo). [23]
A fórmula ou definição que estou propondo é, sem dúvida,
bastante semelhante a essa: cultura é a ação do homem sobre o homem para produzir
o homem. As diferenças, no entanto, são bem grandes. Em primeiro lugar, a “ação
do homem sobre o homem”, nessa concepção, é também (e principalmente) ação de
si sobre si mesmo. Em segundo lugar, ela também inclui a ação virtual
do homem sobre o homem. Em terceiro lugar, ela não constitui, a despeito das aparências,
uma antropologia. A rigor, a cultura humana não passa de um caso particular
dessa produção de si e do outro que define a cultura.
O vivo como lance de dados
“Cada indivíduo histórico”, afirmou Gabriel Tarde, “foi um projeto de uma
nova humanidade”. [24] Não se poderia
igualmente dizer que cada ser vivo foi um projeto de uma nova espécie? Ao produzir
a si mesmo, cada ser vivo (e não apenas cada ser humano) atualiza, à sua maneira,
o problema recorrente da vida. É como se cada um dos seres vivos retomasse e relançasse,
a partir de seu ponto de vista único, singularíssimo, toda a história da vida.
Do mesmo modo, a criação de um conceito filosófico sempre
acaba retomando e relançando os dados da própria filosofia. É o que ocorre com o
conceito filosófico de cultura, que acaba reencontrando e reeditando um dos mais
antigos problemas filosóficos. Afinal, qual seria o sentido da vida senão a produção
de si mesmo?
Cultura e ética
Pensar a cultura como produção de si e do outro equivale a penetrar, de chofre,
na dimensão ética. Quando compreendo que sou responsável pela produção de mim mesmo;
que a produção de mim mesmo afeta não apenas a mim, mas a todos os outros; que existe
solidariedade entre as gerações atuais e passadas; que a autoprodução põe em pé
de igualdade todos os homens e todos os seres vivos, ou seja, todas as diferenças,
todas as vozes, todas as tonalidades da alma, não há mais como recuar da vida ética.
Ao que tudo indica, o pensamento da cultura como produção de si e do outro constitui
um caminho indireto, porém efetivo, para solucionar o difícil problema ético.
O conceito de bárbaro é correlato às concepções
antropológica e elitista de cultura; e sua pertinência é, nos dias de hoje, amplamente
contestada. Qualificar como “bárbaro” o culturalmente “outro” e o “ignorante” fere
a sensibilidade moderna. Por outro lado, o conceito de cultura como produção de
si e do outro traz consigo uma possibilidade de ultrapassar os conflitos entre culturas,
ao indicar a existência de uma tarefa comum a todos os seres humanos de todas as
culturas. Assim, não seria natural esperar que, nessa perspectiva, o conceito de
barbárie se torne caduco e simplesmente desapareça?
Na verdade, é exatamente o contrário. Porque os dois
conceitos são correlatos, uma renovação do conceito de cultura implica uma renovação
do conceito de barbárie. Na concepção filosófica de cultura, no entanto, o bárbaro
apenas deixa de ser o barbarófono, aquele que mal fala ou não fala a língua
culta, o outro, o estrangeiro, o ignorante, e torna-se aquele que não ouve, aquele
que não dá ouvidos.
NOTAS
1. www.palaeolexicon.com/Word/Show/16902
(acessado em 2020.06.21).
2. A palavra que continua sendo usada para
dizer “estrangeiro” em grego moderno é xénos, que também pode significar
“hóspede”. Émile Benveniste explica que “as noções de inimigo, de estrangeiro e
de hóspede, que para nós formam três entidades distintas – semânticas e jurídicas
– apresentam, nas línguas indo-europeias antigas, conexões estreitas.” BENVENISTE, Émile. Le
vocabulaire des instituitions indo-européennes. Paris, Les Éditions de Minuit,
1969, Vol. 1, p. 361. Conforme p.
87 ss.
3.
CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris, Klincksieck, 2009, p. 157.
4. Ibidem. Segundo Chantraine, a palavra composta homérica barbaróphonos
(barbarophónon, Ilíada, II, 867) confirma que o termo bárbaros refere-se
primordialmente à linguagem que o estrangeiro utiliza. Vale notar a sobrevivência
de palavras que remetem a esse sentido mais primordial, como a própria barbaróphonos
(em grego moderno) e barbarismo (em diversas línguas ocidentais).
5. KROEBER, A.L, & KLUCKHOHN, Clyde. Culture: A critical
review of concepts and definitions. New York, Vintage
Books (Random House), s.d. (1952), p. 3.
6. TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development
of mythology, philosophy, religion, art, and custom. London, John Murray, 6ª
edição, 1920 (1871), Vol. 1, p. 1.
7. KROEBER, A.L, & KLUCKHOHN, Clyde. Op. cit., p. 61.
8.
LEROI-GOURHAN, André. Le geste e la parole. Paris, Éditions Albin Michel,
1964, Vol. 1, p. 12.
9. CLASTRES, Pierre. Do Etnocídio, IN
Arqueologia da Violência. Trad. de Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 3ª edição,
2015 (1980), p. 81.
10.
LOSIQUE, Serge. Dictionnaire Étymologique des Noms de Pays e de Peuples.
Paris, Klincksieck, 1971, pp. 57, 61, 74, 116, 119, 135, 149, 151, 108, 214, 217,
219.
11.
CLASTRES, Pierre. Op. cit., p. 81.
12. Ibidem. https://athena.pt/2020/08/13/a-cultura-como-producao-de-si-e-do-outro-1a-parte-por-francisco-traverso-fuchs/
13. GRINNELL, George Bird. The Cheyenne Indians. New Haven, Yale University
Press, 1932, Vol. 1, p. 2-3.
14. Toda denominação de caráter étnico, em épocas remotas, é diferencial e opositiva.
No nome que um povo dá a si mesmo existe, manifesta ou não, a intenção de distinguir-se
dos povos vizinhos, de afirmar essa superioridade que é a posse de uma língua comum
e inteligível. É por isso que, geralmente, o étnico forma um par antitético com
o étnico oposto. Esse estado de coisas deve-se a uma diferença, insuficientemente
ressaltada, entre as sociedades modernas e as sociedades antigas, quanto às noções
de guerra e paz. A relação entre o estado de paz e o estado de guerra é, de outrora
a nossos dias, exatamente inversa. A paz é, para nós, o estado normal que a guerra
vem romper; para os antigos, o estado normal é o estado de guerra que uma paz vem
interromper. Nada compreendemos da noção de paz e do vocabulário que a designa na
sociedade antiga se não percebemos que a paz intervém como a solução por vezes acidental,
amiúde temporária, de conflitos quase permanentes entre cidades ou Estados.
BENVENISTE, Émile. Op. cit, Vol. 1, p. 368.
15. CLASTRES, Pierre. Arqueologia
da violência: a guerra nas sociedades primitivas. IN CLASTRES et al.
Guerra, religião, poder, Lisboa, Edições 70, pp. 11-47. Conforme CLASTRES,
Pierre. La société contre l’État. Paris, Les Éditions de Minuit, 2009 (1974).
16. HUNTINGTON, Samuel P. The Clash of Civilizations? Foreign Affairs,
Vol. 72, No. 3 (Summer, 1993), pp. 22-49.
17. CLASTRES, Pierre. L’Arc et le Panier, IN La société contre
l’État, op. cit., pp. 88-111.
18. DUMÉZIL, Georges. Heur et malheur du guerrier. Paris, PUF, 1969, p. 12. Os códigos de cores das vestimentas,
vigentes durante milênios e que, de um modo ou de outro, ainda perduram (le rouge
et le noir, blue collars/white collars…), devem-se inteiramente a essas divisões
sociais. Segundo as tradições indo-iranianas,
a sociedade organiza-se em três classes de atividade: sacerdotes, guerreiros, agricultores.
Na Índia védica essas classes chamavam-se “cores”, varna. No Irã, elas têm o nome pistra, “ocupação”, cujo sentido etimológico também é “cor”. É preciso
tomar a palavra em sua acepção literal: são, efetivamente, cores. É pela cor de
suas roupas que, no Irã, as três classes se distinguiam — o branco para os sacerdotes,
o vermelho para os guerreiros, o azul para os agricultores, em virtude de um simbolismo
proveniente de antigas classificações conhecidas em muitas cosmologias, associando
o exercício de uma atividade fundamental com uma determinada cor, que está ligada,
por sua vez, a um ponto cardeal. BENVENISTE, Émile. Op. cit., Vol. 1, p. 279.
19. MORIN, Edgar. Le paradigme perdu: la nature humaine. Paris, Éditions
du Seuil, 1973, p. 95.
20. “Privé de culture, sapiens serait un débile mental, incapable
de survivre sinon comme un primate de plus bas rang; il ne pourrait même pas reconstituer
une société de complexité égale à celle des babouins e des chimpanzés.” MORIN, Edgar.
Op. cit., p. 100.
21. BERGSON, Henri. L’Energie Spirituelle, IN Oeuvres, Paris,
PUF, 1984, p. 943/169. Joseph L. Mankiewicz, diretor e roteirista do filme All
about Eve, ilustra brilhantemente esse ponto num diálogo entre Lloyd Richards,
autor teatral, e Margo Channing, a atriz que trabalha em sua peça: LLOYD: I shall
never understand the weird process by which a body with a voice suddenly fancies
itself as a mind! Just when exactly does an actress decide they’re
her words she’s saying and her thoughts she’s expressing? MARGO: Usually
at the point when she’s got to rewrite and re-think them to keep the audience from
leaving the theater!
22. DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la Philosophie. Paris, PUF, 1983,
p. 154.
23. DELEUZE, Gilles. Op. Cit., p. 125.
24. TARDE, Gabriel. Les Lois Sociales. Paris, Félix Alcan, 1898, p. 148.
25. BERGSON, Henri. Op. Cit., p.
837/31.
FRANCISCO TRAVERSO FUCHS descobriu que o tabaco não torna em fumaça as mágoas, e trocou-o pelo chimarrão. No entanto, devido aos muitos anos de tabagismo, sofre de lapsos de memória relativos à mais recente reforma ortográfica. Ousou traduzir As Leis Sociais, de Gabriel Tarde, foi expurgado e tardiamente descobriu (por que claudica) o Brasil. É mestre em filosofia pela UFRJ, mas prometeu roubar o fogo e tornar-se filósofo.
ARIADNA PINEDA (México, 1980). Estudió la Licenciatura en Artes Visuales en la Facultad de Bellas Artes de la UMSNH, así como Diseño de moda en Instituto INMODART en la ciudad de Morelia, Michoacán. Su experiencia profesional se ha forjado creando pintura, escenografía teatral, diseño de vestuario teatral y dancístico, escultura, fotografía, ilustración y muralismo. Sus exposiciones individuales han girado la mayoría en torno al arte con técnicas experimentales realizando obras arte háptico-senso-perceptual para personas con discapacidad visual, otras exposiciones de arte fumage y pintura al óleo, todas con su particular estilo surrealista. A la fecha son 13 sus exposiciones individuales desde el 2011. Participa en exposiciones colectivas desde 1996 dando un total de 38 colectivos. Algunas de sus obras se encuentran en Italia, Canadá, EU, en manos de coleccionistas privados. Ariadna en su creación encontró un nuevo camino con precedencia a partir de años de exploración, experimentación y especialización en la pintura al óleo y el arte fumage, encontrando su propio lenguaje, hoy busca dar a conocer con luz propia su obra surrealista más reciente para tomar con mayor fuerza los caminos de la creación. Ariadna Pineda es la artista invitada de esta edición especial de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
CODINOME ABRAXAS # 06 – ATHENA (PORTUGAL)
Artista convidada: Ariadna Pineda (México, 1980)
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