Não foi possível
registrar integralmente a conversa, porque o poeta, perante alguns temas que considerava
comprometidos, nos pedia deter a gravação; salvos os escolhos, recuperava seu fluxo
e com esses fragmentos construímos a entrevista que se segue.
Foi publicada
por meio digital no primeiro número da Revista Maresia, em 2006, dedicada ao público
do outro lado do Atlântico, e agora, por ocasião da Homenagem a Leodegário de Azevedo
Filho, a sua mulher Ilka sugere que se publique, atendendo ao leitor brasileiro.
O tema da
entrevista, a atitude de Cabral, a mediação e participação de Leodegário de Azevedo
Filho, que só foi registrada nas nossas memórias, dão boa conta do talante de ambos,
do seu caráter aberto, interesse e conhecimento de outras culturas, do seu ânimo
integrador e seu afã por fomentar as relações interculturais.
Modelos ambos
duma geração em que a intelectualidade brasileira atingiu valores muito altos de
esplendor e internacionalismo, desejamos unir aos seus nomes os nossos em homenagem
ao amigo tão querido.
Conversa em casa do poeta, na Praia do Flamengo,
em 14 de julho de 19931.
NET | Existe alguma relação entre a sua atitude ante o surrealismo
com a sua primeira vinda à Espanha e o contato com os poetas espanhóis?
JCMN | Não, é anterior. A coisa que me deu coragem de ser contra essa
espontaneidade, esse automatismo do surrealismo, foi a arquitetura. No fundo devia
ser arquiteto. Eu convivia com um grupo de arquitetos, no Recife, uma das primeiras
cidades com arquitetura funcional inspirada em Le Corbusier. Eles me deram livros
de Le Corbusier que me marcaram profundamente. Me deram a coragem de ir contra a
espontaneidade do surrealismo. Ele detestava o surrealismo. Me deu coragem para
não ter vergonha do meu construtivismo; me deu coragem de ir a contrapelo, coisa
que depois achei em Valéry, em Pound.
O Professor Secchin pediu para fazer a edição dos
primeiros poemas que eu fiz com 17 ou 18 anos, poemas que eliminei de Pedra de Sono e um poema posterior que incluí
em Museu de Tudo.
NET | Qual é a relação da sua poesia com a música e a pintura?
JCMN | Tudo quanto entra pelo ouvido... Eu perdia o interesse nas conferências.
A pintura tem relação com a minha poesia. Eu estou muito mais perto da pintura do
que da música. Qualquer linguagem participa das duas.
Jorge Guillén tem um verso superior ao meu, mas
não tem a minha criatividade. A poesia dele é mais abstrata do que a minha. A linguagem
participa da música e da pintura. Mas a pessoa pode tratar a linguagem com a música
ou com a pintura.
Eu sempre fui muito interessado pelo cinema. Pedaços
dos meus poemas são puro cinema. Pode-se dizer: “muitos cavaleiros morreram”, mas
é puro cinema dizer: “muitos cavalos fugiram sem seus donos”. Berceo em Santa Oria,
quando ela é levada para o Céu dormida, é a mesma coisa. Encontram lá um palácio
furado (horadado), é um Céu concreto, cheio de janelas, com entrada e saída: imagem
material e visual. Estava o Céu fechado, com hora de entrada e saída! Gonzalo de
Berceo não imaginava um Céu abstrato. Pousaram a alma de Santa Oria à espera de
que abrissem.
NET | Dentro do visual, o João Miró não tem perspectiva?
JCMN | Ora, eu escrevi um livrinho sobre o Miró. A perspectiva é uma
criação do Renascimento. A perspectiva, a composição triangular, começava a dirigir
a pintura posterior. Eu tenho a maior admiração pelos cubistas, o abstracionismo
concreto, seguem as leis da composição do Renascimento, apesar de não terem a figura,
de não serem figurativistas. O primeiro pintor, João Miró, começou a pintar do meio
do quadro para o lado; sem consideração do limite do quadro, como se o quadro dele
estivesse derramando: pintura de dentro para fora. Em Berna, Paul Klee fez a mesma
coisa. São dois pintores que romperam com essa coisa que vem do Renascimento.
JCMN | Picasso sempre me interessou muito, como os poetas, chamados
na França, cubistas. O livro de Reverdy, que eu li no Recife, me marcou muito, não
o lado religioso, mas compreendi que ele tratava a linguagem de forma concreta.
Poeta cubista era chamado, mas não tem nada a ver com ele.
NET | Formalmente a sua poesia está perto do romance. Que relação
tem com a literatura espanhola?
JCMN | Os versos de sete sílabas que vocês (os espanhóis) chamam de
oito, é o verso popular. Na França, o verso popular é de oito, que para vocês é
o de nove. Quando eu comecei a metrificar, o meu mestre foi Joaquim Cardoso, de
cultura extraordinária, e ele disse-me: “A gente não metrifica numa medida, a gente
metrifica em volta duma medida”. É dizer, quando se metrifica em sete, se está metrificando
em oito ou em seis. Depende muito do leitor. Eu, com o meu sotaque pernambucano,
tenho versos que eu leio diferente dum paulista. A gente não metrifica, a gente
metrifica em volta duma medida. Apenas eu me voltei para o verso metrificado (eu
não tenho nada de espontâneo), porque eu precisava de uma coisa exterior que me
obrigasse. A minha imaginação funciona melhor canalizada do que espontaneamente.
Em Paisagem com figuras, eu metrifico com sete, que é o verso do romance; em Vida
e morte Severina, com verso do romance também. O verso de sete sílabas é a medida
natural, é um verso muito fácil. Eu passei a metrificar a partir de certa época
no metro de oito sílabas, para que não fosse fácil. Não é espontâneo e por isso
me interessa. O verso de sete sílabas sem acentuação interna regular; o verso de
oito precisa duma cesura. Eu pretendi fazê-lo sem cesura. Manuel Bandeira me deu
uma folha que dava todos os tipos possíveis de verso de oito sílabas com acentuação
interna. O que me interessa é fazer um verso de oito sílabas, mas sem cesura regular,
que não tenha uma acentuação interna regular.
NET | Disciplina, mas não hábito?
JCMN | Educação pela Pedra tem um verso mais longo, em volta de oito;
eu o usei com o propósito de evitar o decassílabo camoniano, que viciou o ouvido
brasileiro. Evitei fazer decassílabos com a cesura na sexta sílaba. Eu fiz versos
mais longos, mas não sempre iguais.
Os decassílabos franceses são de origem italiana.
Valéry nunca põe a cesura na sexta. Ele utilizou o decassílabo, porque disse que
foi uma medida desprezada pelos franceses. Ele acentuou a quarta sílaba. Camões
estragou tudo o que veio detrás dele, automatizou o ouvido brasileiro.
Eu uso o verso de oito sílabas sem acentuação interna;
não uso o de sete porque me parece fácil demais e me parece cantante demais, e eu
procuro evitar o cantante quanto posso; o verso de oito não é cantante e, além do
mais, faço a cesura anarquicamente, onde “me da la gana”.
Em Educação pela Pedra fiz de propósito para evitar
o verso camoniano, nove, dez, onze e doze, mas nunca com acentuação camoniana, na
sexta sílaba.
NET | Há na sua obra um interesse contínuo pelos poetas de Mester,
poetas de ofício, Berceo, o Poema do Cid?
JCMN | Sim. Berceo, Arcipreste, Góngora, o Século de Ouro. A literatura
espanhola perde com a invasão dos franceses. Até Felipe V, a literatura espanhola
é de coisas concretas.
NET | E o Romanceiro espanhol?
JCMN | Eu estudei sistematicamente a Literatura espanhola. Estudei
o Romanceiro.
NET | E o flamenco? Qual é a relação com o flamenco e a sua obra?
JCMN | É um gênero muito especial. Tem a letra, tem essa concretude
da poesia primitiva espanhola, de Góngora, inclusive de Lorca. “Los ojitos de tu
cara tienen los cristales muertos”. É uma mineralização duma coisa animal: “los
ojos”. Depois volta a animalizar uma coisa que não morre, como os cristais. Isso
é que eu chamo objetividade: a concretude do flamenco.
NET | Gosta mais da letra do que da música?
NET | O senhor acha que há alguma relação entre a poesia primitiva
espanhola e o flamenco?
JCMN | Gosto muito do flamenco, mas da literatura primitiva ainda mais.
Eu prefiro a palavra concreta. Quando eu descobri a literatura espanhola foi um
deslumbramento. Compreendi que estava feita com coisas. Eu conheci o flamenco, cantores,
bailarinos. Depois disso, Lorca perdeu um pouco de originalidade.
NET | Mas Lorca está perto do flamenco, como Falla!
JCMN | Eu conheci o flamenco não estilizado.
NET | Qual é esta relação entre Andaluzia e a feminilidade, e Pernambuco
e a masculinidade?
JCMN | A primeira vez em Barcelona, eu não tinha vontade de ir para
Sevilha. Em Barcelona comecei a conviver com o flamenco, em “casas de fiestas”.
Os meus amigos catalães não o compreendiam. Eu não queria ir para Sevilha, porque
era muito longe. Era uma coisa inconsciente. Eu tinha medo de ficar fascinado por
Sevilha.
Sevilha é uma cidade profundamente feminina. Pernambuco,
a zona da mata, onde nasci e cresci, (o meu pai tinha um engenho de açúcar) é úmido;
mas o agreste sertão é mais masculino, a sua virilidade, sua aspereza. Em alguns
poemas meus, quando viajei por Castela, achei muito de Pernambuco; ainda não conhecia
Andaluzia. Nesta obra de 9/9, há um único poema do flamenco que conheci em Barcelona.
NET | Tinha algum círculo de poetas em Sevilha?
JCMN | Sim, um grupo de amigos mais velhos do que eu, dois poetas:
Rafael Laffón e Julio (sic) Joaquin Romero Murube, director del Alcázar. Mais moços,
Julio Mariscal, Manuel Mantero, Aquilino Duque. Detesto escrever cartas. Quando
deixo um posto, nunca escrevo aos amigos, penso neles, mas nunca escrevo. Eu passaria
uma vida para escrever uma carta.
NET | E Joan Brossa?
JCMN | Com Dau al Set, era muito amigo meu. Pons veio para São Paulo,
mas depois morreu.
Os meus poemas sobre Andaluzia
foram publicados numa edição para a Expo de Sevilha. Só tenho um exemplar. Sebastião
Lacerda ficou com um só. Foram editados no Itamarati, pela Nova Fronteira, que financiou
a edição, muito cuidada, mas foram distribuídos antes da minha chegada a Sevilha,
onde fui como representante de Collor, a 6 de setembro de 1992. O editor também
não tem.
Há traduções para o espanhol
de Crespo e outra em Visor de Pablo del Barco. Também Santos Torroella, que foi
muito amigo meu, traduziu alguns poemas meus.
Eu servi seis vezes em Espanha,
duas em Barcelona, duas em Sevilha e duas em Madrid. Em Abril de 1947 cheguei a
Barcelona como Vice-Cônsul até Agosto de 1950, quando fui para Londres. Entre 1960
e 1961 morei em Madrid; estive em Sevilha, primeiro de 1956 até 1958, e depois voltei
para ficar durante os anos 1962-1964. Nos anos 1967-1969, estive como Cônsul Geral
em Barcelona.
NET | Acha alguma relação entre a literatura de cordel e a literatura
espanhola?
JCMN | Eu conheci, de menino, a literatura de cordel. A sua complexidade
estrófica me marcou, mas os temas dramáticos não têm nada com a minha obra.
JCMN | Pernambuco é latifúndio “a perder de vista”. A primeira vez
em Málaga, fiquei impressionado porque era no quintal. Em Málaga a produção de cana
é menor do que no Rio!
Há uma coisa que eu detesto, o abstracionismo lírico.
Adoro Mondrian. Eu procuro escrever como vigia, sem espontaneidade.
NET | E Lorca. Qual é a presença de Lorca na sua obra?
JCMN | Eu li Lorca. É um grande poeta, dos maiores do século em Espanha,
mas um pouco decorativo: é um “moinho de imagens”. Eu conheci o flamenco em Sevilha;
os touros em Barcelona no ano 1947. Mas achava Lorca um pouco decorativo; Miguel
Hernández “mas entrañable, porque viene de las tripas”. Na falta de decorativismo
de Berceo, do Mester de Clerecia, no Século de Ouro há coisas que me entusiasmam,
Góngora… Mas a literatura espanhola primitiva foi a que mais me marcou. Soto de
Rojas, Espinel me influenciaram. O Romantismo espanhol, nunca me entusiasmou. A
literatura de influência francesa foi má. Aqui negativamente. A Geração de 98, Machado,
Valle Inclán, mas não tenho interesse por Juan Ramón Jiménez. O mundo das preferências
é o mundo mais misterioso que há. Da Geração de 27, tenho grande entusiasmo por
Cernuda, Aleixandre, influenciados pelo surrealismo. O caráter espanhol tem tanta
força! Acho-os melhores do que os surrealistas franceses.
Miguel Hernández foi influenciado pelo surrealismo.
Espanha tem esta coisa que para mim é um secreto: o popular. Não sei se foi Ortega
quem disse: “en España lo que no es popular es pedantería”. É esta coisa do popular
no canto flamenco que me entusiasma.
NET | E Antonio Machado?
JCMN | Gosto muito de Campos de Castilla, Galerías interessa-me menos.
NET | Qual é a sua relação com Fernando Pessoa?
JCMN | A literatura portuguesa está hoje toda movimentada em torno
de Fernando Pessoa. Mensagem me pareceu um livro construído e me interessa muito.
Devo dizer que aquele excesso de subjetividade de Pessoa não me interessa; e não
o entendo. Isso é quase uma blasfêmia. Para mim, o resto de Pessoa não me interessa.
É um poeta tão múltiplo, mas não tem uma teoria poética.
NET | Considera-se um poeta objetivo?
JCMN | Acontece que, por mais objetivista que seja um sujeito, ele
é um sujeito. Por que é que eu falo da cabra e não falei do carneiro? Aí há uma
coisa subjetiva, mas não em me confessar. Em Sevilha andando, a primeira parte é
sobre a minha mulher; agora, por que esta mulher me interessou e não uma inglesa
loura? Na escolha, há subjetividade.
NET | Continua interessado por Sevilha?
JCMN | Sevilha andando. A primeira parte é um retrato da minha mulher:
Sevilha andando. A segunda parte é a cidade de Sevilha: Andando Sevilha. Temas sevilhanos
e temas anteriores.
NET | Sevilha andando é o seu último livro?
JCMN | Não estou bem de saúde, faltam-me forças físicas para trabalhar.
Uma vez perguntei a Cardoso: Como é que escreveu tão pouco? Cardoso riu e disse:
“é muito melhor ler do que escrever”. Estou de acordo inteiramente com ele.
NET | Escreveu crítica em 1954 em São Paulo, num Congresso.
JCMN | Também nos Cuadernos Hispanoamericanos, Poesia e Composição.
Aguilar está fazendo as minhas obras completas. Aguilar pertence à Nova Fronteira.
A minha mulher está fazendo a introdução.
NET | Para quando vai ser a edição da Aguilar?
JCMN | Para o fim do ano.
NET | Qual é o seu melhor crítico?
JCMN | É difícil dizer. A crítica... “uma obra de arte é como um diamante”, dizia Valéry. Se eu escrevesse uma autocrítica não seria melhor. Cada pessoa tem o seu ponto de vista.
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 170 | maio de 2021
artista convidad0: Friedrich Schröder-Sonnenstern (Prússia, 1892-1982)
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