sexta-feira, 14 de maio de 2021

ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS | Sardanelo & Martinico

 


I. Tragédia do anão gigante, no Theatro Porkoff

 

SARDANELO

Realmente um inexplicável fenômeno… Vou telefonar pro Doutor Galeno…

 

MARTINICO

Sim, telefona, pede a ele intervenção urgente, preciso ser internado…

 

RÁDIO MECULATRA

(em mais um de seus furos imprecisos)

 

DIÁLOGO TELEPHONICO DE PLATÃO COM DOUTOR GALENO

RÁDIO

Sardanelo convenceu Platão, mestre supino dos diálogos, a convencer o Doutor Galeno.

 

PLATÃO

Alô, Doutor Galeno, falei com Florivaldo, ele está de acordo em ser internado.

 

GALENO

Poizé, Sardanelo, mas se eu o internar no Sanatório Grinalda, ele vai enlouquecer todos os que já estão remediados, após décadas de penoso tratamento…

 

SARDANELO

Mas se eles já estão remediados, o Senhor poderá soltá-los…

 

GALENO

Neste mundo de dementes globalizados?? Serão trucidados.

 

Rapidamente um cenário é improvisado, a quartinha no centro da mesa, dois copos de alumínio, a bodega de Clepto Cabroso está preparada para tudo:

 

MARTINICO

Não há como retornar à realidade, reino dos ditames, flagelo dos diálogos, o próprio Pratão só não se encontra internado no Grinalda graças a Galeno que o contratou como assessor de mazelas do espírito. Sardanelo, melhor não insistir, assim acabam te internando e ficaremos sem os nossos diálogos…

 

SARDANELO

Se me internarem, escreverei minhas Memórias do Cárcere.

 

MARTINICO

Enquanto planejas tuas memórias eu sigo escrevendo meu romance, a casa ardilosa das sete malucas…

 

SARDANELO

Falta o Anão.

O Anão e as Sete Malucas.

 

MARTINICO

É um anão gigante e tem no lugar do rosto uma mancha confusa.

 

SARDANELO

Foi esse horrível Anão Gigante que enlouqueceu as Sete Damas.

 

MARTINICO

Cada uma delas foi isolada em uma sala de interrogatório onde o anão gigante perambula pela fragilizada consciência das sete damas.

 

SARDANELO

Um drama psico-policial. O anão-gigante diz que foi aluno do Doutor Sigismindo Froyd.

 

MARTINICO

Ao abrir a porta da sala surge um olho do anão gigante e com ele o imperativo de que elas contem seus segredos…

 

SARDANELO

O terrível nitzsxeniano Imperrativus Kategorrikus… No Collàgio Prutuca, Doutor Pastilha oferece, a partir da semana que vem, um curso intensivo sobre o Imperrativus Kategorrikus do Doktor Nitzxe, com substancial abatimento de preço para sacerdotes, e militares que venham em grupo, que serão considerados como família numerosa.

 

MARTINICO

A verdade é que as corças jamais se livraram da maldição que lhes impôs suas patas de bronze. Hércules vagou pela terra um ano inteiro, esperando encontrar ao final desse tempo, a pomada de louro prometida pelo doutor Pastilha…

 

SARDANELO

Doutor Pastilha, no seu curso de Mythologia no Collàgio Prutuca, distribui a pomada de louro para os grandes heróis de Grécia e de Roma… E, certamente, Hércules receberá sua merecida latinha da miraculosa pomada, mercê de mui meritórios esfor3os em cumprir à risca seus Doze Trabalhos estafantes e perigosos… Já era pra tê-la recebido, mas se embrenhou pelo mato atrás do centauro Neso, que tentava seduzir a esposa do Herói, raptando-a em sua garupa, sob o pretexto de mostrar-lhe os recantos mais propícios do frondoso bosque.

 

MARTINICO

A esposa do herói, segundo narra um folheto de cordel, foi resgatada da garupa do centauro por um bando de faunos que afiavam seus cascos no solo pedregoso do Bosque de Frondas. Chegando lá Hércules, que do outro lado da história era conhecido por Héracles -, a amada já estava a salvo e Neso havia sido enxotado do bosque. Famoso por suas realizações mitológicas, Hércules não podia revelar que não fora ele a salvar Samíramis, seu amor quase único, de modo que os faunos concederam ao corpulento semideus a lenda daquele resgate heroico.

 


SARDANELO

Aí está!… Os faunos também tinham seus dias de aprontarem suas belas ações. Poderíamos concluir dizendo, como moral desta fábula: Nunca se sabe de que moita o coelho vai sair. E os Faunos, tampouco, nunca se sabe o que vão aprontar.

 

MARTINICO

As moitas agradecem os aplausos…

 

SARDANELO

A cortina plaaaaaaaafffffttttt

 

MARTINICO

O diabo dessa cortina é que não merece mais a menor confiança, outra noite se trancou com duas mantas em um armário e ali dentro fez a festa.

 

SARDANELO

São justamente os temores de Doutor Pastilha. Ele tem a impressão de que as peças por trás da cortina são bem mais empestadas que as porcalhadas do Marquês de Sade.

 

MARTINICO

Volta-e-mexe a confusão se instala e o decrépito desse marquês engole a maçã da fábula que não lhe causa o menor efeito. Rapunzel o recolhe em sua cabana suspensa e os dois ali se contorcem de glosas e motes.

 

SARDANELO

Doutor Pastilha, preocupado, desconfia que o pérfido marquês tenha surrupiado sua latinha das famosas Pastilhas do Doutor Galeno, de um poder assombroso, mata os micropatas Coroca, lombrigas e piolhos, levanta até defunto, como foi o caso do Faraó Micherinos, que tomando três pastilhas antes de morrer, depois de enfaixado e colocado no sarkófago, conseguiu, durante o velório, ficar ereto, bradou palavrões no sarkófago, furou a tampa e voltou a reinar por várias décadas. O assunto foi abafado pelas autoridades civis e militares.

 

MARTINICO

Algumas bolorentas pastilhas foram encontradas atrás das pernas de um armário desarrumado onde as meninas de Micherinos guardavam seus paninhos quentes. As noites no velório eram uma fantasia lúbrica onde os defuntos eretos se deixavam cavalgar pelas lavadeiras do império que logo se descobriam eram uns travecos bem arrumadinhos. A realeza era mestre em comprar o silêncio dos congressistas, de modo que o marquês seguia desfiando seu rosário libidinoso e faturando nas vendas do livrinhos por toda parte…

 

SARDANELO

O Anão Gigante é um flagelo digno de Ghengis Khan. Seu criador, Dok Frakastel, é um gênio louco, queria criar a raça de Humanoides a serviço da Humanidade e inventou este colossal psicopata Anão Gigante!… Doutor Frakastel, um herético iluminista, insistiu em criar essa raça de autômatos de inteligência racional, para o que, em seu laboratório, capta a força dos relâmpagos para utilizá-la na Criação da Vida!!!… um louco herético que, por incompetência, poderá destruir a Humanidade. Foi ele, aliás, o desastrado criador do Vírus Coroca, um vírus que, ele próprio inofensivo, iria destruir todos os vírus fatais das diversas moléstias transmissíveis que martirizam quem possam infectar. E agora... que adianta prender Doutor Frakastel?…

 

MARTINICO

Talvez o melhor a fazer com esse farrapo seria infectá-lo com o Coroca e deixá-lo à míngua sem direito a hospital, vagando pelas ruas onde as pessoas até poderiam lhe apedrejar, mas certamente não fariam. Este é mais um daqueles casos em que a criatura pode vir a livrar-se de seu criador e refazer o seu mundo. Improvável qualquer cópia de presságio, mas a vontade popular é mesmo que todos os padecimentos devem cair sobre os costados desse doutor do caos.

 

SARDANELO

Sempre tem gente para adorar os mentecaptos genocidas. Trata-se de um ataque de sardo-mazorquismo coletivo que pode englobar toda uma nação. Ou todo o planeta. Quem não aderir, será massacrado pelos fiéis sardo-mazorquistas, galvanizados pelo Louco Destrutor. Falta agora ver se Doutor Frakastel tem o mesmo tipo de poder hipnótico, para empulhar toda uma Nação… e aí então, começará tudo de novo…

 

MARTINICO

Até começaríamos tudo de novo, desde que não fosse por aquele famigerado bolero. Ou talvez não começássemos para não correr o risco de ter de ouvi-lo como trilha sonora da resistência de Pindorama. O Clube de Caça aos Corvos adotaria uma versão cabaré da música e gravaria um vídeo pastelão usando todas as cores de pele à disposição no estoque da Granja Raposão. O Renascimento por vezes não passa de uma nova versão do Inferno.

 

SARDANELO

Só haverá democracia racial quando as galinhas pretas botarem ovos brancos, e as galinhas brancas botarem ovos pretos. Y así pasan los dias… chaca-chaca-chaca…

 

MARTINICO

Acho que se poderia fazer uma boa publicidade com esse troca-troca. Mas dá uma olhada, lá vem de novo aquela cortina desmiolada. Do jeito como vem aos frangalhos, levou uma surra das mantas no armário. Aposto que ela vai nos pedir um trocado.

 

SARDANELO

Cortina que pertenceu ao French-Cancan onde La Goulue dançava e o Lautrec tomava seu absyntho… Uma preciosidade histórica… Vale uma fortuna!… Nosso theatro é coisa fina…

 


MARTINICO

A mesma com que embalamos a réplica do Trem Carthago, famoso por seu trajeto impossível, de Fracaleza a Pequinho. Isto muito antes da saga serial do Trem das Neves. Agora ela será o Fiat Breu dessa nossa pequena evocação das misérias humanas assoladas pela Anão Gigante do Collàgio Prutuca.

 

SARDANELO
O Anão Gigante Quasimodo é o pior aluno do Collàgio Prutuca. Só obedece ao Doutor Pastilha. Mas… volta e meia foge pr’aprontar maldades. Seu sonho era justamente viajar no Trem Carthago, e trabalhar de lanterninha no saudoso Cine Azteka.

 

MARTINICO

Sonho deposto, pois acabou enfurnado com dieta de pá e carvão, alimentando as fornalhas da Boca Grande. Dizem que foi punido ao ser pego com a mão na botija, ou melhor, com o pinto no melaço, violentando as aldeãs mais jovens. Teve um olho arrancado e mancava de uma perna. Seu breve romance com Esmeralda findou quando ela descobriu no major Temístocles um modo de eliminar suas sentenças por falar com uma cabra em praça pública e ludibriar a todos oferecendo um lugar ao céu em troca de algumas patacas. Quando Esmeralda se foi o Anão Gigante ficou tão completamente desolado que até mesmo o papel que lhe deram de interrogador das sete damas em uma narrativa folhetinesca foi um completo fracasso, e fez com que ele desaparecesse antes de concluir a tarefa.

 

SARDANELO

Aí está, parece que agora a cortina pode ir caindo, lentamente, ao som de uma fuga de Baco, ao piano, tocada por Frei Feijão.

 

MARTINICO

Bem caidinha…

 

II. Tragédia de Melena Badroska, fora do palco

 

SARDANELLO

Segundo alguns pensadores esotéricos, os construtores das Pyrâmides, Atântidas, possuidores de grande sabedoria, eram habitantes duma ilha-continente que sofreu um súbito terremoto e sumiu. A esta teoria se refere o Platão. Melena Badroska acreditava na Atlântida, mas a colocava em Mato Grosso. O arqueólogo Fawcett então famoso por várias descobertas na África, tinha crença total na tese de Dona Melena, e conseguiu apoio financeiro pruma colossal expedição que acabou se perdendo na floresta e só poucos lograram sobreviver milagrosamente, entre eles o próprio Fawcet que não desistiu de seu plano de descobrir a Atlântida em Mato Grosso. Mas face ao desastre da primeira expedição, que custou uma fortuna fabulosa aos patrocinadores, não encontrou mais apoio nenhum. Então… resolveu fazer a expedição, sem recursos, na companhia de seu filho adolescente e de um também adolescente amigo do filho. Sumiram os três na floresta e nunca mais foram vistos. A ilha estaria a meio-caminho entre a Euroáfrica e a América do Sul.

 


MARTINICO

Isto causou imensa inveja aos pelasgos, bem como aos fenícios e os caraíbas. A terra teria hoje outra feição não fosse o custo excessivo da primeira expedição que impossibilitou seu desdobramento, uma vez descoberto onde ficava o norte das bússolas arrematadas em leilões na Cananéia. Dona Melena colecionava picos de montanhas e brumas caluniadas. Era danada e recebia a todos com taças presenteadas por Baal. Dizem que no quintal de sua casa mantinha um bezerro de ouro cujo leite era usado na iniciação do verdadeiro druidismo. Mas não se sabe, pois dela se dizia muita coisa. O poeta André Breton quando ali esteve a confundiu com a condessa de Diam Diam e, botando os pés pelas mãos, bradou a vinho pequeno que fora Asterix quem colonizou a terra.

 

SARDANELLO

Melena Badroska tem o seu charme russo. Ela e o Coronel Orson na moto-com-barqueta, ela ia na barqueta, ele pilotando, ela teosofista, ele budista, tinham um charme misterioso.

 

MARTINICO

Um coronel budista é das coisas mais díspares que pode existir no mundo, pois a lâmina de sua espada atinge o plexo solar de toda e qualquer meditação. Mas Melena via ali outros motivos, curiosa por alguém que a levasse rio acima, pelas recônditas tribos dos pentateucos e dos druidas esquecidos. A caminho ela fazia cócegas em seu coronel que, perdendo o comando da moto-com-barqueta, a fazia serpentear dentro do rio. Ela ria e o chamava de meu querubim.

 

SARDANELLO

Duas extraordinárias figuras. Mas havia ainda o pequeno hindu, um rapazinho tipo Sabbuh, adotado pela Melena, para cumprir extraordinárias façanhas, tais subtrair mandalas de pagodes milenares, ou vender elixires do Coronel, e sempre pronto a cumprir as mais extravagantes missões…

 

MARTINICO

Sabbuz, como era chamado, era capaz de passar uma noite inteira ao relento contando quantas vezes os grilos faziam amor no outono, enquanto caíam até mesmo as folhas do calendário, e mais depressa ainda o tempo parecia passar. Um dia, enquanto remexia em seu dedão expurgando um ninho de bicho-de-pé, Sabbuz levantou a cabeça e viu passar pela varanda uma pequena e saltitante sombra, atrás da qual saiu correndo e (até onde se sabe) nunca mais voltou…

 

SARDANELLO

Melena chorou borbotões. E o Coronel virou duas garrafas de Rhum Moleca.

 

MARTINICO

O espírito de Sabbuz sempre veio visitar o intrépido casal: seja nas mesas brancas de dona Melena ou nas garrafas do Coronel.

 

SARDANELLO

É verdade… e sempre Melena afirmava que ela era virgem… Havia casado antes, mas só porque recebera mensagem astral que se deveria casar com determinado cavalheiro. E na noite de núpcias ele tentou violá-la, mas ela se defendeu com uma cimitarra. Desde então, nunca mais se viram. E ela manteve seu sagrado voto de virgindade que fizera à Deusa Ísis. Mas, e com o Coronel Orson? Uma amizade budística… e olhava para ele, que, impávido, suspirava, alisava as grisalhas barbas e emborcava seu copo de Rhum Moleca, o melhor do Caribe… (Encomende-o pela Internet ao Bazar Beirute, de Zeus Zalim)

 

MARTINICO

Quando as noites pulavam

de um lado para outro

tentando escapar dos dias,

Melena bebericava seu licor

de malva com berinjela.

O coronel pensava: quem sabe

dessa vez Lenica me dá

seu maior segredo! Ela,

No entanto, lhe diz com olhar

misterioso: Diga um verso bem

bonito, diga adeus e vá embora.

 

SARDANELLO

Coronel Orson pensativo soltou densa fumaceira de seu cachimbo, mas não disse verso algum. Saiu em silêncio, montou na sua moto, arrancou, e se foi, ao luar, estrada afora.

 

MARTINICO

A estrada serpenteava

pelo luar de estribilho.

Aproveitando a ausência

de seu talentoso amante,

Melena comeu num instante

um naco de paçoca e milho.

Depois seus olhos revirava

em busca de nova ciência.

Seu coronel estrada afora

só quis saber de ir embora.

 

SARDANELLO

Melena, diz para sua gata: O Coronel Orson pensa que me escapa… há mais de dez anos que nos conhecemos, e ele nem desconfia… Com tanta inocência… vai entrar direto no Nirvana…

 

MARTINICO

E o júbilo ficou de fora da cena, assim como a pimenta não entrou na panqueca. Melena sabia que as melhores receitas são aquelas que improvisam a falta de um de seus componentes. Porém o velho Orson subia e descia os morros em sua motoca, extraditando o calor que nascia em suas virilhas. Quantas dessas flores do desperdício nasceram no pomar daquela parelha! Quanto sangue derramado dentro de cada coração! 



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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 170 | maio de 2021

artista convidad0: Friedrich Schröder-Sonnenstern (Prússia, 1892-1982)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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