SARDANELO
Realmente um inexplicável fenômeno… Vou telefonar pro
Doutor Galeno…
MARTINICO
Sim, telefona, pede a ele intervenção urgente, preciso
ser internado…
RÁDIO MECULATRA
(em mais um de seus furos imprecisos)
DIÁLOGO
TELEPHONICO DE PLATÃO COM DOUTOR GALENO
RÁDIO
Sardanelo convenceu Platão, mestre supino dos diálogos,
a convencer o Doutor Galeno.
PLATÃO
Alô, Doutor Galeno, falei com Florivaldo, ele está de
acordo em ser internado.
GALENO
Poizé, Sardanelo, mas se eu o internar no Sanatório
Grinalda, ele vai enlouquecer todos os que já estão remediados, após décadas de
penoso tratamento…
SARDANELO
Mas se eles já estão remediados, o Senhor poderá soltá-los…
GALENO
Neste mundo de dementes globalizados?? Serão trucidados.
Rapidamente
um cenário é improvisado, a quartinha no centro da mesa, dois copos de alumínio,
a bodega de Clepto Cabroso está preparada para tudo:
MARTINICO
Não há como retornar à realidade, reino dos ditames,
flagelo dos diálogos, o próprio Pratão só não se encontra internado no Grinalda
graças a Galeno que o contratou como assessor de mazelas do espírito. Sardanelo,
melhor não insistir, assim acabam te internando e ficaremos sem os nossos diálogos…
SARDANELO
Se me internarem, escreverei minhas Memórias do Cárcere.
MARTINICO
Enquanto planejas tuas memórias eu sigo escrevendo meu
romance, a casa ardilosa das sete malucas…
SARDANELO
Falta o Anão.
O Anão e as Sete Malucas.
MARTINICO
É um anão gigante e tem no lugar do rosto uma mancha
confusa.
SARDANELO
Foi esse horrível Anão Gigante que enlouqueceu as Sete
Damas.
MARTINICO
Cada uma delas foi isolada em uma sala de interrogatório
onde o anão gigante perambula pela fragilizada consciência das sete damas.
SARDANELO
Um drama psico-policial. O anão-gigante diz que foi
aluno do Doutor Sigismindo Froyd.
MARTINICO
Ao abrir a porta da sala surge um olho do anão gigante
e com ele o imperativo de que elas contem seus segredos…
SARDANELO
O terrível nitzsxeniano Imperrativus Kategorrikus… No
Collàgio Prutuca, Doutor Pastilha oferece, a partir da semana que vem, um curso
intensivo sobre o Imperrativus Kategorrikus do Doktor Nitzxe, com substancial abatimento
de preço para sacerdotes, e militares que venham em grupo, que serão considerados
como família numerosa.
MARTINICO
A verdade é que as corças jamais se livraram da maldição
que lhes impôs suas patas de bronze. Hércules vagou pela terra um ano inteiro, esperando
encontrar ao final desse tempo, a pomada de louro prometida pelo doutor Pastilha…
SARDANELO
Doutor Pastilha, no seu curso de Mythologia no Collàgio
Prutuca, distribui a pomada de louro para os grandes heróis de Grécia e de Roma…
E, certamente, Hércules receberá sua merecida latinha da miraculosa pomada, mercê
de mui meritórios esfor3os em cumprir à risca seus Doze Trabalhos estafantes e perigosos…
Já era pra tê-la recebido, mas se embrenhou pelo mato atrás do centauro Neso, que
tentava seduzir a esposa do Herói, raptando-a em sua garupa, sob o pretexto de mostrar-lhe
os recantos mais propícios do frondoso bosque.
MARTINICO
A esposa do herói, segundo narra um folheto de cordel,
foi resgatada da garupa do centauro por um bando de faunos que afiavam seus cascos
no solo pedregoso do Bosque de Frondas. Chegando lá Hércules, que do outro lado
da história era conhecido por Héracles -, a amada já estava a salvo e Neso havia
sido enxotado do bosque. Famoso por suas realizações mitológicas, Hércules não podia
revelar que não fora ele a salvar Samíramis, seu amor quase único, de modo que os
faunos concederam ao corpulento semideus a lenda daquele resgate heroico.
SARDANELO
Aí está!… Os faunos também tinham seus dias de aprontarem
suas belas ações. Poderíamos concluir dizendo, como moral desta fábula: Nunca se
sabe de que moita o coelho vai sair. E os Faunos, tampouco, nunca se sabe o que
vão aprontar.
MARTINICO
As moitas agradecem os aplausos…
SARDANELO
A cortina plaaaaaaaafffffttttt
MARTINICO
O diabo dessa cortina é que não merece mais a menor
confiança, outra noite se trancou com duas mantas em um armário e ali dentro fez
a festa.
SARDANELO
São justamente os temores de Doutor Pastilha. Ele tem
a impressão de que as peças por trás da cortina são bem mais empestadas que as porcalhadas
do Marquês de Sade.
MARTINICO
Volta-e-mexe a confusão se instala e o decrépito desse
marquês engole a maçã da fábula que não lhe causa o menor efeito. Rapunzel o recolhe
em sua cabana suspensa e os dois ali se contorcem de glosas e motes.
SARDANELO
Doutor
Pastilha, preocupado, desconfia que o pérfido marquês tenha surrupiado sua latinha
das famosas Pastilhas do Doutor Galeno, de um poder assombroso, mata os micropatas
Coroca, lombrigas e piolhos, levanta até defunto, como foi o caso do Faraó Micherinos,
que tomando três pastilhas antes de morrer, depois de enfaixado e colocado no sarkófago,
conseguiu, durante o velório, ficar ereto, bradou palavrões no sarkófago, furou
a tampa e voltou a reinar por várias décadas. O assunto foi abafado pelas autoridades
civis e militares.
MARTINICO
Algumas
bolorentas pastilhas foram encontradas atrás das pernas de um armário desarrumado
onde as meninas de Micherinos guardavam seus paninhos quentes. As noites no velório
eram uma fantasia lúbrica onde os defuntos eretos se deixavam cavalgar pelas lavadeiras
do império que logo se descobriam eram uns travecos bem arrumadinhos. A realeza
era mestre em comprar o silêncio dos congressistas, de modo que o marquês seguia
desfiando seu rosário libidinoso e faturando nas vendas do livrinhos por toda parte…
SARDANELO
O
Anão Gigante é um flagelo digno de Ghengis Khan. Seu criador, Dok Frakastel, é um
gênio louco, queria criar a raça de Humanoides a serviço da Humanidade e inventou este
colossal psicopata Anão Gigante!… Doutor Frakastel, um herético iluminista, insistiu
em criar essa raça de autômatos de inteligência racional, para o que, em seu laboratório,
capta a força dos relâmpagos para utilizá-la na Criação da Vida!!!… um louco herético
que, por incompetência, poderá destruir a Humanidade. Foi ele, aliás, o desastrado
criador do Vírus Coroca, um vírus que, ele próprio inofensivo, iria destruir todos
os vírus fatais das diversas moléstias transmissíveis que martirizam quem possam
infectar. E agora... que adianta prender Doutor Frakastel?…
MARTINICO
Talvez
o melhor a fazer com esse farrapo seria infectá-lo com o Coroca e deixá-lo à míngua
sem direito a hospital, vagando pelas ruas onde as pessoas até poderiam lhe apedrejar,
mas certamente não fariam. Este é mais um daqueles casos em que a criatura pode
vir a livrar-se de seu criador e refazer o seu mundo. Improvável qualquer cópia
de presságio, mas a vontade popular é mesmo que todos os padecimentos devem cair
sobre os costados desse doutor do caos.
SARDANELO
Sempre tem gente para adorar os mentecaptos genocidas.
Trata-se de um ataque de sardo-mazorquismo coletivo que pode englobar toda uma nação.
Ou todo o planeta. Quem não aderir, será massacrado pelos fiéis sardo-mazorquistas,
galvanizados pelo Louco Destrutor. Falta agora ver se Doutor Frakastel tem o mesmo
tipo de poder hipnótico, para empulhar toda uma Nação… e aí então, começará tudo
de novo…
MARTINICO
Até começaríamos tudo de novo, desde que não fosse por
aquele famigerado bolero. Ou talvez não começássemos para não correr o risco de
ter de ouvi-lo como trilha sonora da resistência de Pindorama. O Clube de Caça aos
Corvos adotaria uma versão cabaré da música e gravaria um vídeo pastelão usando
todas as cores de pele à disposição no estoque da Granja Raposão. O Renascimento
por vezes não passa de uma nova versão do Inferno.
SARDANELO
Só haverá democracia racial quando as galinhas pretas
botarem ovos brancos, e as galinhas brancas botarem ovos pretos. Y así pasan los dias… chaca-chaca-chaca…
MARTINICO
Acho que se poderia fazer uma boa publicidade com esse
troca-troca. Mas dá uma olhada, lá vem de novo aquela cortina desmiolada. Do jeito
como vem aos frangalhos, levou uma surra das mantas no armário. Aposto que ela vai
nos pedir um trocado.
SARDANELO
Cortina que pertenceu ao French-Cancan onde La Goulue
dançava e o Lautrec tomava seu absyntho… Uma preciosidade histórica… Vale uma fortuna!…
Nosso theatro é coisa fina…
MARTINICO
A mesma com que embalamos a réplica do Trem Carthago,
famoso por seu trajeto impossível, de Fracaleza a Pequinho. Isto muito antes da
saga serial do Trem das Neves. Agora ela será o Fiat Breu dessa nossa pequena evocação
das misérias humanas assoladas pela Anão Gigante do Collàgio Prutuca.
SARDANELO
O Anão
Gigante Quasimodo é o pior aluno do Collàgio Prutuca. Só obedece ao Doutor Pastilha.
Mas… volta e meia foge pr’aprontar maldades. Seu sonho era justamente viajar no
Trem Carthago, e trabalhar de lanterninha no saudoso Cine Azteka.
MARTINICO
Sonho
deposto, pois acabou enfurnado com dieta de pá e carvão, alimentando as fornalhas
da Boca Grande. Dizem que foi punido ao ser pego com a mão na botija, ou melhor,
com o pinto no melaço, violentando as aldeãs mais jovens. Teve um olho arrancado
e mancava de uma perna. Seu breve romance com Esmeralda findou quando ela descobriu
no major Temístocles um modo de eliminar suas sentenças por falar com uma cabra
em praça pública e ludibriar a todos oferecendo um lugar ao céu em troca de algumas
patacas. Quando Esmeralda se foi o Anão Gigante ficou tão completamente desolado
que até mesmo o papel que lhe deram de interrogador das sete damas em uma narrativa
folhetinesca foi um completo fracasso, e fez com que ele desaparecesse antes de
concluir a tarefa.
SARDANELO
Aí está, parece que agora a cortina pode ir caindo,
lentamente, ao som de uma fuga de Baco, ao piano, tocada por Frei Feijão.
MARTINICO
Bem
caidinha…
II. Tragédia de Melena Badroska, fora do palco
SARDANELLO
Segundo alguns pensadores esotéricos,
os construtores das Pyrâmides, Atântidas, possuidores de grande sabedoria, eram
habitantes duma ilha-continente que sofreu um súbito terremoto e sumiu. A esta teoria
se refere o Platão. Melena Badroska acreditava
na Atlântida, mas a colocava em Mato Grosso. O arqueólogo Fawcett então famoso por
várias descobertas na África, tinha crença total na tese de Dona Melena, e conseguiu
apoio financeiro pruma colossal expedição que acabou se perdendo na floresta e só
poucos lograram sobreviver milagrosamente, entre eles o próprio Fawcet que não desistiu
de seu plano de descobrir a Atlântida em Mato Grosso. Mas face ao desastre da primeira
expedição, que custou uma fortuna fabulosa aos patrocinadores, não encontrou mais
apoio nenhum. Então… resolveu fazer a expedição, sem recursos, na companhia de seu
filho adolescente e de um também adolescente amigo do filho. Sumiram os três na
floresta e nunca mais foram vistos. A ilha estaria a meio-caminho entre a Euroáfrica
e a América do Sul.
MARTINICO
Isto causou imensa inveja aos pelasgos,
bem como aos fenícios e os caraíbas. A terra teria hoje outra feição não fosse o
custo excessivo da primeira expedição que impossibilitou seu desdobramento, uma
vez descoberto onde ficava o norte das bússolas arrematadas em leilões na Cananéia.
Dona Melena colecionava picos de montanhas e brumas caluniadas. Era danada e recebia
a todos com taças presenteadas por Baal. Dizem que no quintal de sua casa mantinha
um bezerro de ouro cujo leite era usado na iniciação do verdadeiro druidismo. Mas
não se sabe, pois dela se dizia muita coisa. O poeta André Breton quando ali esteve
a confundiu com a condessa de Diam Diam e, botando os pés pelas mãos, bradou a vinho
pequeno que fora Asterix quem colonizou a terra.
SARDANELLO
Melena Badroska tem o seu
charme russo. Ela e o Coronel Orson na moto-com-barqueta, ela ia na barqueta, ele
pilotando, ela teosofista, ele budista, tinham um charme misterioso.
MARTINICO
Um coronel budista é das coisas mais díspares
que pode existir no mundo, pois a lâmina de sua espada atinge o plexo solar de toda
e qualquer meditação. Mas Melena via ali outros motivos, curiosa por alguém que
a levasse rio acima, pelas recônditas tribos dos pentateucos e dos druidas esquecidos.
A caminho ela fazia cócegas em seu coronel que, perdendo o comando da moto-com-barqueta,
a fazia serpentear dentro do rio. Ela ria e o chamava de meu querubim.
SARDANELLO
Duas extraordinárias figuras. Mas havia
ainda o pequeno hindu, um rapazinho tipo Sabbuh, adotado pela Melena, para cumprir
extraordinárias façanhas, tais subtrair mandalas de pagodes milenares, ou vender
elixires do Coronel, e sempre pronto a cumprir as mais extravagantes missões…
MARTINICO
Sabbuz, como era chamado, era capaz de
passar uma noite inteira ao relento contando quantas vezes os grilos faziam amor
no outono, enquanto caíam até mesmo as folhas do calendário, e mais depressa ainda
o tempo parecia passar. Um dia, enquanto remexia em seu dedão expurgando um ninho
de bicho-de-pé, Sabbuz levantou a cabeça e viu passar pela varanda uma pequena e
saltitante sombra, atrás da qual saiu correndo e (até onde se sabe) nunca mais voltou…
SARDANELLO
Melena chorou borbotões. E o Coronel virou
duas garrafas de Rhum Moleca.
MARTINICO
O espírito de Sabbuz sempre veio visitar
o intrépido casal: seja nas mesas brancas de dona Melena ou nas garrafas do Coronel.
SARDANELLO
É verdade… e sempre Melena afirmava que
ela era virgem… Havia casado antes, mas só porque recebera mensagem astral que se
deveria casar com determinado cavalheiro. E na noite de núpcias ele tentou violá-la,
mas ela se defendeu com uma cimitarra. Desde então, nunca mais se viram. E ela manteve
seu sagrado voto de virgindade que fizera à Deusa Ísis. Mas, e com o Coronel Orson?
Uma amizade budística… e olhava para ele, que, impávido, suspirava, alisava as grisalhas
barbas e emborcava seu copo de Rhum Moleca, o melhor do Caribe… (Encomende-o pela
Internet ao Bazar Beirute, de Zeus Zalim)
MARTINICO
Quando as noites pulavam
de um lado para outro
tentando escapar dos dias,
Melena bebericava seu licor
de malva com berinjela.
O coronel pensava: quem sabe
dessa vez Lenica me dá
seu maior segredo! Ela,
No entanto, lhe diz com olhar
misterioso: Diga um verso bem
bonito, diga adeus e vá embora.
SARDANELLO
Coronel Orson pensativo soltou densa fumaceira
de seu cachimbo, mas não disse verso algum. Saiu em silêncio, montou na sua moto,
arrancou, e se foi, ao luar, estrada afora.
MARTINICO
A estrada serpenteava
pelo luar de estribilho.
Aproveitando a ausência
de seu talentoso amante,
Melena comeu num instante
um naco de paçoca e milho.
Depois seus olhos revirava
em busca de nova ciência.
Seu coronel estrada afora
só quis saber de ir embora.
SARDANELLO
Melena, diz para sua gata: O Coronel Orson pensa que me escapa… há mais de dez anos que nos conhecemos,
e ele nem desconfia… Com tanta inocência… vai entrar direto no Nirvana…
MARTINICO
E o júbilo ficou de fora da cena, assim como a pimenta não entrou na panqueca. Melena sabia que as melhores receitas são aquelas que improvisam a falta de um de seus componentes. Porém o velho Orson subia e descia os morros em sua motoca, extraditando o calor que nascia em suas virilhas. Quantas dessas flores do desperdício nasceram no pomar daquela parelha! Quanto sangue derramado dentro de cada coração!
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 170 | maio de 2021
artista convidad0: Friedrich Schröder-Sonnenstern (Prússia, 1892-1982)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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