A Arte…A arte contemporânea…A arte do nosso tempo…
Sim,
um belo jogo dos cinco cantinhos, se nos pusermos a conferir os diversos
caminhos, as diversas sendas por onde se desloca, frequentemente criando
complicações na cabeça e nos olhos de quem a contempla, a submete a avaliações
e se tenta deslumbrar com todos os seus ritmos, ou melhor: com as diversas
encarnações em que se mostra, se revela, com que nos apresenta a sua face ora
instigante ora mesmo fautora de desilusões e, até, de enjoativas aparências,
rostos, fotos reveladoras de algo que não conseguiu realizar-se e por isso fica
do lado negro das realidades que melhor seria esquecerem-se.
Mas
vejamos como é que o artista se pensa, se locomove nos meandros que são o seu
campo de manobras, a sua visão do mundo em todas as direcções possíveis e
realizáveis:
A recriação da natureza
Se há fronteiras entre o sonho e a
vigília, parece que compete ao artista desfazê-las. Diz-se que no princípio do
mundo foi o ruído e a tempestade e grandes sombras pairavam sobre as águas.
Contudo, a função do artista exerce-se em silêncio, um silêncio algo equívoco
porque totalmente interior e multiplicado nos seus dias, nas noites em que
observa a existência triangular: a palavra, as cores e os traços, o seu corpo e
os seus humores e os diversos países mentais em que é lícito perder-se ou
achar-se. Não há que buscar estrelas vespertinas ou matutinas, essas tem-nas o
artista nas suas paisagens de dentro e de fora, tal como nos seus desesperados
momentos de amargura ou nos instantes de encantamento: trata-se, isso sim, de
transfigurar e não de inventar. A invenção do artista sucede aqui e acolá,
serve dizer: existe nas suas mãos como que permanentemente, mas as suas mãos,
tal como as de toda a gente, estão e estarão sempre manchadas por estranhas
substâncias que partem do quotidiano como se este fosse – para empregar uma
imagem alquímica – a matéria afastada da Obra. E então o artista caminha pelos
campos, jornadeia perto do mar, lá onde os destroços se acantonam como
inquietantes rochedos. A pouco e pouco vai entendendo a melhor maneira de jazer
sob os astros que o tempo lhe consentiu ver. Então, entram pé ante pé a
nostalgia, a esperança e o remorso – difusos, esquisitamente silenciosos. Daqui
extrai o artista um verbo ou um traço, dali recolhe um adjectivo ou uma cor, um
encadeamento além das promessas vagas que as mutações do quotidiano se
encarregam depois de tornar em acontecimentos que por vezes ferem, por vezes
punem. É um percurso todo feito de humildes olhares que, trespassando o vazio e
o incorpóreo, criam rios e montanhas, caminhos vicinais e bosques onde as
plantas e as pedras têm significado. O arista é agora uma entidade viva e em
chamas, incendeia o futuro e o passado: é o presente que se transmutou, a
espiral deslocando-se infinitamente. Todas as eras idas lhe vão criando sombras
no rosto, nos dedos, nos ombros se mal se precata. Mas são sombras como que
purificadas e amigas onde se distinguem contornos de animais, de gentes que
amou ou o amaram, a natureza vegetal e mineral e as suas variadas formas nas
suas cores distintas. O artista ascendeu ao poema ou ao quadro, exerce-se em
todas as direcções. E a obra vive e a sua presença é íntima e solene. Entra no
mundo, desdobra-se como se o mundo o pudesse conter inteiramente. É um feto,
uma flor, um planeta. Roda no espaço e repousa sobre a terra. Princípio e fim
do Verbo, conquistou os sete reinos da memória. Perplexo ante a ventania, o
artista toca o seu rosto convulso: pode enfim tocar também a sua silhueta, que
é a silhueta que o mistério buscava esconder. A pura felicidade de afeiçoar é
pois matéria vivificadora, que ele contempla como se contempla uma fotografia
muito antiga. Há luzes e há escuridão palpitando em torno de si: amigos que se
vão ou pacientemente chegam com um passo pausado e como que temeroso, mulheres
que se adivinham mais do que se olham e que já nada têm para lhe dizer,
espantos, contentamentos, muita gente em torno da mesa, a solidão de um quarto
em pleno Verão. É a ternura enfim presente que a sabedoria criou para nos
inquietar com ironia, mas o artista já compreendeu que urge resistir às
aparências que se desenham sem que ele possa exercer a sua vontade.
Andando pelo
seu pé, o artista – devagar e com o coração opresso – vai sentar-se numa pedra
qualquer à beira da estrada e olha lá ao longe a iluminada cidade dos homens. É
o fim da tardinha, o sol evolou-se mansamente. Uma penumbra familiar vai dando
na copa das árvores, nas colinas em volta.
O artista,
imóvel, contempla o minúsculo relevo das casas ao pé da grande linha do
horizonte. Imóvel, espera e olha. Como um animal arcaico, apenas silhueta,
apenas um retrato enquanto as palavras aguardam a noite que chega para que o
mundo continue.
***
Têm-se
multiplicado, em diversas localidades internacionais, as exposições colectivas,
levadas ao título de realizações multifacetadas e compostas pelas mais diversas
expressões plásticas, frequentemente protagonizadas por um tal ror de obras que
chegam a ser enjoativas não só devido à grande quantidade mas também pelo facto
de serem repetitivas e, por mor da sua falta de originalidade – copiam geralmente
o que já fora anteriormente feito pelos autores originários - nos deixam um vazio
que nos desconsola e chega a repelir-nos. A impressão com que se fica é a de
que os seus protagonistas não procuram atingir o alfa e o ómega da superior realização
mas propiciar a simples aquisição daquilo que vão fazendo.
Ou
seja, oferecem ao mercado da arte, sem se ocuparem muito com a ética da criação
e a filosofia da criatividade original, os seus produtos de ocasião.
Nada
de grande e de exigente, como pelo contrário se pode ver no texto que aqui vai
a seguir, da autoria do recentemente falecido pintor surrealista Carlos Martins:
I
- A pintura como interrogação e expressão da vida
Como pedir ao pintor que cale e
oculte a sua melancolia e a mágoa de ter dentro de si, rebelando-o, o fogo do
desencanto e da abjecção?
O pintor livre situa-se pois num
pleno que escapa às arrumações economicistas e materialistas que pretendem
reduzir a vida e a complexidade das sociedades humanas a uma mera luta de
interesses entre classes ou grupos sociais. Há mais mundos – já escrevia José
Régio. O pintor, como poeta da paleta, não pode deixar de reflectir nas suas
telas o desmoronamento do mundo que se processa à sua volta.
Entregue à tela como aos braços e
ao ventre da mulher e do homem amado, o pintor segue as coordenadas e os
caminhos ditados pelo subconsciente, numa busca incessante de realidade para
além das aparências e das sombras. Porque aquela não se apresenta fácil e fiel
a todos os olhares, antes se confundindo e insinuando como uma fórmula secreta.
E aqui chegados, desde logo relacionamos o pintor como um descodificador de símbolos
e segredos cujo empreendimento sabe nunca poder terminar. Daí a sua vida ser um
imenso percurso que se realiza sobretudo através dos outros, mais propriamente
através do espírito e da palavra dos outros, isto é, para além dos limites da
sua própria existência.
O assunto, amante fiel da forma,
é o alvo do pintor invadindo-o até às entranhas, ainda que seja conhecido que
um e outra se conciliam como no amor. O acto de pintar é para o pintor
violentamente orgástico e experiência íntima que sobeje para deixar de fora
todos os que dele colhendo a iniciação, somente desejam os seus frutos
tentadores, ignorando ou desprezando os caminhos de sacrifício que o mesmo
encerra. A Pintura como a Alquimia não é campo de cultivo para assopradores de
circunstância ou cultores de catavento que desertam à menor das dificuldades.
Ritual de vida e de morte, a pintura implica uma disponibilidade do criador
para a aceitação dos obstáculos.
Na tela as cores estão lá todas,
absolutamente em tudo. As cores quentes confundindo-se com as mais frias, os
vermelhos e os negros do fogo e do sangue relacionando-se com os azuis e os
verdes da pureza e da degeneração. Contudo com as cores, levando-as na ponta do
pincel, nos dedos ou na espátula, vão também os fantasmas da realidade, as regiões
ocultas que só o poeta tem a faculdade de penetrar.
II
– A fúria dos elementos
A minha própria experiência de
pintor que monta o atelier na rua ou nos parques da cidade, sob sol intenso ou
recebendo no corpo e na alma a fúria dos ventos, tempestades ou invejas
mesquinhas, permitiu-me (e permite ainda) percorrer os labirintos, subterrâneos
e infernos da vida contemporânea e sentir o compasso ignóbil por onde se rege a
maioria dos homens da sociedade moderna e “civilizada”. Não é obrigatório que
outros tenham de o fazer e haverá certamente outros modos de lá chegar. Todavia
é uma experiência única (e aterradora) pois coloca o pintor no meio da vaga
redutora onde se matam à nascença todos os sinais de inocência e ilusão.
A minha pintura não cessa de
reflectir estas viagens de realidade e pesadelo, encontros com a matéria-prima
com que se concebem o ódio e a degeneração do espírito humano.
Os meus últimos trabalhos, estes
que exponho aos vossos olhos belos e selvagens, ostentam o monstro com o ventre
repleto de novos embriões. O retrato do Indizível não está ainda terminado mas
já se lhe vê nos olhos a ambição de ficar por largo tempo, tentaculando virgens
e homens de mera condição.
Em data que desconhecemos, neste
século em que as sombras do racionalismo se fecharam como garras sobre o Mundo,
de Bruxelas escreveu Saldanha da Gama para o poeta Mário Cesariny: “Ou aller
pour vivre, ivre, maigre, mais libre?”. O drama para o poeta do nosso tempo e
particularmente dos dias de hoje, é o da sobrevivência espiritual e igualmente
física, numa sociedade e num mundo onde a vontade dominante se inclina
vertiginosamente para o holocausto e a queda, arrastando nessa tragédia
colectiva todos os que não se submetem às suas inclinações destrutivas e antropofágicas.
Farol de poesia e liberdade, a
pintura continuará, contra todas as aparências (e apesar de todas as
resignações e conformismos) a iluminar as zonas de sombra da realidade. Sem
quaisquer vinculações a correntes ou postulados estéticos ou ideológicos, antes
agindo como ave de voo largo e universal, o pintor continuará a traçar na tela
o agitar frenético de vampiros que invade o rosto do homem e lhe sulca na pele
os caminhos da rendição.
É essa a sua condição.
***
A arte
contemporânea, mais do que nos tempos dos impressionistas em que se originou a moderna pintura de tradição, perfeitamente compreensível pois é filha de uma
movimentação legítima e descomprometida, está a sofrer, como naquele tempo, do
convencionalismo exercido por sicofantas e imitadores sem talento reconhecível,
que tentam esforçadamente extinguir a originalidade e criar uma espécie de
deserto repleto de vulgaridades. E nisso têm o beneplácito, mesmo o apoio, de
colectivos nebulosos que intuem ou mesmo sabem que é essa a forma mais eficaz
de estabelecer um mundo em que os seus tentames tenham êxito e poder e onde o
chamado vil metal seja a expressão inegável do seu domínio.
A
isto há que responder com a naturalidade de uma arte livre e aberta aos signos
do que lhe é próprio: a prospeção da imaginação, do humor negro, da magia
inscrita nas cores e nas formas de algo que aponta para a permanência da
liberdade de ser e de estar na vida com todas as ilimitadas possibilidades de
exercer uma pintura – ou uma escrita – que vá para além do que tentam impedir que
seja a nossa existência como seres dum mundo sensível e definitivamente
libertado.
NICOLAU SAIÃO (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949). Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc. Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair). Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo Francisco, Fora de portas, de Carlos Garcia de Castro, Estravagários, de Nuno Rebocho e Chão de Papel, de Maria Estela Guedes. Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005). Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril. Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995). Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones lusitanas. Tem colaborado em espaços culturais de vários países. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de Mérito Municipal.
DESMOND MORRIS (Reino Unido, 1928). Sus grandes pasiones son los animales y el arte. Es zoólogo, con doctorado en Oxford, etólogo, pintor surrealista y experto en sociobiología humana. Ha publicado 48 artículos científicos, escrito 80 libros y ha sido traducido a 43 idiomas. Entre 1956 y 1998, presentó más de 700 programas de televisión. También pintó más de 3400 cuadros y presentó 60 exposiciones individuales. (Fuente: U.Porto) Uno de sus libros más destacados es The Naked Ape (1967), además de ser conocido por su programa de televisión Zoo Time, en la década de 1960, en ITV.
Agulha Revista de Cultura
Número 228 | abril de 2023
Artista convidado: Desmond Morris (Reino Unido, 1928)
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2023
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