terça-feira, 15 de abril de 2025

FRANCISCA JÚLIA (1871-1920)

 

DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA

 


Os episódios famosos de sua carreira envolvem a demonstração, nada anacrônica, diga-se de passagem, de um duradouro machismo à brasileira por parte dos poetas que lhe foram contemporâneos. Severiano de Rezende, por exemplo, lhe sugerira: Minha senhora, há ocupações mais úteis: dedique-se aos trabalhos de agulha. Após ser publicada, em meados da década de 1890, no periódico A Semana, de Valentim Guimarães, o poeta e dramaturgo Artur de Azevedo também declara: não acreditei [que esses versos] saíssem de mãos femininas, e o mesmo pensou o poeta, crítico e filólogo João Ribeiro, que imaginou que fosse um caso de mistificação e atribuiu a autoria dos poemas à Raimundo Correia, aproveitando para publicar um poema em resposta sob o pseudônimo de Maria Azevedo, com a declaração: Eu respondo a esta imaginária poeta. Mas Francisca Júlia (1871-1920) era bem real e mais tarde foi autora de dois volumes de poesia, Mármores (1895) e Esfinges (1903), além dos infanto-juvenis Livro da Infância (1899) e Alma Infantil (1912). O primeiro livro é considerado mais parnasiano, enquanto o segundo, além de reunir poemas do primeiro, apresenta novos poemas onde se nota influências simbolistas, por sua temática mais mística e contemplativa, por vezes chegando ao devocional, sobretudo nos poemas adicionados na segunda edição. Quem tiver algum grau de TOC com datas (mea culpa) há de notar aqui a mínima diferença cronológica que separa o seu livro de estreia do de Olavo Bilac, Poesias (1888) – Bilac então tinha 23 anos, e Júlia, 17, publicando Mármores depois aos 24. Ele próprio, aliás, a elogia, e diz de seu português que era o mesmo antigo português, remoçado por um banho maravilhoso de novidade e frescura. Bem, é um comentário que não diz muita coisa (antigo português remoçado? tipo, com renew? com botox?), mas é um elogio vindo do Bilac, ainda assim. É complicado discutir qual a situação canônica atual de Francisca Júlia, em parte porque o próprio parnasianismo ainda existe como uma espécie de gigante antigo e anacrônico derrotado pela estética modernista – e que, justamente por ter sido uma estética dominante e porque as nossas sensibilidades já não batem, nem de longe, com as deles (e eu digo isso como alguém que passou as últimas semanas mergulhado nos sonetos do “Via Láctea”), não me parece que será revisto tão cedo. Mas não sei, pode ser que isso seja só impressão minha.

 

 

DANÇA DE CENTAURAS

 

Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,

Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças,

Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças

Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.

 

A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;

Mil centauras a rir, em lutas e torneios,

Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios

De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.

 

Empalidece o luar, a noite cai, madruga…

A dança hípica pára e logo atroa o espaço

O galope infernal das centauras em fuga:

 

É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,

Enorme, aceso o olhar, bravo, do heróico braço

Pendente a clava argiva, Hércules aparece…

 

 

ADAMAH

 

A Júlia Lopes de Almeida

 

Homem, sábio produto, epítome fecundo

Do supremo saber, forma recém-nascida,

Pelos mandos do céu, divinos, impelida,

Para povoar a terra e dominar o mundo;

 

Homem, filho de Deus, imagem foragida,

Homem, ser inocente, incauto e vagabundo,

Da terra substância, em que nasceu, oriundo,

Para ser o primeiro a conhecer a vida;

 

Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada

Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas

De pássaros saudando a primeira alvorada,

 

Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas

O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada

No primeiro silêncio e nas primeiras trevas…

 

 

EM SONDA

 

Quieta, enrolada a um tronco, ameaçadora e hedionda,

A boa espia… Em cima estende-se a folhagem

Que um vento manso faz oscilar, de onda em onda,

Com a sua noturna e amorosa bafagem.

 

Um luar mortiço banha a floresta de Sonda,

Desde a copa da faia à esplêndida pastagem;

O ofidiano, escondido, olhos abertos, sonda…

Vai passando, tranqüilo, um búfalo selvagem.

 

Segue o búfalo, só… mas suspende-lhe o passo

O ofidiano cruel que o ataca de repente,

E que o prende, a silvar, com suas roscas de aço.

 

Tenta o pobre lutar; os chavelhos enresta;

Mas tomba de cansaço e morre… Tristemente

No alto se esconde a lua, e cala-se a floresta…

 

 

RAINHA DAS ÁGUAS

 

a Alberto de Oliveira

 

Mar fora, a rir, da boca o fúlgido tesouro

Mostrando, e sacudindo a farta cabeleira,

Corta a planura ao mar, que se desdobra inteira,

Na esguia concha azul orladurada de ouro.

 

Rema, à popa, um tritão de escâmeo dorso louro;

Vão à frente os delfins; e, marchando em fileira,

Das ondas a seguir a luminosa esteira,

Vão cantando, a compasso, as piérides em coro.

 

Crespas, cantando em torno, as vagas, à porfia,

Lambem de popa à proa o casco à concha esguia,

Que prossegue, mar fora, a infinda rota, ufana;

 

E, no alto, o louro sol, que assoma, entre desmaios,

Saúda esse outro sol de coruscantes raios

Que orna a cabeça real da bela soberana.

 

 

A NOITE

 

A Venceslau de Queiroz

 

Um vento fresco e suave entre os pinhais murmura;

A Noite, aos ombros solta a desgranhada coma,

No seu plaustro de crepe, entre as nuvens, assoma…

Tornam-se o campo e o céu de uma cor mais escura.

 

Um novo aspecto em tudo. Um novo e bom aroma

De látiros exala a amplíssima verdura.

Num hausto longo, a Noite, aos ares a frescura

Doce, entreabrindo a flor dos negros lábios, toma…

 

Por vales e rechãs caminha, passo a passo,

Atento o ouvido, à escuta… E no seu plaustro enorme

Cujo rumor desperta a placidez do espaço,

 

À encantada região das estrelas se eleva…

E, ao ver que dorme o espaço e o mundo inteiro dorme,

Volve, quieta, de novo, à habitação da treva.

 



ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 260 | abril de 2025

Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


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