DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA
SENSUAL
Quando, longe de ti, solitária, medito
nesta afeição pagao que envergonhada oculta,
vem-me às narinas, logo, o perfume esquisito
que o teu corpo desprende e não há teu próprio vulto.
A confissão febril deste afeto infinito
há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,
pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
à minha castidade é como um insulto.
Se acaso te achares longe, uma barreira colossal
dos protestos que, outros, eu faço a mim mesma
de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.
Mas, se você está ao meu lado, barreira desaba,
e sinto da volúpia a ascosa e fria lesma
minha carne poluir com repugnante baba...
ESBOÇO
Teus lábios inquietos pelo meu corpo
acendiam astros...
E no corpo da mata os pirilampos
de quando em quando,
insinuavam fosforecentes carícias...
E o corpo do silêncio estremecia,
chocalhava, com os guizos do cri-cri osculante
dos grilos que imitavam a música da tua boca...
E no corpo da noite
as estrelas cantava
com a voz trêmula e rútila
de teus beijos...
FECUNDAÇÃO
Teus olhos me olham
longamente,
imperiosamente...
de dentro deles teu amor me espia.
Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura
Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.
Nada me diz,
porém entre-me a carne a persuasão
de que seus dedos criam raízes
na minha mão.
Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.
Tem seu olhar mórbido
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.
REFLEXÃO
Há certas almas
como as borboletas,
cuja fragilidade de asas
não resiste ao mais leve contato,
que deixa ficar algumas
pelos dedos que as tocam.
Em seu voo de ideal,
deslumbram os olhos,
atraem como vistas:
perseguem-nas,
alcançam-nas,
detém-nas,
mas, quase sempre,
por saciedade
ou piedade,
libertam-nas outra vez.
Ela, porém, não voam como dantes,
fiquem vazias de si mesmas,
cheias de dessalento...
Almas e borboletas,
não fosse a tentação das cousas rasas;
- o amor de néctar,
- o néctar do amor,
e emparelharíamos nos cimos
seduzindo do alto,
admirando de longe!...
LEMBRANÇAS
Teus retratos — figuras esmaecidas;
mostrar pouco, muito pouco do que foste.
Suas cartas — palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes...
Só o espelho da minha memória
conserva nítido, imutável
a projeção de sua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pares vívidas
em relevo
as frases que seu carinho
descobri nelas imprimir.
Sou uma urna funerária de tua beleza
que saudade
embalsamou.
Quando chegar o meu instante derradeiro
só então, mais do que eu,
você morrerás
em mim.
ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 260 | abril de 2025
Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com






Nenhum comentário:
Postar um comentário