terça-feira, 15 de abril de 2025

JOAQUIM CARDOZO (1897-1978)

 

DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA

 

 


JOAQUIM MARIA MOREIRA CARDOZO nasceu em Recife no dia 26 de agosto de 1897 e morreu em Olinda em 4 de novembro de 1978. Engenheiro estrutural, integrou a equipe de Oscar Niemeyer na construção de Brasília e no conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte. Foi ainda poeta, contista, dramaturgo, professor universitário, tradutor, desenhista, caricaturista e editor de revistas de arte e arquitetura. Seus primeiros poemas datam de 1924, mas sua produção poética começa a aparecer em livro em 1947. Escreveu 11 livros, entre os quais se destacam: Poemas (1947), Signo estrelado (1960), O coronel de Macambira: bumba meu boi, em dois quadros (1963), Trivium (1952-1970), Mundos paralelos (1970), Poesias completas (1971), Os anjos e os demônios de Deus (1973), O interior da matéria e o capataz de Salema (1975). Em 2009, a Editora Aguilar publicou Poesia completa e prosa. Desfrutou de longa convivência com os modernistas e com os intelectuais de seu tempo. Às vezes de caráter melancólico e experimentalista, a sua poesia tem a cidade de Recife e o Nordeste como referência temática.

 

 

O RELÓGIO

 

Quem é que sobe as escadas

Batendo o liso degrau?

Marcando o surdo compasso

Com uma perna de pau?

 

Quem é que tosse baixinho

Na penumbra da antessala?

Por que resmunga sozinho?

Por que não cospe e não fala?

 

Por que dois vermes sombrios

Passando na face morta?

E o mesmo sopro contínuo

Na frincha daquela porta?

 

Da velha parede triste

No musgo roçar macio:

São horas leves e tenras

Nascendo do solo frio.

 

Um punhal feriu o espaço…

E o alvo sangue a gotejar,

Deste sangue os meus cabelos

Pela vida hão de sangrar.

 

Todos os grilos calaram

Só o silêncio assobia;

Parece que o tempo passa

Com sua capa vazia.

 

O tempo enfim cristaliza

Em dimensão natural;

Mas há demônios que arpejam

Na aresta do seu cristal.

 

No tempo pulverizado

Há cinza também da morte:

Estão serrando no escuro

As tábuas da minha sorte.

 

 

A TARDE SOBE

 

Ao rés da Terra o tempo é escuro

Mas a tarde sobe, se ergue no ar tranquilo e doce

A tarde sobe!

No alto se ilumina, se esclarece.

E paira na região iluminada.

 

Sobe, desfaz a trama de entrelaços

Superpostos na maneira dos esquadros

Sobre o chão aos poucos escurecendo.

Sobe: No meio da parte densa.

 

Sobe alva, serena para as estrelas

Que irão em breve aparecer,

Luzindo, no princípio da noite;

No espaço branco em que se completa

Preenchendo o centro e a esquerda

Branco que saiu limpo

De um fundo escuro de hachuras.

 

A tarde sobe!

Sobe até o zênite dando aos que passam

A paz e a serenidade do entardecer.

 

A tarde sobe pura e macia!

As linhas de baixo se inclinam

Se afastam e vão deixá-la subir.

 

 

VISÃO DO ÚLTIMO TREM SUBINDO AO CÉU

 

II

 

As locomotivas na rotunda

Olhavam para a noite do pátio da noite, imóveis, silenciosas

— Molossos deitados, dóceis, esperando: os olhos apagados os faróis.

 

Qual seria, seria, qual dentre elas

A que conduziria aquele trem, aquele que era o trem

E o último seria?

Qual delas ouviria a voz do Senhor?

 

Quando houve um trilo no ar: uma luz brilhou

No ar noturno — carvão do dia —

E uma dentre todas sentiu, de repente,

O alento do calor;

Alento que se estendeu do fogo,

E que lhe veio em sangue ardente,

Em respiração rumorosa de brancos vapores.

 

Uma dentre elas

Que era preta, violentamente, luzidia;

Que era preta, vagarosamente preta;

 

Preta e lentamente e luzidia;

Avançando, transpôs o virador;

E foi!

Foi um touro selvagem a princípio

Depois se fez um boi pesado e manso

Correndo as linhas de trilhos: as fitas, os fios, os trilhos de linha.

À sua aproximação as agulhas se abriram —

Porteiras de um curral — furos do espaço, aberturas

Para distâncias possíveis... aberturas, costuras

De rápidas passagens em direções ocultas.

Pouco e pouco, mais pouco, pouco a pouco

Ao trem se atrela, ao trem ligando o engate, os freios

Ajustando... ao trem disposto ao longo

Da plataforma — platimorfa, platibanda, alegrete

Canteiro cultivado — florido de gente.

 

E logo e depois, justo depois ficou imóvel

À espera, no ante-ritmo da espera

No anseio da esperaesperança:

Harmônicos da espera (intervalo! Vocalises do intervalo).

 

— Foi assim que se fez a composição daquele trem.

Daquele que era o trem, e o último seria.

 

 

TERRITÓRIO ENTRE O GESTO E A PALAVRA

 

Entre o gesto e a palavra: território escondido dentro de mim

Marcas de mortas visões; tentativas, indecisões, regozijos,

Entre o gesto e a palavra. Território:

Um silêncio, um gemido, um esforço imaturo

Possibilidade de um grito, modulação de uma dor.

— Ritmos mais doces que os das águas,

— Ternuras mais íntimas que as do amor

Entre o gesto e a palavra. Território

Onde as idéias se ocultam e os pensamentos se perdem

Os conceitos se escondem, os problemas se dissolvem

Entre o gesto e a palavra. Território.

— Os problemas da escolha, os princípios;

Transcendências: transparências, mediante

Uma luz que não se acende, existem

No território contido entre o gesto e a palavra.

 

— Um axioma, um lema, um versículo, um fonema,

Uma ameaça, uma tolice, o som velar, o eco,

Talvez a estátua de uma atitude.

Estão no campo depois do gesto

E antes da palavra.

Também estás para mim, amiga, entre esses dois expressivos

Entre alguma coisa de mímico ou de sonoro

Alguma coisa que é aceno ou que é voz:

Entre o de mim e o de ti: Tu estou

Tu vivo

Tu falo

Tu choro

Estás, mesmo que entre nós dois não exista

Um aparato gramático — uma sentença verdadeira

— ou uma síntese poética

Ilusória expressão com que se conformam os ingênuos —

Mesmo que a palavra se reduza a simples gesto verbal

Entre o gesto e este gesto há um infinito real.

 

 

O SALTO TRIPARTIDO

 

Havia um arco projetado no solo

Para ser recomposto em três curvas aéreas,

Havia um voo abandonado no chão

À espera das asas de um pássaro;

 

Havia três pontos incertos na pista

Que seriam contatos de pés instantâneos.

Três jatos de fonte, contudo, ainda secos,

Três impulsos plantados querendo nascer.

 

Era tudo assim expectativo e plano

Tudo além somente perspectivo e inerte;

Quando Ademar Ferreira, com perfeição olímpica,

Executou, em relevo, o mais alto

– Em notas de arpejo

– Em ritmo iâmbico

O tripartido salto.

 



ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 260 | abril de 2025

Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


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