• A
LIBERDADE FEMININA DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA
Criadoras refletindo sobre a própria
criação – esta foi a ideia que definiu a pauta da presente edição. Em uma das
entrevistas que reproduzimos, Maria Estela Guedes (Portugal, 1947) comenta que,
em seu país, para a maior parte dos
intelectuais, o Surrealismo é algo que pertence ao passado. Para desmontar
essa lógica perversa é necessário trazer o Surrealismo para o presente, o que é
impossível de fazê-lo sem averiguar seus principais dilemas, suas falhas de
origem. A mesma Estela Guedes salienta ainda: Não existem dogmas em arte. O Surrealismo não pode confundir-se com uma
ideologia. Nesta afirmação radicam tanto os excessos dogmáticos quanto a
dificuldade de entender como inesgotáveis as fontes de relacionamento do
Surrealismo no que toca a uma multiplicidade de leituras da realidade e a utilização de uma gama infinita de recursos estilísticos na criação artística.
Até onde é aceitável ser surrealista? –
Escutamos o eco implícito dessa falsa questão sussurrada amiúde e constituindo
verdadeiro tribunal de exceção pelas mãos subterrâneas de seguidores que
naufragam o Surrealismo nas malhas de um espírito negro e a mais absoluta falta
de talento artístico. Os que repetem tais linhas cegas são os que negam a
capacidade do mundo se renovar. No patuá das repetições sacralizadas
encontramos a tríade poesia-amor-liberdade, deixada ali dentro sem perspectiva
de renovação, e mesmo sem ter sido, na altura, realizada como tanto se
apregoava. Para dar um exemplo, Vratislav Effenberger (República Checa,
1923-1986) observou que essa máxima
utópica só poderia ter silenciado tudo o que ainda brilhava no surrealismo,
destacando que as ruas nas quais os
surrealistas procuravam o maravilhoso haviam mudado entre as guerras.
As ruas do maravilhoso buscaram outras
curvas e despenhadeiros. Os próprios mecanismos de combate encontraram novos truques
e, embora igualmente tenham se desdobrado os obstáculos, outros impulsos foram
determinando, sem a presença dilacerante dos dogmas, uma nova corporificação do
desejo, uma nova página de leituras do onírico e do humor. O Surrealismo de
algum modo superou alguns vícios surrealistas e tornou-se a mais influente
corrente de pensamento e perspectivas estéticas do século XX.
Helena Boberg (Suécia, 1974) reflete que
sua saída do grupo surrealista sueco acentuou a sua identidade desgarrada de
qualquer conceito ou tendência. Eis um dado a mais que corrobora aquele sentido
que René Magritte emprestava à liberdade, sendo esta a possibilidade de ser e não a obrigação de ser. O fato é que
afastados por vontade própria ou defenestrados, assim como os inúmeros casos de
não-filiação, em tal espaço de irradiação de identidades singulares encontramos
uma vultosa presença da mais alta voltagem surrealista das artes desde o
surgimento do movimento.
Seguimos em nossa escala de recuperação
do Surrealismo do fetichismo do passado. Outro aspecto condenável no movimento
é que não tenha tomado para si a imperativa rebelião contra a brutal misoginia
que dominava a sociedade, em especial o que se verificava no ambiente
psiquiátrico desde finais do século XIX. Diane di Prima (Estados Unidos, 1934)
sintetiza: Quando os homens se rebelavam,
eram românticos, livres. As mulheres que se rebelaram foram categorizadas como
loucas. Aase Berg (Suécia, 1967) observa que a melancolia, antes uma doença
romântica cultuada pelos homens, logo se tornou
um diagnóstico meramente feminino, sob o termo não muito sexy: depressão.
De algum modo o Surrealismo deixou escapar esse ramo da censura, o que é
incoerente com o sentido de liberdade e amor que defendia. Sua compreensão da
mulher restringia-se a uma idealização, quando o importante é que atuasse como
uma cumplicidade.
Quando outra das mulheres aqui presentes,
Beatriz Hausner (Chile, 1958), nos diz que a
natureza é apenas um aspecto da realidade, e que a ela lhe interessa explorar a realidade sem limites, a
surrealidade, isto nos leva a pensar que, por extensão, não pode haver
limites de percepção ou de instrumentos para a descoberta dos insondáveis
labirintos folheados da realidade. A manifestação artística não se reduz a este
ou aquele mecanismo de reconhecimento do mundo. Coincidem na graça perene de
caminhos tanto as raízes da busca quanto a resultante de suas viagens.
Conceitualmente o Surrealismo seria um
paradoxo. Breton defendia a entrega do produto
do pensamento pelo que ele vale, esquecendo que o valor do pensamento
radica em seu significado, ou melhor, na expressão e percepção desse
significado. Artaud dizia que o Surrealismo era fruto do temperamento, porém
também esquecia que o temperamento define toda e qualquer ação humana. A
rejeição quase unânime do Surrealismo à fundação de uma estética é outra cadeia
de contradição, pois não há criação sem uma dimensão estética. A recusa a ser
visto como uma escola não deu por conta que seu dogmatismo acabou por criar
algumas linhas estilísticas que foram a glória de seus seguidores. De modo que
não creio em outro conceito que melhor o defina senão o de paradoxo, no caso o
mais frutífero paradoxo de que se tem notícia.
Ao montar a presente edição priorizamos a
diversidade em duplo sentido, o estético e o modo de relacionamento com o
Surrealismo. A acuidade magistral que fez de Mirka Mora (França, 1928-2018) uma
relevante ativista cultural em período áureo das vanguardas no país de sua
opção, a Austrália; o abstracionismo repleto de sinuosidades de Etel Adnan
(Líbano, 1925); o acento expressionista de Ángeles Santos Torroella (Espanha,
1911-2013): a busca incessante de definição de uma arquitetura do sonho na
pintura de Verónica Cabanillas Samaniego (Peru, 1981)… Exemplos dessa avalanche
de inquietudes e afinidades que foram intensificando a presença do Surrealismo
por onde passava, até onde chegava. Poetas, narradoras, pintoras, que aqui
reunimos ao lado de outras três que se dedicaram à fotografia, não mais como
registro de uma evidência e sim como uma vidência, a percepção de aparições,
que nelas variam de modo singular: os fantasmas urbanos em Emila Medková
(República Checa, 1928-1985), os demônios interiores de Francesca Woodman
(Estados Unidos, 1958-1981) e as alegorias deleitosas em Leila Ferraz (Brasil,
1944) – esta última também uma imensa poeta.
Ouvimos suas vozes, acompanhamos a
recepção de suas obras, nos deixamos entranhar pelo espírito de cada uma delas.
Deste modo seguimos o curso de nossa comemoração de 100 anos de Surrealismo,
sem prender-se a dogmas de qualquer esfera. Agradecimentos finais a Alfonso
Peña, Gabriel
Coxhead, José Carlos Botto Cayo,
Joseph Matheny, Kerry Clare, Krzysztof Fijałkowski, Lucy Feagins, Núria Rius Vernet e Paul Cunningham, colaboradores
valiosos que tornaram possível o encontro, em nossas páginas virtuais, dessas
mulheres geniais.
Os Editores
• ÍNDICE
ALFONSO PEÑA: Leila Ferraz
y los puentes infinitos de la memoria
FLORIANO MARTINS | Maria Estela Guedes nos regaços comovidos da
linguagem
GABRIEL COXHEAD | The
colours I use are the colours of California – an interview with Etel
Adnan
JOSÉ CARLOS BOTTO CAYO | Entrevista a Veronica Cabanillas Samaniego
JOSEPH MATHENY |
Interview with Diane di Prima
KERRY CLARE | Enter the Raccoon: Interview with Beatriz Hausner
KRZYSZTOF FIJAŁKOWSKI | Emila Medková: The Magic of Despair
LUCY FEAGINS | The Inimitable Mirka Mora
NÚRIA RIUS VERNET
| La pintora Ángeles Santos Torroella
PAUL
CUNNINGHAM | Sense violence: an interview with Helena Boberg
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Francesca Woodman (Estados Unidos, 1958-1981)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 146 | Novembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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