terça-feira, 12 de novembro de 2019

Agulha Revista de Cultura # 146 | Novembro de 2019


A LIBERDADE FEMININA DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA

Criadoras refletindo sobre a própria criação – esta foi a ideia que definiu a pauta da presente edição. Em uma das entrevistas que reproduzimos, Maria Estela Guedes (Portugal, 1947) comenta que, em seu país, para a maior parte dos intelectuais, o Surrealismo é algo que pertence ao passado. Para desmontar essa lógica perversa é necessário trazer o Surrealismo para o presente, o que é impossível de fazê-lo sem averiguar seus principais dilemas, suas falhas de origem. A mesma Estela Guedes salienta ainda: Não existem dogmas em arte. O Surrealismo não pode confundir-se com uma ideologia. Nesta afirmação radicam tanto os excessos dogmáticos quanto a dificuldade de entender como inesgotáveis as fontes de relacionamento do Surrealismo no que toca a uma multiplicidade de leituras da realidade e a utilização de uma gama infinita de recursos estilísticos na criação artística.
Até onde é aceitável ser surrealista? – Escutamos o eco implícito dessa falsa questão sussurrada amiúde e constituindo verdadeiro tribunal de exceção pelas mãos subterrâneas de seguidores que naufragam o Surrealismo nas malhas de um espírito negro e a mais absoluta falta de talento artístico. Os que repetem tais linhas cegas são os que negam a capacidade do mundo se renovar. No patuá das repetições sacralizadas encontramos a tríade poesia-amor-liberdade, deixada ali dentro sem perspectiva de renovação, e mesmo sem ter sido, na altura, realizada como tanto se apregoava. Para dar um exemplo, Vratislav Effenberger (República Checa, 1923-1986) observou que essa máxima utópica só poderia ter silenciado tudo o que ainda brilhava no surrealismo, destacando que as ruas nas quais os surrealistas procuravam o maravilhoso haviam mudado entre as guerras.
As ruas do maravilhoso buscaram outras curvas e despenhadeiros. Os próprios mecanismos de combate encontraram novos truques e, embora igualmente tenham se desdobrado os obstáculos, outros impulsos foram determinando, sem a presença dilacerante dos dogmas, uma nova corporificação do desejo, uma nova página de leituras do onírico e do humor. O Surrealismo de algum modo superou alguns vícios surrealistas e tornou-se a mais influente corrente de pensamento e perspectivas estéticas do século XX.
Helena Boberg (Suécia, 1974) reflete que sua saída do grupo surrealista sueco acentuou a sua identidade desgarrada de qualquer conceito ou tendência. Eis um dado a mais que corrobora aquele sentido que René Magritte emprestava à liberdade, sendo esta a possibilidade de ser e não a obrigação de ser. O fato é que afastados por vontade própria ou defenestrados, assim como os inúmeros casos de não-filiação, em tal espaço de irradiação de identidades singulares encontramos uma vultosa presença da mais alta voltagem surrealista das artes desde o surgimento do movimento.
Seguimos em nossa escala de recuperação do Surrealismo do fetichismo do passado. Outro aspecto condenável no movimento é que não tenha tomado para si a imperativa rebelião contra a brutal misoginia que dominava a sociedade, em especial o que se verificava no ambiente psiquiátrico desde finais do século XIX. Diane di Prima (Estados Unidos, 1934) sintetiza: Quando os homens se rebelavam, eram românticos, livres. As mulheres que se rebelaram foram categorizadas como loucas. Aase Berg (Suécia, 1967) observa que a melancolia, antes uma doença romântica cultuada pelos homens, logo se tornou um diagnóstico meramente feminino, sob o termo não muito sexy: depressão. De algum modo o Surrealismo deixou escapar esse ramo da censura, o que é incoerente com o sentido de liberdade e amor que defendia. Sua compreensão da mulher restringia-se a uma idealização, quando o importante é que atuasse como uma cumplicidade.
Quando outra das mulheres aqui presentes, Beatriz Hausner (Chile, 1958), nos diz que a natureza é apenas um aspecto da realidade, e que a ela lhe interessa explorar a realidade sem limites, a surrealidade, isto nos leva a pensar que, por extensão, não pode haver limites de percepção ou de instrumentos para a descoberta dos insondáveis labirintos folheados da realidade. A manifestação artística não se reduz a este ou aquele mecanismo de reconhecimento do mundo. Coincidem na graça perene de caminhos tanto as raízes da busca quanto a resultante de suas viagens.
Conceitualmente o Surrealismo seria um paradoxo. Breton defendia a entrega do produto do pensamento pelo que ele vale, esquecendo que o valor do pensamento radica em seu significado, ou melhor, na expressão e percepção desse significado. Artaud dizia que o Surrealismo era fruto do temperamento, porém também esquecia que o temperamento define toda e qualquer ação humana. A rejeição quase unânime do Surrealismo à fundação de uma estética é outra cadeia de contradição, pois não há criação sem uma dimensão estética. A recusa a ser visto como uma escola não deu por conta que seu dogmatismo acabou por criar algumas linhas estilísticas que foram a glória de seus seguidores. De modo que não creio em outro conceito que melhor o defina senão o de paradoxo, no caso o mais frutífero paradoxo de que se tem notícia.
Ao montar a presente edição priorizamos a diversidade em duplo sentido, o estético e o modo de relacionamento com o Surrealismo. A acuidade magistral que fez de Mirka Mora (França, 1928-2018) uma relevante ativista cultural em período áureo das vanguardas no país de sua opção, a Austrália; o abstracionismo repleto de sinuosidades de Etel Adnan (Líbano, 1925); o acento expressionista de Ángeles Santos Torroella (Espanha, 1911-2013): a busca incessante de definição de uma arquitetura do sonho na pintura de Verónica Cabanillas Samaniego (Peru, 1981)… Exemplos dessa avalanche de inquietudes e afinidades que foram intensificando a presença do Surrealismo por onde passava, até onde chegava. Poetas, narradoras, pintoras, que aqui reunimos ao lado de outras três que se dedicaram à fotografia, não mais como registro de uma evidência e sim como uma vidência, a percepção de aparições, que nelas variam de modo singular: os fantasmas urbanos em Emila Medková (República Checa, 1928-1985), os demônios interiores de Francesca Woodman (Estados Unidos, 1958-1981) e as alegorias deleitosas em Leila Ferraz (Brasil, 1944) – esta última também uma imensa poeta.
Ouvimos suas vozes, acompanhamos a recepção de suas obras, nos deixamos entranhar pelo espírito de cada uma delas. Deste modo seguimos o curso de nossa comemoração de 100 anos de Surrealismo, sem prender-se a dogmas de qualquer esfera. Agradecimentos finais a Alfonso Peña, Gabriel Coxhead, José Carlos Botto Cayo, Joseph Matheny, Kerry Clare, Krzysztof Fijałkowski, Lucy Feagins, Núria Rius Vernet e Paul Cunningham, colaboradores valiosos que tornaram possível o encontro, em nossas páginas virtuais, dessas mulheres geniais.

Os Editores


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• ÍNDICE

ALFONSO PEÑA: Leila Ferraz y los puentes infinitos de la memoria

FLORIANO MARTINS | Maria Estela Guedes nos regaços comovidos da linguagem

GABRIEL COXHEAD | The colours I use are the colours of California – an interview with Etel Adnan

JOSÉ CARLOS BOTTO CAYO | Entrevista a Veronica Cabanillas Samaniego

JOSEPH MATHENY | Interview with Diane di Prima

KERRY CLARE | Enter the Raccoon: Interview with Beatriz Hausner

KRZYSZTOF FIJAŁKOWSKI | Emila Medková: The Magic of Despair

LUCY FEAGINS | The Inimitable Mirka Mora

NÚRIA RIUS VERNET | La pintora Ángeles Santos Torroella

PAUL CUNNINGHAM | Sense violence: an interview with Helena Boberg

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Francesca Woodman

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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Francesca Woodman (Estados Unidos, 1958-1981)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 146 | Novembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019


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