segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

CONEXÃO HISPÂNICA | Juan Sánchez Peláez

EUGENIO MONTEJO | A aventura surrealista de Juan Sánchez Peláez

 


Ao nome de Juan Sánchez Peláez tem sido vinculada sem reparos, desde o surgimento de seu primeiro livro, Elena y los elementos (1951), a introdução das proposições líricas surrealistas em nosso país. Tal afirmação, reconhecida nos últimos anos por aqueles que têm comentado sua obra, não pretende talvez afirmar que antes dessa data não houvesse surgido entre nós outras tentativas criadoras de uma atmosfera vizinha ao tratamento surrealista; tende bem mais a constatar que com ele se inaugura uma adesão franca, uma atitude ante o fato político e sua casual implicação vital, que guarda fidelidade com muitos postulados dos manifestos do surrealismo. Não faltou, para tornar mais diligente esta notação crítica, o assinalamento de uma espécie de ponte entre o autor de Un día sea (1972) e o renomado grupo chileno “Mandrágora”, um dos centros epigonais da situação surrealismo na América Latina, com cujos integrantes travara amizade Sánchez Peláez em sua precoce juventude.

A crítica requer muitas vezes, em sua ambição catalogadora, juntar cifras e datas, registrar as distintas variantes do assunto que indaga, e isto, mesmo que amiúde útil, o é tão-somente para a intenção de manuais literários. A autêntica valorização da poesia, no entanto, ainda que não evita a confrontação com tais dados, demanda indispensavelmente outros meios menos mecânicos e supérfluos. Hoje, transcorridas mais de duas décadas de sua publicação inicial, e situados ante uma perspectiva que se beneficia por igual da distância e da evolução definitiva do movimento ao qual se vinculara esta obra, resta tentar uma exploração mais cabal dos méritos que contribuam para situá-la na hora presente. A uma indagação desta índole, indispensável no momento de se esclarecer a tentativa ulterior de nossa lírica, à qual a poesia de Sánchez Peláez serve de valiosa referência, querem contribuir estas páginas.

A década de 70 abriu, por ato de uma vanguarda que não cede em polêmica a seus predecessores, uma carta precatória implacável contra os bastiões ideológicos do surrealismo. É verdade que a Breton e os seus lhes escoltou sempre a firme rejeição daqueles que disputavam por outras vias os dons da imaginação. Em seu próprio seio não foi sempre unívoca a intenção e resultou difícil sufocar dissidências que posteriormente aconteceram, não saberíamos se para bem ou para mal. Não obstante, o ajuste de contas parece chegar agora de posições mais intransigentes. Enquanto que herdeiros do dadaísmo, os surrealistas, desde o princípio, foram adversários, com especial furor, do mito burguês da lógica, no qual acharam encarnado o espírito desencadeante de grande parte de nossos males contemporâneos. Reivindicaram, em troca, o sempre enfeitiçante universo da magia, o delírio tantas vezes reprimido pelo ardil de uma cultura à qual quiseram surpreender em flagrante delito. Junto a Rimbaud e Lautréamont, como assinalou Maurice Nadeau, a imensa abertura traçada por Marx e Freud demarcou um vasto sentido novo, de repercussões até então não espreitadas nos âmbitos da teoria artística. O inconsciente, como recentemente se nomeava pela primeira vez o antigo ninho das musas, foi festejado com o mito do automatismo psíquico, que lhe emprestou desde o início atributos sedutores de estirpe neorromântica. A crítica recente a que aludíamos pode, a partir deste ponto, aparecer como uma calculada vingança da lógica. Em alguns números da revista Tel Quel se desdobra um prontuário exaustivo que pretende pôr em evidência, com uma lógica recalcitrante e minuciosa, servida por um despenhadeiro de incisos, as infidelidades da teoria surrealista diante das obras de Marx e Freud. Busca-se desta forma inquietar em seus mesmos cimentos o pedestal teórico que serviu aos surrealistas para erigir seus controversos monumentos. No entanto, talvez tenda a ignorar esta crítica que uma criação artística parte muitas vezes não tanto do achado conceitual apodítico como da vivaz contradição em que o humano se encarna mais em plenitude. Na verdade, qualquer que seja o mérito desta expurgação, há de ajudar a definir a contribuição de um momento fundamental na renovação estética de nosso tempo. Sendo assim, a gestão anti-surrealista parece acertar em zonas vulneráveis, mesmo que não tenha ultrapassado ainda o nível em que possa eludir seus próprios excessos. Assim, Pierre Rottemberg, em uma afirmação que por inusitada parece nascer paradoxalmente de algum estranho cadáver esquisito, chega a dizer que “Breton depende sexualmente de Hegel”, com o qual, extremando as deduções da psicanálise, rende tributo a essa constante do espírito francês que faz da lógica, como o espanhol com o barroco, quase uma fatalidade de destino.

Contudo, este diagnóstico corrosivo poderá ser admitido como um instante de prova para aqueles que, desde as fileiras surrealistas, souberam manter, além de sua afeição ao grupo, a vigília ante o verdadeiro achado criador. A adesão a uma teoria estética, qualquer que seja o nível de participação nela, se atém aos imperativos da época e franqueia insuspeitáveis fatos temporais que a condicionam. O que resta, se há de restar, é a sintonia individual em seu alcance e em sua terrível limitação. Será, portanto, somente “o passar pelo olho da agulha do eu” – como diz expressivamente Hilde Domin –, o que torna possível a façanha do logro certo, e não a verossimilitude sempre cinza da teoria, nem o respaldo de uma aventura comum, por meritório que esta possa aparecer.

Não está em nossos propósitos tomar partido nesta diatribe que agora ganha o interesse de muitas revistas. O tema, por fortuna, excedeu a competência dos especialistas e possui uma difusão tão vasta que nos permite deixar de lado muitas precisões. Pretendemos, bem mais, dentro da perspectiva que abre esta polêmica, situar uma breve releitura de Un día sea, a compilação da obra poética até agora surgida de Sánchez Peláez. Para esta tentativa convém nos aproximarmos de sua poesia, de modo que a interroguemos a partir de seus próprios fulgores, prescindindo, até onde possamos, dos atributos que lhe acrescenta o credo de sua militância. Advirtamos que não é sempre fácil indagar em uma obra o que só deve a si mesma, nem dar com esse espaço secreto onde a palavra do poeta torna-se irredutível em sua inteira nudez. No que respeita ao surrealismo, ainda se está por estimar a derivação peculiar com que se expressou na América de fala hispânica. É óbvio que à primeira difusão de sua estética entre nós somaram-se, juntamente a criadores genuínos, muitos caçadores de novidade, como habitualmente são recrutados em toda vanguarda nascente. Neste caso, um movimento que se propunha a demolir antigas sujeições e supria inumeráveis licenças à procura do ditado secreto, do acaso objetivo, não podia deixar de contrair nessa liberdade seu máximo perigo. Porque, na verdade, nenhum verso nasce inteiramente livre, como disse T. S. Eliot, “só há versos bons, versos maus e o caos”… Sair ileso desse caos que propõe o delírio liberto à sua mais incontrolada efervescência, eis aí a pedra de tropeço à qual, a partir do surrealismo, devia o autêntico poeta contribuir com uma solução individual. Hoje nos é dado perceber, na perspectiva de um tempo que começa a nivelar suas coordenadas definitivas, quanta voz se extraviou em uma repetição mecânica, plena de estereotipia verbal, de hábitos metafóricos extenuados, o que fez com que em muitas vezes a liberdade se voltasse contra seus próprios conquistadores. E como, posteriormente, pôde nascer, de um estilo que se reconhecia anti-retórico por espírito, uma nova retórica, vazia e barulhenta, com a debilidade expressiva que isto comporta para toda poética? Acaso seja sob este exame atento que os poemas recolhidos em Un día sea liberam-nos seus valores secretos a partir de uma confrontação que bem podem suportar, acima de sua adesão, sem dano sensível de sua eficácia. Importa, portanto, além da introdução surrealista, além do mais tardia, que se reconhece à poesia de Sánchez Peláez entre nós, constatar o desenvolvimento de um tom próprio, que pôde contrair compromissos com o automatismo sem decair ostensivamente em seu plano formal. A este respeito, bastaria seguir a posterior evolução dos fundadores de “Mandrágora” e outros grupos semelhantes, e ver como em muitos deles o culto da imagem arbitrária, desconexa com sua realidade interna, e a repetição intencional de todo o fausto de sua operatória, muitas vezes os distrai da expressão de sua identidade, que é atenção primordial em toda intenção poética. Por esta trilha é que se deveria conduzir a crítica que não se entretenha somente em uma especulação superficial.

A partir deste ângulo, Sánchez Peláez contava na pouco exímia tradição poética de nosso país com a obra de um poeta de exceção, somente reivindicado nos últimos anos: José Antonio Ramos Sucre. Advertir a necessidade de retomar, desde outros níveis expressivos, o propósito daquele poeta solitário, é já um mérito de visão que aclara e fortalece seu propósito criador. Dele herdará o traço enfático e suntuoso da palavra, assim como uma vigilância tenaz que cuida da tensão de sua poesia. Claro está, será outra a expressão de sua sensibilidade, outro o universo que alimenta as formas de sua imaginação, e apenas a presença do desejo como um ativo desnudamento do eu lírico, que alcança nele, como nos surrealistas maiores, um nível mítico, bastará para diferenciá-lo. Porém o zelo que governa cada poema por meio de uma seleção de palavra amiúde eficaz denota, não obstante, certa fidelidade ao criador de Las formas del fuego.

Uma poética se manifesta sempre em uma pluralidade de tons com os quais, ao mesmo tempo em que se livra da monotonia, verifica-se a si mesma através das gamas de sua variação. Seu selo será dado, no entanto, pelo matiz prevalecente, aquele que aparece mais repetidamente ou com o qual tende a nos comunicar um maior estado de revelação. Talvez este tom central da poesia reunida em Un día sea radique em um estado de balbucio, de dizer quebrado, que nos entrega o imediatismo de sua palavra poética:

 

Enquanto todos cavilam, me embala, me embala

minha melodia pueril.

 

Não é cavilação, o jogo de imagens reprodutoras que puderam urdir o conceito, mas sim a presença de um dizer em estado de voz nascente, que às vezes se torna enfático, ainda que jamais corteje a eloquência. Mesmo em suas outras representações, quando a voz se torna ligeiramente acusatória ouse investe de fulgurações aforísticas, esse tom central de palavra circundada pela candura e como se em dúvida de sua própria magia, serve para identificar o que ele chama sua melodia pueril, sua tagarelice fugaz.

Porém será na iluminação do amor, esse plano cósmico que talvez persista como o atributo surrealista mais definitivo, onde seu verbo alcance seus melhores fulgores. Não se apontou bastante a significação que para a sensibilidade de nossa língua, de alturas místicas e elegíacas, alcança o tratamento do amor introduzido pelo surrealismo. Muito mais do que em outras culturas, entre nós, onde vive uma tradição amorosa devota de formas cristãs cavalheirescas, a adoção de uma atitude semelhante reveste uma violência inusitada. Os surrealistas se propuseram, ainda que muitas vezes suas conquistas fiquem abaixo de sua ambição, encarar o amor como um estado de revelação permanente, como o único clima capaz de devolver ao lânguido universo cotidiano sua magia e força vital. À luz da presença amorosa, que transcende a pura experiência literária e chega a encarnar-se em atitude ante a vida, cada momento adquire sua plenitude feérica, seu estado de super-realidade capaz de dissolver a antinomia dos contrários. A objetivação do desejo abre as fontes deste lirismo com uma consciência do imediato como somente é possível encontrá-la nas civilizações que alcançam, através do sensual, uma consecução de vitalizante plenitude. Sánchez Peláez assume desde seus primeiros poemas esta chave da poética surrealista com um tom tão natural que revela nele, antes que uma circunstância mimética, uma espontânea identificação:

 

A Ela, que burla minha carne, que desvela meu osso,

que soluça em minha sombra.

 

Muitos de seus textos ficam, por assim dizê-lo, apoiados sob este propósito, em fórmulas recorrentes; retomam, em distintos planos, este mesmo motivo mítico que sempre reaparece em sua criação. Aqui ou ali será Ela, a Ondina, a rosa invisível, minha força e minha forma, a joia de abismo. Fragmentos dispersos reinvocados sob a iluminação de um instante que correspondem entre si dentro de um único poema total. Acaso a Juan Sánchez Peláez seja aplicável a observação que Octavio Paz faz sobre Paul Eluard, no sentido de que é autor em muitas instâncias de um só e único poema.

Vistos nesta outra perspectiva, os poemas de Un día sea nos oferecem referências mais válidas do que as de assinalar a irrupção do surrealismo em nossa poesia. Qualquer outro autor pôde propor uma adesão parecida sem conseguir talvez mais do que um mérito ligeiro. Afinal, a importância para a poesia não dependerá tanto disto como da consciência de estabelecer prematuramente, a partir destes mesmos postulados, um selo próprio, vigilantemente ativo, e de pôr em concordância com essa tentativa os demais atos de sua vida. Se além do deliberado automatismo de alguns fragmentos, de uma ausência de lógica nem sempre útil, alguns de seus poemas contam como imprescindíveis e, portanto, surgem vitoriosos nesta hora de prova que confronta o surrealismo, isto se deve a uma conquista de todo ponto individual, que depende não tanto do campo teórico de sua aderência, como dos inatos dons expressivos tornados realidade em sua palavra poética.

 


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§ Conexão Hispânica §

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Fortaleza CE Brasil 2021



 

  

 

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