segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

ISABEL LUSTOSA | Três considerações sobre Aparício Torelly, o Barão de Itararé

 


1 | Almanhaque: um almanaque cheio de manhas

 

Foi para resolver problemas financeiros e garantir a sobrevivência da Manha, que o Barão de Itararé lançou, em 1949, o Alma­nhaque. Empreendimento pensado para dar lucro, o Almanhaque trazia as páginas recheadas de anúncios, alguns produzidos pela própria equipe de artistas gráficos, liderada por Guevara.

Único paraguaio que venceu no Brasil, no dizer de Humberto de Campos, o caricaturista e artista gráfico Guevara teve enorme influência na caricatura e nas artes gráficas brasileiras nas décadas de 30, 40 e 50 e sempre esteve ligado aos projetos do Barão de Itararé. Seu traço é a marca maior deste Almanhaque, onde Guevara está presente na maior parte dos desenhos. Graficamente, é o brasão de Itararé a obra mais delicada, mas também merece registro a beleza do caderno de anúncios da Alpargatas, em quatro cores, apresentando cenas brasileiras. 

Paródia dos almanaques tradicionais, o Almanhaque reunia textos do Barão a passatempos, jogos, anedotas, quadrinhas e contos humorísticos. Logo nas primeiras páginas, aparecem aspectos da biografia de Itararé e de sua família. Senhor feudal de Bangu-sur-mer, o Barão seria um “homem sem segredos que vive às claras, aproveitando as gemas e sem desprezar as cascas”, um “grande herói que a pátria chora em vida e há de sorrir, incrédula, quando o souber morto”. Dentre seus parentes, aparece Victor Hugo que seria primo em linha reta, sem escalas, do Barão de Itararé, e um “inimigo íntimo dos banqueiros que não emprestavam dinheiro às pessoas decentes e contra os quais escreveu um veemente libelo, intitulado “Os miseráveis”.

A biografia do Barão brinca com duas informações verdadeiras: seu ano de nascimento, 1895 (teria 54 anos quando publicou o Almanhaque), e sua passagem pela faculdade de medicina. Itararé declara, no entanto, que pode provar que tem, na verdade, 39 anos, pois perdeu 10, repetindo o segundo ano do curso de medicina em Porto Alegre e dois, na prisão, “onde se enclausurou para meditação e retiros espirituais, como hóspede do estado e com guarda permanente à sua disposição”. Finalmente, diz que, “manuseando com ar de romântico desconsolo, um velho diário de notas, todo tatuado com nomes femininos, de corações sangrando, com endereços e números de telefones, tendo as páginas separadas por fitinhas mimosas de diversas cores e, às vezes, entremeadas de folhas murchas, de pétalas secas de rosas e raminhos de violetas descoradas, mas que ainda permanecem roxas de saudades”, chegara à conclusão de que perdera, pelo menos três anos, perseguindo mulheres bonitas.

Naturalmente que não poderia faltar neste Almanhaque outra marca do humor do Barão: seus aforismos. As chamadas máximas e mínimas do Barão, às vezes estão impregnadas de poesia: “a estrela de Belém foi o primeiro anúncio luminoso”. Em outras, o sabor é extremamente atual, como as que dizem: “o erro do governo não é a falta de persistência, mas a persistência na falta” ou, “anistia é um ato pelo qual o governo resolve perdoar generosamente as injustiças que ele mesmo cometeu”; ou ainda: “os juros não dormem”.

Este Almanhaque, publicado em plena Guerra Fria, não é rico em sátiras aos políticos e à política em geral. Getúlio, ainda vivendo o exílio em S. Borja, aparece ali em uma ou duas situações, sem muito alarde. Alusão à sua próxima volta à presidência é o anúncio, aliado à uma daquelas típicas montagens fotográficas da Manha, onde se informa que o “sr. G. Túlio Vargas, que já foi campeão presidencial de golfo e ping-pong” e está se dedicando ao futebol, tem treinado diariamente em sua fazenda, “organizando uma equipe com a qual tenciona disputar, para o ano, o campeonato nacional”. Israel Pinheiro, político de Minas que fora presidente da Vale do Rio Doce, naquele posto, segundo o Barão: comeu o “Doce”, bebeu o “Rio” e deixou um vale na “Caixa”. Outra vítima, é o governador Benedito Valadares que, despachando em seu gabinete, no Palácio da Liberdade, incomodado com a luz, ordenou: “Baixa essa venezuela”. Itararé justifica Valadares dizendo que: se, na Pérsia, aquele tipo de cortina é chamado de veneziana e em Veneza, de persiana, porque, então não podemos chamá-la no Brasil de venezuela?

Dentre os recursos típicos dos almanaques, o Barão inclui uma série de passatempos, enigmas, curiosidades. Frases que se leem da mesma maneira de trás para frente (somar só os ramos); divertidas e, naturalmente, falsas, etimologias de palavras como negócio, esnobe, ragu, etc.; curiosidades como a do nome de Vital Brasil e de suas irmãs (chamar-se-iam respectivamente, Vital Brasil Mineiro da Campanha, Maria Gabriela Cabloca de Itajubá e Iracema Ema do Vale Sapucaí); piadas de salão; contos exemplares e quadrinhas. Aquelas quadrinhas tão populares no Brasil de antigamente. Nelas, por vezes, se expressa um julgamento pessimista da humanidade: Venci, cheguei a subir:/ nada, ninguém me ajudou!/ Mas, comecei a cair:/ toda a gente me empurrou. Ou apenas um comentário malicioso sobre a indumentária feminina: Teus vestidos, eu não acho/ Mui decentes, minha prima/ São altos demais em baixo,/ São baixos demais em cima.


Dentre os vários autores incluídos no Almanhaque, destacam-se Lima Barreto, Artur Azevedo, Belmiro Braga, Érico Veríssimo e, de estrangeiros, Mark Twain. Bernard Shaw, cuja influência sobre o Barão é contestada logo no começo do volume, não tem texto incluído. Algumas referências ao humor nordestino aparecem nos trechos de Leonardo Mota. A melhor é aquela do coronel que queria comprar um burro de carga novo e possante. “Eu tenho um, seu coronel – ofereceu o Miguel Carpina”. O coronel foi ver o animal e, constatando que tinha um defeito, reclamou: “Ora, Miguel, seu burro é defeituoso: falta metade de um beiço… Porque você não me disse isso logo?” Ao que, Miguel Carpina retrucou: “Eu não disse, seu coronel, porque tava na mente que Vossa Senhoria queria era um burro pra carregar carga. Agora é que estou vendo que Vamincê quer é um burro pra assobiar”.

Coisas assim aproximam o Almanhaque do Barão daqueles almanaques tradicionais e, talvez por isso, ele tenha feito tanto sucesso. Sucesso que, segundo Cláudio Figueiredo, autor de As duas Vidas de Aparicio Torelly, (Record, 1988) provocou um certo desafogo em suas dificul­dades financeiras e permitiu com que relançasse A Ma­nha, que havia deixado de circular em 1948.

 

2 | A triste vida de um homem engraçado

 

Ao terminar de ler a biografia do Barão de Itararé publicada pelo jornalista Claudio Figueiredo, “Entre sem bater” (Casa da Palavra), a conclusão a que se chega é que a sua não foi exatamente uma vida feliz. Ao contrário, parece até que ele nasceu marcado pelo signo da fatalidade. Fazendo um balanço geral dos seus infortúnios podemos relacionar: o suicídio da mãe; o AVC que o deixou hemiplégico ainda na juventude; as mortes da segunda, da terceira mulher, da filha de 19 anos e o suicídio da última companheira. Isto sem falar no fato de ter tido um pai ignorante por escolha e autoritário por natureza; de ter protagonizado um drama sentimental escandaloso que se arrastou por sete anos; de ter amargado prisões, perseguições e dificuldades econômicas e de ter terminado a vida como um velho pobre e solitário. Apesar dessa carga dramática que tirariam o humor de qualquer um, Apparício Torelly foi o brasileiro mais estimado de seu tempo justamente pela imensa capacidade que tinha de fazer os outros rirem.

A morte precoce da mãe, fez com que passasse os primeiros anos da vida no Uruguai, voltando ao Rio Grande do Sul para ser educado em um colégio de padres. O ateu Apparício Torelly, seria eternamente reconhecido aos jesuítas pela excelente educação que lhe deram. A partir de 1912, foi o enfant terrible da recém-criada Faculdade de Medicina de Porto Alegre, curso que não concluiu. Apporely marcou sua passagem pela vida universitária por uma irreverência e uma militância que resultou em vários, divertidos e, talvez, um tanto quanto inventados episódios autobiográficos. No início da carreira jornalística, entre 1919 e 1924, trabalhou em diversas cidades do interior do Rio Grande do Sul. Em uma delas, São Gabriel, acabou casando-se, em 1921, com a filha de uma liderança política local. O casamento lhe deu três filhos, Ary, Arly e Ady mas se desfez em 1924, quando Apporelly partiu para o Rio de Janeiro.

Em 1925, fez sua estreia no jornal O Globo, passando no ano seguinte para o recém-criado jornal de Mario Rodrigues, A Manha, onde estabeleceu duradoura parceria com o caricaturista paraguaio Andrés Guevara, que fixaria a imagem plástica definitiva do Barão de Itararé. Ainda em 1926, fundou seu próprio jornal: A Manha. O sucesso de Apporelly já era imenso, quando seus velhos companheiros de vida estudantil em Porto Alegre, Flores da Cunha, Oswaldo Aranha e Benjamin Vargas o encontraram no Rio de Janeiro, depois da Revolução de 1930.

Foi em dezembro daquele ano que “o nosso querido diretor”, como era chamado nos editoriais de A Manha, foi elevado por decreto do novo governo, a Barão de Itararé. Ao longo dos anos seguintes, criatura e criador se confundiriam em um único personagem aos olhos dos leitores. Para Cláudio Figueiredo, a essência do talento humorístico de Apporelly estava em sua imensa habilidade para “brincar com as palavras, desmembrando-as, estabelecendo as relações mais inesperadas entre as partes ou, ao contrário, jogando com duplo sentido e fundindo palavras diferentes”.


No entanto, naquela mesma década de 1930, a participação em jornais orientados pelo PCB, revelariam uma faceta menos divertida de Apporelly, onde prevaleceria o tom sectário com que atacava não só aos integralistas, mas também a gente como Villa Lobos, Anísio Teixeira e Bertha Lutz. Com a repressão à chamada Intentona Comunista de 1935, o cerco se fechou sobre o PCB e Apporelly foi preso, ficando mais de um ano detido. Todo o contexto de pensamentos e ações que marcaram os confrontos entre esquerda e direita naquele período é estabelecido por Cláudio Figueiredo revelando que a atuação clandestina de Apporelly foi muito mais efetiva do que até então se pensava.

Sua trajetória, daí em diante, estaria estreitamente associada à militância na esquerda e, em 1947 ele foi eleito vereador pelo PCB, tendo o mandato cassado com a proibição do partido no ano seguinte. Em 1949, por insistência e empenho de Guevara a dupla lançou o primeiro Almanhaque como prévia para o reaparecimento de A Manha. Mas o jornal circularia apenas e de forma esporádica até o final dos anos 1950, período que Apporelly passou quase todo em São Paulo. Sua última década de vida no Rio de Janeiro foi marcada pela mesma obsessão com a Ciência que o atormentava desde a juventude. A isto se aliaram estudos esotéricos. Para os velhos amigos, ouvir-lhe as longas exposições sobre o horóscopo biônico ou o quadrado mágico era algo desconcertante. Poucos de seus vizinhos, em Laranjeiras, identificavam naquele velhinho alvo, magro, irritadiço e excêntrico, de barbas brancas, a figura risonha e dionisíaca do Barão de Itararé.

Um aspecto notável nessa biografia é a revelação da amargura de Apporelly com a sina de ter de fazer do talento para ser engraçado um meio de vida.

Na descrição que dele faz em Memórias do cárcere, Graciliano Ramos já intuía o sofrimento que aquilo lhe custava: “Meu pobre amigo Apporelly, a sofrer, amável e risonho, lançando trocadilhos em atitude profissional. Doía-me a paciência triste dele, aparentemente alegre”.

Mas para não terminar essa crônica sobre um dos maiores humoristas da história do Brasil sem honrar o talento que lhe deu fama, escolhi a passagem do livro de Figueiredo, que mais me agradou. Seus 25 anos de carreira jornalística foram comemorados com um banquete na Associação Brasileira de Imprensa – ABI, no dia 9 de junho de 1944. Ao agradecer aquela homenagem que lhe prestavam jornalistas, escritores e artistas, Aporelly começou dizendo que aqueles tantos discursos e demonstrações de carinho o tinham emocionado de tal maneira que ele ficara com a voz embargada. Fez então uma pausa, encarou a plateia onde estavam, entre outros, Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Samuel Weiner, Ruben Braga, Roquete Pinto, Vinicius de Moraes, Álvaro Moreyra e perguntou: tem algum desembargador aí?

 

3 | A vida de Aporelly e a autobiografia do Barão de Itararé

 

Ivan Jaf incorporou o espírito e construiu, em uma narrativa contínua, utilizando os mesmos recursos humorísticos de que aquele se valia, a autobiografia intelectual desse personagem controverso que foi Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, ou Aporelly ou, como se tornou definitivamente conhecido: Barão de Itararé. Aparício Torelly foi o brasileiro mais estimado de seu tempo pela enorme capacidade que tinha de fazer os outros rirem tanto através de seus escritos quanto de seus ditos. No dia 9 de junho de 1944, aniversário comemorativo dos 25 anos de sua carreira jornalística, foi-lhe oferecido um grande banquete na Associação Brasileira de Imprensa, a ABI. Ao agradecer aquela homenagem que lhe prestavam jornalistas, escritores e artistas, Aporelly disse que aqueles tantos discursos e demonstrações de carinho o tinham emocionado de tal maneira que ele ficara com a voz embargada. Fez então uma pausa, encarou a plateia onde estavam, entre outros, Portinari, Drummond, Graciliano, Samuel Weiner, Ruben Braga, Roquete Pinto, Vinicius de Moraes, Álvaro Moreira e perguntou: tem algum desembargador aí?

Nascido no Rio Grande do Sul, em 29 de janeiro de 1895, a morte precoce da mãe, fez com que Aporelly passasse os primeiros anos da vida no Uruguai, voltando ao Rio Grande aos 12 anos para ser educado em um colégio de padres. O ateu Aparício Torelly, seria eternamente reconhecido aos jesuítas pela excelente educação que lhe deram. A partir de 1912, foi o enfant terrible da recém-criada Faculdade de Medicina de Porto Alegre, curso que não concluiu. Apporely marcou sua passagem pela vida universitária por uma irreverência e uma militância que resultou em vários, divertidos e, talvez, um tanto quanto inventados episódios autobiográficos. No início da carreira jornalística, entre 1919 e 1924, trabalhou em diversas cidades do interior do Rio Grande do Sul. Em 1921, casou-se, em São Gabriel, com a filha de uma liderança política local. O casamento lhe deu três filhos, Ary, Arly e Ady mas se desfez em 1924, quando Apporelly partiu para o Rio de Janeiro.


Em 1925, fez sua estreia no jornal O Globo, passando no ano seguinte para o recém-criado jornal de Mario Rodrigues, A Manhã, onde estabeleceu duradoura parceria com o caricaturista paraguaio Andrés Guevara, que fixaria a imagem plástica definitiva do Barão de Itararé. Único paraguaio que venceu no Brasil, no dizer de Humberto de Campos, o caricaturista e artista gráfico Guevara teve grande influência na caricatura e nas artes gráficas brasileiras nas décadas de 1930, 40 e 50 e sempre esteve ligado aos projetos do Barão de Itararé. Colaborando de janeiro a maio de 1926 com a Manhã, logo Aporelly partia para criar o seu próprio jornal, A Manha, lançado em 14 de maio do mesmo ano, tendo Guevara como paginador e ilustrador.

Aporelly já era famoso quando seus velhos companheiros de vida estudantil em Porto Alegre, Flores da Cunha, Oswaldo Aranha e Benjamin Vargas o encontraram no Rio de Janeiro, depois da Revolução de 1930. Em dezembro daquele ano, por decreto do novo governo, “nosso querido diretor”, como era chamado nos editoriais de A Manha, teria recebido o título de Barão de Itararé. Ao longo dos anos seguintes, criatura e criador se confundiriam em um único e contraditório personagem aos olhos dos leitores.

Na década de 1930, Aparício Torelly tornou-se membro atuante do PCB e, em outubro de 1934, lançou o Jornal do Povo, de caráter político-doutrinário que durou apenas dez dias. Por conta de matérias publicadas ali, Aporelly foi sequestrado e espancado por oficiais da marinha sem que isto reduzisse sua combatividade nem seu bom humor. Consta que depois de solto mandou pôr na porta da redação um aviso: “Entre sem bater”. No entanto os tempos eram sombrios e, pouco depois, como uma reação à chamada Intentona Comunista de 1935, o governo Vargas daria início a intensa perseguição aos comunistas. Aporelly foi preso, em 9 de dezembro de 1935, ficando mais de um ano detido. Foi na prisão que conviveu com Graciliano Ramos, Nise da Silveira, Eneida de Morais e Hermes Lima e que deixou na memória desses companheiros um repertório de atitudes irreverentes e tiradas espirituosas que os ajudaram a suportar o infortúnio. Depois da prisão, tentou voltar a publicar A Manha, mas a pesada censura do Estado Novo inviabilizou o projeto. Durante seis anos, a partir de janeiro de 1938, publicou no Diário de Notícias a coluna “A manhã tem mais…”.

A vida do Barão de Itararé não foi exatamente uma vida feliz. Ao contrário, parece até que ele nasceu marcado pelo signo da fatalidade. A partir da biografia de escrita por Claudio Figueiredo, podemos fazer um balanço geral dos seus infortúnios: o suicídio da mãe pouco depois de seu nascimento; o AVC que o deixou hemiplégico ainda na juventude; as mortes da segunda mulher e da filha de 19 anos e o suicídio da terceira mulher. Isto sem falar no fato de ter tido um pai ignorante por escolha e autoritário por natureza; de ter protagonizado um drama sentimental escandaloso que se arrastou por sete anos; de ter amargado prisões, perseguições e dificuldades econômicas e de ter terminado a vida como um velho pobre e solitário. Até mesmo o seu imenso e natural talento humorístico lhe pesava. Na mesma biografia acima citada fica evidente sua amargura com a sina de ter de fazer da vocação para ser engraçado um meio de vida. Em Memórias do cárcere, Graciliano Ramos assim o descreve: “Meu pobre amigo Aporelly, a sofrer, amável e risonho, lançando trocadilhos em atitude profissional. Doía-me a paciência triste dele, aparentemente alegre.”

Em 1945, no ambiente otimista que se seguiu ao final da guerra e da ditadura Vargas, ressurgiu A Manha e Aporelly foi eleito vereador pelo PCB. Mas, em 1947, o registro do partido foi cassado e, com isto, ele perdeu o mandato. Em 1948, em virtude de problemas financeiros, A Manha deixou de circular. Em 1949, por insistência de Guevara, a dupla lançou o primeiro Almanhaque como prévia para o reaparecimento de A Manha. De fato, graças ao sucesso do Almanhaque, A Manha reapareceu em 1950, sendo editada em São Paulo, onde o humorista viveria até setembro de 1959.

Ao longo de sua vida, o Barão de Itararé manteve sempre a límpida autonomia anárquica e a imbatível falta de caráter do seu personagem. Estas só seriam afogadas mesmo pelas profundas amarguras que marcaram a sua vida pessoal. A última década de sua vida, após a viagem que fez em 1963, foi marcada pela obsessão com a ciência que o atormentava desde a juventude. A isto se aliaram estudos esotéricos. Para os velhos amigos, ouvir-lhe as longas exposições sobre o horóscopo biônico ou o quadrado mágico era algo desconcertante. Poucos de seus vizinhos no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, identificavam naquele velhinho de barbas brancas, muito alvo, magro, irritadiço e excêntrico, a figura risonha e dionisíaca do Barão de Itararé. Os últimos anos, entre 1964 e 1970, Aporelly passou-os só e afastado da imprensa, morrendo em 27 de novembro de 1971.

De certa forma, esta autobiografia dá conta das contradições do personagem, onde o humor mais radical escondia o desencanto do mundo que marcou a vida de Aparício Torelly. O texto de Ivan Jaf incorpora anedotas, jogos de palavra, aforismos e trocadilhos nos quais era craque o Barão de Itararé. A forma vertiginosa como o texto evolui, emendando um assunto no outro, incluindo algumas informações verdadeiras sem deixar que a cronologia e a racionalidade sequestrem a narrativa dando-lhe um aspecto convencional, também remetem à personalidade exuberante e, ao mesmo tempo, melancólica do Barão de Itararé. Há algo de desesperado nesse fluxo contínuo de tiradas humorísticas, trocadilhos e paradoxos que desperta no leitor uma fascinação por esse personagem divertido, louco e sofrido que foi Aparício Torelly. 



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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 165 | fevereiro de 2021

Artista convidado: François Despréz (França, 1530-1587, aproximadamente)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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