1.
Com a morte de
Aníbal Machado, em janeiro de 1964, abriu-se uma vaga, a nosso ver de
provimento inviável, nos quadros da literatura brasileira contemporânea. Tal
afirmação não se apoia apenas na circunstância de um procedimento literário
singularíssimo, mas também, e com maior razão crítica, no complexo de soluções
esteticamente logradas pelo escritor através de um processo de criação e de uma
perspectiva humana que – por sua acuidade poética, pelo amor e o humor de sua
lição ou, ainda, pelo desconcertante ludismo de sua linguagem – não encontram
parentesco próximo, ou sequer remota consanguinidade, ao longo de toda a nossa
genealogia literária.
Aníbal
Machado sempre desafiou a crítica ou, pelo menos, um setor dessa mesma crítica
que, baseado nos princípios do new
criticism anglo-americano (Richards, Leavis, Empson, Ramson, Tate,
Shapiro), se outorgou – e ainda hoje o faz – o direito de supremo arbítirio no
julgamento dos recursos expressivos que pudessem demarcar, com absoluta
precisão, a linha divisória entre as zonas de produção correspondentes a esse
ou àquele gênero literário. Análise mais demorada e minuciosa de certas obras
(Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e alguns contos de Dalton Trevisan
seriam, entre nós, exemplos também relevantes) mostra, porém, que essa escala
de valores nem sempre fornece todos os dados necessários à elucidação do
problema, contrariando assim a distinção tão enfaticamente postulada por
aqueles críticos quanto às estruturas sintático-verbais e aos processos de
fabulação que caracterizariam a poetry
e a fiction.
Ao
voltar-se contra as proposições estéticas de Croce (e, consequentemente, contra
toda uma Weltanschauung que se
enraíza no idealismo lógico de Hegel), o new
criticism, se, por um lado, corrigiu as imprecisões daquele discípulo de
Vico, por outro, quase marginalizou, em sua tentativa de recuperar a “forma” do
conceito aristotélico, o fundamento segundo o qual todos os projetos humanos
(inclusive o estético) apenas se concretizam a partir de um intercâmbio de potencialidades,
ou então quando pretendidos como visão integral, dialeticamente globalizante,
da realidade. Ora, não vemos como seja possível a sistematização, nos termos da
dicotomia abstratizante a que se propõe o new
criticism, de uma doutrina estética em que os gêneros literários se possam
individualizar em categorias puras e, como tais, alcançaram um estágio de
rigoroso isolacionismo estrutural. Afinal de contas, se o pensamento ocidental
opera mediante dicotomias e abstrações conceituais, nem por isso deve
escamotear as exigências de todo um sistema de interações e reciprocidades.
Com
respeito às obras dos escritores acima referidos, observa-se que o critério
segregacionista do new criticism se
resolve antes num impasse terminológico do que, a rigor, num cânone disciplinar
cujos fundamentos o justifiquem como padrão normativo de quaisquer desvios
literários. No caso particular de Aníbal Machado, os processos de fabulação, de
referência verbal e até mesmo de dicção (lembre-se que, segundo Fenollosa &
Pound, “a poesia difere da prosa pelas cores concretas de sua dicção”),
relativos à especificidade do que sejam poetry
ou fiction, se interpenetram,
mascaram-se e confundem-se, comprometendo assim, no plano concreto da
linguagem, a simetria de um organismo cujas funções se pretendessem autônomas.
Se
nos concedemos o direito desse breve arrazoado, o fizemos apenas porque, sem
ele, não seria possível relevar aquilo que, do ponto de vista formal, constitui
o mérito maior de Aníbal Machado, ou seja, seu flagrante desmentido – um
desmentido, é bom lembrar, que não se expressa tanto pelo equacionamento de
qualquer plataforma estética, mas pelos dados concretos de uma obra literária
como tal –, à rigidez e à anestesia conceituais que, muitas vezes, invalidam o approach crítico-exegético. Seria ainda
oportuno, já que tocamos no problema da forma (e, por força, no do binômio
forma-fundo), definirmos uma posição que muito se avizinha daquela que assumiu
Reverdy, para quem (e Aníbal Machado o reconhece) a forma se apresentaria, à
semelhança da estrutura tissular do organismo animal, como a pele que recobre a
carne (isto é, o fundo) e que, com ela, compõe um mesmo e único soma, uma única
a indestrutível comunhão funcional.
2.
De Viva feliz [1] ao quase legendário e póstumo João Ternura, [2] o escritor nada mais fez do que
articular e superar etapas no sentido de atingir uma expressão dialeticamente
afim da realidade, cotidiana, onde se antetizam o lírico (poético) e o vulgar
(prosaico). Já em 1926, quando Aníbal começou a redigir o seu João Ternura, era evidente essa
intenção, e uma intenção que se traía, aliás, no próprio título da obra: João Ternura (lírico e vulgar). Logo,
não é de estranhar que o escritor se haja dedicado à incorporação progressiva
(e conscientemente dirigida) de recursos estilísticos como aforismas,
parábolas, flashbacks (herança machadiana ou, mais provavelmente, artimanha que
lhe propiciaram suas intimidades com a técnica cinematográfica), imagens,
inserções poemáticas e até mesmo metáforas já declaradamente poéticas.
Tais
elementos, por sua vez, encontram apoio num substrato linguístico multiforme, a
partir do qual o autor elabora suas polissemias, suas insólitas inversões
fraseológicas e agílimas acrobacias sintáticas, artifícios esses que, aliados
ao coloquialismo da fala (sobretudo dos diálogos e monólogos interiores), ao
ritmo criado pelos batimentos de uma pulsação interna quase inaudível (“Retira
do teu poema as estridências do grito, se queres que ele tenha mais alcance e
ressonância”) e, acima de tudo, a uma intransigente economia vocabular,
permitiram-lhe o domínio de uma linguagem capaz de fundir, como discurso, a
fabulação lógico-analítica da fiction
ao fluxo encantatório e à concreção verbal da poetry. Sob esse aspecto, ou seja, a partir dessa tentativa de
fusão estrutural, é que devem ser vistos Aníbal Machado e, particularmente, João Ternura, princípio e fim, súmula
de seu pensamento criador. E aqui perguntaríamos, já que a isso nos obriga o
escritor: onde aflora nele o poeta e onde se dilui o ficcionista, e quando este
retornar para expulsar aquele? Ou não estariam ambos sempre juntos, na harmonia
de seu conflito (“Meu duplo é insuportável. Vem sempre brigar comigo”, in Cadernos de João)? [3] ou, quem sabe ainda, reunidos na superação dialética de suas
contradições internas (“Quando meu duplo mais entretido se mostra comigo, então
eu aproveito e fujo… Abandono os dois e formo um terceiro”, ibidem)?
Sobre
João Ternura recairão, acima de
quaisquer outras, acusações quanto à sua estrutura irregular, frouxa e
descontínua, ou mesmo quanto ao emprego de certas soluções alheias às normas
usuais da técnica romanesca de narração, das quais se farta o autor.
Parece-nos, contudo, que tais objeções incorrem num erro de premissa, pois,
quando se atenta aos objetivos a que pretendeu atingir o escritor, comprova-se,
isto sim, uma lúcida e obstinada intenção de justamente afrontar certa ordem
estabelecida para criar outra, mais orgânica e autêntica, uma ordem mais sua,
enfim. Daí, talvez, a filiação de Aníbal Machado ao poema em prosa (Poemas em prosa) [4], ao ensaio poemático (ABC
das catástrofes e Topografia da
insônia), [5] à prosa poética da
rapsódia lírico-vulgar (João Ternura)
e ao mosaico heterodoxo do caderno (Cadernos de João), gênero que, muito a
propósito das considerações por nós aqui alinhavadas, recebe do autor esta
singular definição: Mapa irregular do
nosso descontínuo interior, com fragmentos, vozes, reflexões, imagens de
lirismo e revolta – inclusive amostras de cerâmica verbal – dos muitos
personagens imprecisos que o animam. Aforamento de íntimos arquipélagos, luzir
espaçado de constelações predominantes… (in Cadernos de João). Ora, tudo isso não vem senão fortalecer nosso
ponto de vista quanto aos critérios que se devem adotar para a abordagem de
qualquer obra literária, pois esta, ao alcançar determinado nível de proposição
estética, só pode ser compreendida em profundidade quando nela se revelam os
fins a que se propôs o autor. Não será pela arbitrariedade de uma recusa formal
apriorística que lograremos descer às raízes da criação, cujo mistério só se
revela na medida em que aceitamos os dogmas de sua proposta, de sua tácita e
inalienável fatalidade.
Aníbal
Machado entendia a criação literária antes como um processo assimétrico,
descontínuo, de limites às vezes frouxos e imprecisos, em que, à revelia do
artista, se configuravam paisagens oníricas (floração subconsciente do
automatismo psíquico explorado pela linguagem surrealista, de que muito se
valeu o escritor) e zonas de silêncio
(Há no espírito uma zona de silêncio que
funciona à revelia da nossa atividade imediata, nos diz ele em Cadernos de João), apenas acessíveis à
imaginação ou às súbitas iluminações de uma sensibilidade pensante, mas nunca
aos instrumentalismo da pura racionalidade. Não se deduza do que acabamos de
expor nenhum sintoma de carência formal ou estilística, mas sim uma crença e
uma fé do escritor, uma obsessão de seu espírito no sentido de identificar vida
e poesia (A poesia se confunde com a vida,
e quando lhe falta, esta perde o sentido, diz ele na entrevista que
concedeu a Olga Werneck para a revista Encontros
com a Civilização Brasileira, n.2). Assim, não será muito difícil
compreender que Aníbal Machado se haja proposto, talvez, ao estabelecimento de
certa analogia entre os processos de criação artística e da própria vida,
sobretudo os do subconsciente. E que processo ou fenômeno psíquico de cumulação
– seria o caso de perguntar mais uma vez – obedece a quaisquer princípios de
simetria ou de continuidade?
3.
A gestação de João Ternura (durante cerca de quarenta
anos, com alternâncias que iam de iminente conclusão ao súbito engavetamento
dos manuscritos, escritor e obra mantiveram assíduo convívio) constitui o maior
de todos os reptos lançados por Aníbal Machado à crítica literária. A questão,
intrigante e instigante, abre um inesgotável leque de suposições quanto à
gênese e ao desenvolvimento do processo criador, desafiando o crítico a um
duelo de perspectivas às vezes sombrio, pois, como observa oportunamente Otto
Maria Carpeaux, a pesquisa das origens
psicológicas das obras de arte, e das condições em que se formaram no espírito
de seu criador, sempre só fornece resultados hipotéticos (Presença de Aníbal, in João Ternura). Leitura mais atenta de
toda a obra de Aníbal Machado faz supor, ainda como pretende Carpeaux no texto
citado, uma estrutura existindo durante
muito tempo, potência à espera da palavra que irá transformá-la em ato, em
concreção verbal. À hipótese de Carpeaux, que nos parece bastante sugestiva,
gostaríamos de acrescentar certos dados relativos à possível mecânica de um
processo correlato de criação. Com isso, queremos arriscar o pressuposto de que
João Ternura, na condição de embrião,
não existiu apenas como potência à espera de atualização formal, mas também
como ato, como estrutura já concretizada através dos procedimentos que integram
diversos episódios das novelas de Histórias reunidos, [6] bem como de alguns poemas em prosa e aforismas incluídos em Cadernos de João.
Sem
quaisquer pretensões a levantamento estatístico, lembraremos aqui o parentesco
de certas soluções de que se valeu o escritor em mais de uma obra, soluções
essas, porém, cuja simultaneidade jamais poderá ser averiguada
cronologicamente, pois nada nos autoriza a considera-las como anteriores ou
posteriores a João Ternura. Exemplo
flagrante desse parentesco está na analogia dos desaparecimentos de Zeca da Curva (O iniciado do vento, in Histórias
reunidas) e de Ternura: ambos se furtam, poeticamente, à falência corporal
e ao absurdo metafísico da morte – um, carregado pelo vento; outro, mineralizado no vazio inorgânico de uma
pedra, mensageira de antigas eras
geológicas… pedra de uma presença que transcendia sua aparência de pedra
(in João Ternura). Observe-se ainda
que, tanto neste como naquele caso, Aníbal promove o retorno (transitório, é
verdade) de suas personagens às raízes do substrato cósmico, à matriz dos
elementos naturais, justificando assim o telurismo daquele quase vaticínio
proferido por Ternura ao abrir-se o Livro V: – Manuel, eu acho que o negócio cai ser decidido é aqui mesmo, na
Terra! Tanto Zeca da Curva como Ternura desaparecem
gradualmente pela diluição de suas substâncias individuais no grande todo
universal da natureza, e ambos retornam
à Terra: o primeiro, transfigurado no vento que começou a existir, mudando a fisionomia
moral da cidade (E quem pode afirmar,
sr. Juiz, que Zeca da Curva esteja morto? Por que não admitir que ele tenha
vindo com este vento e já esteja subindo pela escada?, pergunta o
engenheiro de O iniciado do vento);
Ternura, temporariamente esquecido entre as camadas daquela pedra negra e macia.
E
vários outros exemplos parecem confirmar nossas suspeitas acerca dessa
concomitância criadora, como, entre muitos, a identidade situacional (kafkiana,
é bom que se diga, valendo a pena lembrar que o autor de O processo era leitura contumaz de Aníbal Machado) que aproxima O telegrama de Ataxerxes (in Histórias reunidas) do episódio em que
Ternura tenta descontar um cheque bancário; o clima de ansiedade criador pela
especulação das mulheres em torno do nascituro, filho de uma delas, que se pode
observar em Um acontecimento em Vila
Feliz (in Vila Feliz e Histórias reunidas) e nas primeiras
páginas de João Ternura e os poemas em prosa de Cadernos de João (a relação é, às vezes, direta, pois há um momento
em que Ternura, dirigindo-se a Manuel, afirma: já te disse que ando sempre em preparativos, tema este utilizado
pelo escritor no poema em prosa Homem em
preparativos, in Cadernos de João);
a atmosfera delirante do Carnaval, reconstruída pelo autor ao longo de cenas
que, fundindo fantasmagoria surrealista e absurdo cotidiano, estabelecem
analogias de passagens como estas: Um
sujeito, vestido de Hailé Selassié, escutava comovido. Pouco a pouco, a pobre
senhora foi percebendo que estava cercada de cavalos, bois e porcos
prestimosos, além de Mefistófeles e alguns Arlequins que vieram oferecer seus
serviços (A morte da porta-estandarte,
in Vila Feliz e Histórias reunidas). E: Deus
estava detido na Chefatura de Polícia, convertendo um coronel, ou, mais
adiante, tomando batida num boteco do
Méier (in João Ternura); o
poético fantástico de O desfile dos
chapéus (in Histórias reunidas) e
de Chove pastéis em Vila Isabel (in João Ternura); o desejo angustiado de
crescer experimentado pelos homúnculos de O
homem alto (in Histórias reunidas)
e por Ternura, em sua Oração para ficar
grande (in João Ternura); a
tentativa de recriação da linguagem infantil em Tati, a garota (in Vila Feliz
e Histórias reunidas) e nos Livros I
e II de João Ternura. E assim por
diante, numa espantosa e interminável cadeia sincrônica de elementos
ambientais, situacionais, fabulatórios, conteudísticos, formais e estilísticos
cuja organicidade nos leva à suposição de que João Ternura não representa
apenas uma obra unitária, mas o próprio paradigma da unidade artística e
intelectual do imenso criador que foi Aníbal Machado.
4.
Estrutura em seis
partes ou livros, assimetricamente
dispostos segundo as exigências impostas pela descontinuidade do tempo interior
da personagem-título, João Ternura opera o milagre demiúrgico e paradoxal de
organizar, mediante a desordem da fabulação episódica, o caos das tensões
antitéticas que caracterizam o comportamento psicológico do ser humano. Ao que tudo
indica – sobretudo nos três fragmentos iniciais, pois, já a partir do Livro IV,
o herói (ou anti-herói?) começa a diluir-se no anonimato da existência coletiva
–, a preocupação maior de Aníbal Machado foi captar as mínimas pulsações de seu
psiquismo interior e, depois, em Âmbito mais amplo do que lhe haviam permitido
as evocações autobiográficas, projetá-las na simbologia universal das vivências
de Ternura, que, como assinala Paulo Rónai, sem
ser um personagem meramente autobiográfico, era a figura que Aníbal às vezes gostaria de ser como a que temera ser.
Nos
dois trechos iniciais relativos à infância de Ternura, a recriação ambiental se
processa quase exclusivamente através de um monólogo interior do herói. O
diálogo, quando ocorre, é incidental, apresentando-se amiúde sob forma de
monólogo dialogado, de um sistema coloquial em, que tanto os acontecimentos
exteriores quanto as demais personagens da ação se transformam em satélites da
personagem central, que os corrige segundo a metalógica de sua percepção, cujas
portas, sempre multidimensionais, se
abrem para a inocência do mundo e mostram as coisas tais como são: infinitas (in Cadernos de João, apud William Blake, in Marriage of Heaven and Hell). Aqui, o escritor desce às origens da
fala, à medida virgem da palavra, às fontes do ritmo e da dança – enfim, à
matriz do signo verbal primitivo. Portanto, a infância de Ternura é também a
infância da linguagem, substrato poético da prosa de Aníbal Machado, justamente
porque senhor desse instrumental, e pela habilidade com que o manipulou, pôde o
escritor mergulhar nos córregos de sua infância e, incorporando-se ao fluxo
movediço da memória, captar aí – verbo no
infinito – as imperceptíveis pulsações de um psiquismo adormecido, a
tibieza de uma chama quase a extinguir-se, mas que se aviva e tudo ilumina
quando transfigurada pelo poder encantatório da metáfora e da imagem: A noite está apinhada de ladrões enormes,
vestidos de preto. Eu apertei a maminha de minha tia. Ou: Esta noite desceu uma canoa com uma moça
gemendo. Ou ainda: O que ninguém sabe
é donde vem esse rio, nem para onde vai. Esse rio é um mistério.
Nesses
dois fragmentos inaugurais é que Aníbal Machado mais recorre àqueles recursos
sintáticos responsáveis pela desorganização da estrutura fraseológica,
conferindo-lhe um ritmo antes poético (a rigor, de verso livremente
metrificado) do que discursivo: Que voz é
essa que ressoa no corredor assim tão forte e imperativa? Ou: Imponente é o homem que está na mesa comendo
devagar. De frequente incidência são, também, as incrustações poemáticas
(ou, melhor dizendo, de poemas em prosa já pretendidos como tais):
Ternura
e dois meninos fugiram de casa para perturbar a paz da lagoa. Com eles seguia
Maria, criadinha morena.
As
águas se assustaram ao receber os três corpos. E a lagoa entrou em festa.
Faltava
Maria para cair.
Alguém
há de pensar que é o pudor que te retarda o mergulho, depois que os meninos já
viram tua camisa pendendo da árvore e já perceberam que estás nua.
–
Anda, Maria, cai.
De
trás da pedra um corpo novo correu. Uma flâmula submergiu na água. E não
voltou!
Atônitos
os meninos gritaram:
–
Maria!
Mas
a criadinha não atendeu.
A
lagoa ficou com ela.
No
mesmo caso estão o ritmo interior da fala, o ludismo de elementos capazes de
evocar a atmosfera de inocência em que se move Ternura (artifício
particularmente visível nos diálogos do herói com sua mãe, suas tias e Isaac)
e, ainda, o contracanto dos processos de fabulação que constituem a espinha
dorsal dos monólogos interiores de Ternura, através dos quais pensamento e
palavra retornam, como já dissemos, à infância da linguagem:
…Na
bananeira tem um barulho. Eu não vou lá. Na bananeira tem um gemido. É de uma
família que morreu. Depois que chove, na hora que venta, tem um homem esmagando
uma mulher. Eu vi e não vou lá. Quando chegarem os meus canhões eu faço fogo na
bananeira.
É
depois que chove, na hora que venta…
5. Os livros III e
IV relatam o penoso e tumultuado ingresso de Ternura no turbilhão da cidade
grande, onde – afirma o herói – o
principal da vida vai acontecer, pois, não obstante a impossibilidade de
sua adaptação ao ritmo mecanizado do organismo urbano, é aqui, diz ele ainda, o
lugar do desafio. Agora, porém, se a narrativa insiste em acompanhar o
fluxo descontínuo a que obedece o psiquismo do herói, a linguagem muda de tom,
adquirindo características que diríamos, talvez, mais crítico-discursivas do
que poéticas. Ainda aqui, e como sempre, Aníbal Machado mantém altíssimo o
nível de sua inventiva léxico-sintática, uma vez que essa mudança de tom vem
apenas atender, enquanto superação dialética, a novas exigências interiores da
personagem central. Assim, à medida que Ternura vai se tornando adulto, também
a linguagem do escritor envelhece,
isto é, a palavra simula um estágio de desgaste e inverte o sentido de sua
conotação lúdica, embora sem perder o caráter de verbo poético. Com isso,
Aníbal Machado não fez senão ratificar aquele pensamento de Matthew Arnold,
segundo o qual a literatura is a
criticism of life. Não houve, portanto, nenhuma queda de rendimento
estilístico, mas, isto sim, uma nova adequação entre forma e fundo, um novo
contexto entre tema e problema, entre o que
e o como da comunhão verbal.
Mas,
além dos socos desferidos contra o
herói e pelo que há de cruel na alma
oculta da cidade, outros fatores irão também contribuir para a metamorfose
psicológica de seu comportamento, modificando assim a dinâmica estrutural da
narrativa e, sobretudo, o que nela é infraestrutura, matriz de fabulação e
linguagem. Referimo-nos aqui, especificamente, aos fatores representados pela
automação cibernética do homem, pela mentalidade burocratizada do complexo
urbano e, ainda, pela desumanização cotidiana do ser enquanto vítima de um
sistema social absurdo e injusto. É a partir de então que Aníbal Machado começa
a desenvolver uma linguagem crítica, seja através do delírio surrealista
(recurso já empregado, embora com finalidade diversa, nos Livros I e II), seja
pela formulação – kafkiana, digamos – do absurdo, seja ainda por obra de uma
ironia que, em contraste com o humor poético dos trechos anteriores, se
apresenta agora como implacável libelo social. Essa tentativa de distorcer o
real (ou melhor: de abolir um real incongruente e criticá-lo à base de valores
que, conquanto imaginários e mesmo fantásticos, sejam mais reais do que a
própria realidade objetiva) pode ser observada, já no Livro I, em “Largo dos
Leões” e, adiante, em episódios como “Delírio”, “Os importantes”, “A
revolução”, “A lei contra a lei do amor”, “Eu sou o Ernesto”, “Era um cheque”,
“Diante do Sr. Ministro” e outros. Tal orientação crítica se acentuará cada vez
mais, apesar das fugas e sumiços de
Ternura, que ora se transfere todo para
uma árvore de sua infância, ora inicia uma conversa com o mar, em cujo fundo,
nas raízes do rochedo, não há dor nem alegria, ora, sem mais nem menos, se infiltra numa
pedra e nela se transforma.
6.
O Livro V já
antecipa, de um lado, a progressiva dissolução do herói no fluxo anônimo da
consciência coletiva, de outro, a alegoria apocalíptica e surrealista do
Carnaval. – Abaixo a lóoogica! A voz
de um bêbedo no beco anuncia a
apoteose momesca com que se abre o Livro VI, ao longo do qual a inventiva
literária e a trama simbólica do autor alcançam suas formas de maior paroxismo
e acabamento estético quer como linguagem quer como perspectiva universalizante
da condição humana. Ternura vê-se agora engolfado no vórtice do delírio
popular, onde se vai diluindo aos poucos a sua substância ontológica. Tal
extermínio já se insinua, embora por mecanismo indireto, no humour noir de alguns episódios
adjacentes, como o da passagem do homem-féretro
(Aqui já o corpo que usei durante muitos
anos. Nasci errado em 13 de agosto de 1913 e morri ontem, hoje sou um zero a
caminho da sepultura), e no tom enigmático da ameaça lançada pelo Manifesto dos não-nascidos.
São
evidentes (e de suma importância para a compreensão do pensamento do autor) as
implicações contidas nos símbolos relativos aos episódios dos oradores, verdadeiro desabafo popular
que culmina, subversivamente, com a leitura do telegrama do futuro, cujo texto invoca um Deus ignoto, protestando
contra a vileza e a degradação sociais; ao Manifesto
dos não-nascidos, ou seja, a reivindicação (e dela, significativamente,
apenas Ternura toma conhecimento) daqueles que, embora vivos, não chegaram de
fato a nascer, e só puderam escutar o gligli
das águas originais quando suas células
ainda dormiam o primeiro e delicioso sono; à aparição palpável de Deus, sequência através da qual o
escritor satiriza a onipotência divina e a metafísica do milagre,
particularmente no episódio “Chove pastéis em Vila Isabel”, paródia à chuva do
maná bíblico que Deus enviou aos judeus no deserto do Sinai; à confissão de
“Tome esta pedra pra você”, onde Ternura antecipa a Luísa sua poética mineralização (Eu tinha certeza que essa pedra me esperava); ao vexame celestial
de “Vaiado na eternidade”, longo e impressionante episódio em que Aníbal
Machado não apenas reafirma seu ateísmo e sua lúcida irreverência (Então Deus era boato?!), como também
antevê o espetáculo de sua própria morte (Suava
frio, já não fazia questão de nenhum paraíso. Contentava-se com um cigarro. Com
o mergulho próximo no Nada cessariam aqueles vexames. A vaia aumentava.);
e, finalmente, à tácita e nostálgica aceitação do fracasso humano em seu
desesperado esforço para alcançar, não a mulher, mas uma mulher chamada Rita, e que sempre lhe foi a impossibilidade de: Rita, / nos abraçarmos é impossível! / …Cada um de nós pode apenas
chamar pelo outro…
Súbito,
pelo expediente habitual do sumiço,
Ternura desaparece de vez, furtando-se à expectativa daqueles que aguardavam
sua morte física. Durante algum tempo, contudo, sua substância humana, mineralizada nos veios de uma pedra negra e macia, continuará a pulsar como
um coração, o seu coração (essa pedra é como
se fosse o meu coração, dissera ele uma vez a Luísa), e isso talvez porque
Ternura sempre tivera o desejo e a ilusão
de que, depois que morresse, poderia continuar de olhos abertos por alguns
anos. Abertos, mas sem direito à vida!… Só para espiar! Um olho espiando.
Um olho que espiará o mundo até o
momento em que aquela pedra, caindo na
encosta de uma colina, voltou à Terra. Ternura desaparece então definitivamente, e segue rumo ao Nada,
imerso no vazio cósmico, como se nunca
tivesse existido.
7.
João Ternura – diz Aníbal Machado pela voz de Liberata,
uma das personagens mais ternura do livro e cujo nome revela o ludismo
antroponímico (e etimológico, no caso) do escritor – veio com a força do amor. E acrescenta a mãe do herói: Nem sei se este mundo é para ele, que,
vindo de muito longe, já existia antes mesmo de eu ter nascido. Com isso,
o autor afirma e nega a realidade ontológica de Ternura – duende en passant, projetado para aquém e além
dos limites físicos da existência, mas presente ao cenário de sua história –,
caracterizando assim a essência dialética da personagem, a um tempo rara e
trivial, fluida e concreta, cotidiana e universal, lírica e vulgar. Mas, se
Ternura veio com a força do amor,
seguramente terá vindo também com a força do humor, essa rebelião tranquila do espírito contra a miséria envergonhada da
condição humana, como se lê num dos aforismas de Cadernos de João. Amor e humor – eis a medula, a dualidade
substancial, a dinâmica antitética de toda a criação anibaliana, de toda a sua
indefinível poetry sem verso.
Ora,
é justamente por essa fórmula mágica, onde amor e humor se antetizam e se
superam, que Aníbal Machado subverte o mecanismo lógico-abstrato daquela raison raisonnante de Claudel,
promovendo uma originalíssima revolução de todo o sistema léxico-sintático da
língua e, consequentemente, estatuindo uma nova práxis para o aproveitamento
estilístico de suas potencialidades verbais. Nem por isso, entretando, João
Ternura perde a sua condição essencial de obra da inteligência, mas de uma
inteligência que atua somente como intelecção sensível, como percepção vertical
do esprit de finesse pascaliano
(observe-se, a propósito, que o escritor se filia a toda uma linha de clareza e
concisão típicas do melhor pensamento francês) e, como tal, de uma inteligência
que, embora raison saisonnante,
apenas intervém a posteriori, mas intervém decisivamente, como
sabiamente ponde Manuel Cavalcanti Proença. [7] Assim, a saga anibaliana parte sempre da imaginação, juízo que,
de certa forma, é confirmado pelo próprio escritor em Cadernos de João, pois se
o sono da razão gera monstros, o da imaginação produz pigmeus.
Ainda
com respeito ao emprego da fórmula amor-humor,
julgamos oportuno esclarecer que sua comprovação já está implícita, e também
lucidamente conscientizada pelo autor, naquela expressiva cambalhota que Ternura executa quando possuído pelo sublime do
êxtase vital, ou quando acuado por situações absurdas e vexatórias. Ao cambalhotar, o herói não manifesta
apenas um transitório sentimento de euforia e libertação, mas também – e talvez
mais do que isso – um protesto contra toda e qualquer ordem abstrusa que se
pretenda impor ao homem. E essa cambalhota,
essa estupenda e chapliniana cambalhota,
constitui o símbolo por excelência da ruptura, da inesperada subversão poética
contra os padrões do pensamento lógico-discursivo, pois o que significa ela,
quando se atenta no mecanismo fisiológico dos gestos e das atitudes de nosso
corpo, senão aquilo que se torna risível dans
l’exacte mesure où ce corps nous fait penser à une simples mécanique?, como
nos sugere Bergson. [8]
Mas
– repetimos aqui – o humor de Aníbal Machado raras vezes s’adresse à l’intelligence pure, como ainda uma vez nos insinua
aquele filósofo francês, e isso porque ele é, acima de tudo, um humor engajado,
um humor a serviço do amor, [9] o que
nos faz lembrar aquele pensamento de Proust segundo o qual o coração seria a suprema dimensão da inteligência, como
se lê em carta que o romancista escreveu à Sra. Catusse. Daí, a infinita
amplitude de perspectivas, sobretudo humanas, que nos abre Aníbal Machado, cuja
obra – seja pelo ineditismo formal de sua concepção seja elo rigor e pureza
verbais de sua linguagem – é, desde já, clássica.
Aníbal
e Ternura já vão longe, em busca de “Santa Maria, castelo de passarinhos”… E se
ambos levaram saudades deste mundo,
mais saudades aqui deixaram, saudades de suas conversas e histórias, cujo eco
ressoa pelos corredores do silêncio, ao longo das planícies difusas da memória,
na concha entreaberta de nossa fome, de nossa sede de ouvi-los ainda, a ele e
Ternura, contando para nós como era o mundo, a vida, o homem. Por isso – e por
tudo, enfim – é que pediríamos agora, como fez Ternura a D. Iaia, naquela noite apinhada de ladrões enormes,
relâmpagos e trovoadas: – Mas conta,
Aníbal, conta como é o mundo… Me ensina o mundo, anda… você sabe. Conta mais…
NOTAS
1 Machado, Aníbal. Viva feliz. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.
2 Id. João
Ternura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
3 Id. Cadernos
de João. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957.
4 Id. Poemas
em prosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1955.
5. Id. ABC
das catástrofes e Topografia da
insônia. Niterói: Hipocampo, 1951.
6. Id. Histórias
reunidas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
7. Proença, Manuel Cavalcanti. “Balões
cativos”, in Machado, Aníbal. A morte da
porta-estandarte e outras histórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
8. Bergson, Henri. Le rire. Essai sur la signification du
comique. Paris: Presses Universitaires de France, 1961.
9. Proença, Manuel
Cavalcanti. Op. cit.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 165 | fevereiro de 2021
Artista convidado: François Despréz (França, 1530-1587, aproximadamente)
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