domingo, 4 de julho de 2021

FLORIANO MARTINS | Pistas da origem de alguns de meus livros

 


• GÊNESE DE UM LIVRO DE FRAGMENTOS

Os primeiros versos deste livro foram escritos em janeiro de 2010 em uma simpática noite de inverno em Cincinnati, eu havia acabado de ver o filme De-Lovely, de Irwin Winkler. A neve caía lá fora e Ashley Judd havia me revelado tanto do caráter de Linda Porter, a esposa do compositor biografado por Winkler, que eu não fiz mais do que dar passagem para o poema dedicado aos olhos daquela mulher. O filme gotejava encantos por todos os lados, de tal maneira que nunca saberei ao certo se os olhos do poema são de Linda ou de Ashley. O que sei é que ali algo se modificava em minha escrita, a começar pela recuperação do manuscrito. Há décadas eu não escrevia poemas à mão. Uma única exceção, sem constituir nada além do que se possa chamar força das circunstâncias, foi um extenso poema escrito em um leito de hospital, em Sidney, dois anos antes, quando uma trombose quase me liquida.

O inverno naquela região estadunidense foi dos mais pesados e talvez pelo encantamento diante da neve, mais do que propriamente o isolamento, me pus a escrever novos poemas assediados por alguma lembrança feminina. Alejandra Pizarnik, Lee Miller, Clarice Lispector… Era curioso como os poemas começaram a destacar partes do corpo de cada mulher. Olhos, lábios, umbigo, mãos… Ali relativamente próxima de mim, em Nova York, vivia uma querida amiga, Madeline Millán. A neve e meu trabalho na Universidade não permitiram um encontro nosso, porém conversávamos, quase a diário, pela Internet. Quando escrevi o poema dedicado a ela – precisamente a seus ombros –, enviei um breve conjunto de cinco poemas a outro querido amigo, no Brasil, Jacob Klintowitz, que ao ler este último poema logo me escreveu dizendo que ali estava a chave de um livro que deveria se chamar “antes que a árvore se feche”. Os pedaços de corpos evocados nos títulos apontaram em uma direção que me levou a Emily Brontë. Ao lhe escrever um poema, percebi as senhas para a concepção de um livro, a soma de aspectos como “as sombras esquecidas sob os corpos”, “o mistério da morte”, “as vozes confiscadas por antigos presságios”, imagens que foram ambientando os manuscritos seguintes, mas, sobretudo, um facho de luz esclarecendo a trama que estava em jogo. O desafio vinha dos fragmentos de corpos que se impunham como partes de um poema que embaralharia as inúmeras etapas de uma vida.

As próximas mulheres começaram a chegar, ritmadas por essa ideia de que uma árvore estava a se fechar, e que elas deveriam arriscar um verbo, uma imagem, uma parte do corpo, de tal maneira que a completude do que estava em jogo fosse afiançada pela legitimidade de seus fragmentos. A esta altura eu já não estava mais em Cincinnati e sim de regresso a Fortaleza. Nunca dei importância em minha vida para fatores climáticos, mas é verdade que a passagem dos 14 graus negativos de Ohio para os 32 graus positivos do Ceará sugere alguma mudança de comportamento, seja na vigília ou no sonho, especialmente nessa área ambígua em que se dá a criação. Aos poucos, o corpo do livro foi definindo suas urgências, e voltei a pensar na curiosidade de que Mary Shelley estava do outro lado do espelho, sendo ela mulher a criar um personagem homem que idealiza um ser que lhe é igual. Eterno retorno à ideia do outro baseado em si mesmo.

Na outra margem do espelho eu me via como um homem que criava um personagem masculino obcecado pelas mulheres que são fundamentais em sua vida por aspectos alheios a tempo ou espaço. A mãe, uma grande paixão, a autora de um livro, alguém que lhe tenha enviado uma frase provocativa de reparo em sua alma… Não importa. Vivas, mortas, reais ou não. Esqueci o espelho. Toda idealização resulta em um monstro. Quando cheguei à Austrália, dezembro de 2010, o calor era quase tão intenso quanto o de minha cidade. O livro estava, assim como eu, praticamente de férias, quando visito uma exposição de Annie Leibovitz. Naquela manhã, no Museu de Arte Contemporânea de Sidney, anotei de memória o verso com que concluiria o poema dedicado à fotógrafa: “o mundo não cessa de tornar-se teu”. O que faltava ao livro o verso define. As férias se foram e escrevi vários poemas australianos. Pela primeira vez montei o corpo ideal sobre uma mesa: lábios, ancas, pernas, pulsos, calcanhares… A árvore já estava por se fechar.

Regressei a Fortaleza para cuidar dos ossos, veias e – finalmente – da memória desse outro Frankenstein. Um tipo curioso de autópsia antecipada. Ao contrário do monstro criado por Mary Shelley, esta minha “noiva-cadáver” – como um leitor amigo passou a tratá-la, sem que nada tenha a ver com a Corpse Bride de Tim Burton – atua como um transcritor. Os fragmentos de seu corpo equivalem aos instrumentos de uma orquestra. Essa mulher insondável, que é a própria árvore se fechando, ao mesmo tempo é a única fresta que me leva a identificar o que sou a partir do que crio. Concluído em Fortaleza, justamente com a memória da mãe, o livro define que a idealização não está em parte alguma, sendo ela, isto sim, parte de tudo o que somos.

 

GÊNESE DE UM LIVRO DE TRUQUES

Ao receber em casa exemplar do livro Gog, de Giovanni Papini, de imediato após a primeira folheada saí com ele, sem nada planejar. Após um tempo impreciso caminhando dei de cara com um lugar chamado Mercado 153. Entrei e o simpático metre me informou que tinha Heineken original, holandesa. Aquele 153 me levou direto ao nove de sua decomposição, número que multiplicado se reproduz a si mesmo, de acordo com o princípio da adição mística. Um gole da geladíssima cerveja e, ao folhear novamente o livro, pedi ao metre que me conseguisse papel e caneta. Incalculável o tempo que levei a escrever, até que, sem que antes desse por conta, percebi que estava escrevendo de forma invertida, como se o manuscrito só pudesse ser revelado pelo uso de um espelho. Surpreso e faminto, pedi um filé alto, mal-passado, e voltei a folhear o livro de Papini, sem, no entanto, ler sequer uma frase. As manifestações espíritas se dão de incontáveis maneiras. Há aquelas que produzem estranhos ruídos ou que arrastam móveis pela casa; outras que materializam bilhetes ou fornecem pistas para que localizemos velhas tranqueiras domésticas ou mesmo alguns pequenos tesouros; há ainda aquelas em que ouvimos vozes ou somos tomados pelo espírito de alguém… Minha mãe e sua irmã vislumbravam formas humanas, chegando a identificá-las e conversar com elas. No meu caso não houve nada disto. Naquela manhã o que senti foi a presença invisível de William Blake, a delicada força de sua mão segurando a minha e simplesmente rascunhando notas e mais notas. Durante cinco ou seis vezes repeti aquele ritual. Retornava ao Mercado 153, sentava-me à mesma mesa, cerveja, filé, sem que nada faltasse. Sempre comigo o livro de Papini, mesmo sem abri-lo. No terceiro dia o metre indagou se eu era escritor. Para ele a minha visita era tão afetuosa quanto a de Blake para mim. A primeira cerveja eu tomava conversando com ele, curioso de tudo. O poeta inglês prosseguiu com seus manuscritos, e no quarto dia me apresentou Catherine, sua esposa, pedindo que eu também a deixasse escrever algo. Observo agora que nem mesmo quando as anotações se concluíram eu voltei a folhear o exemplar de Gog. Senti que havíamos finalizado aquele estranho rito quando me pus a desenhar o rosto de Blake e logo o meu próprio sobre ele. Não nos despedimos. Algo em mim estava ciente de que eu havia recebido um presente. Nossa relação com o mundo, visível ou não, se dá como a percepção de uma ponte, cujo entendimento da mecânica de comunicação de duas experiências é o que define nossa existência. Blake me descrevera fatos que não constam de suas diversas biografias. Somente uma semana depois é que comecei a ler Papini. Em algum momento fomos – Blake, Papini, eu – a misteriosa definição de três mundos: corpo, intelecto e espírito.

 


• GÊNESE DE UM LIVRO DE MARTÍRIOS

Criar é sempre desentranhar. De tal perspectiva inclusive compreendemos melhor euforia e tragédia em nossa existência. O livro Campos queimados, como qualquer outro objeto de criação, está constituído por obsessões. Com igual intensidade atravesso o dia. Confundem-se em mim o que escrevo, fotografo, traduzo, beijo, amo, sonho. A trama cotidiana, o tempo impreciso, os diferentes prazeres e aflições que regem a aventura humana. Costumo dizer que não escrevo poemas, mas sim livros. Há um acento sinfônico em cada livro, entendido como uma visão mais ampla de mundo, com suas variações de ritmo e sentido, suas modulações que buscam mesclar desejo e memória, os elementos visíveis e invisíveis da experiência poética. O que um artista escreve sobre sua obra não pode ir além de impressões, notas de composição, reflexões que revelam os bastidores harmônicos. A expressão, no entanto, será dada pela obra em si, ou mais particularmente pela maneira como o leitor se deixa tocar por ela.

Um poema é uma pintura que é uma canção que é uma peça de teatro. Esta é uma de minhas ideias fixas. Outra diz respeito ao modo como embaralho contrastes em um mesmo personagem, para que este me ajude a decifrar as dissonâncias de minha vida. Não acredito em criador que não esteja obsessivamente voltado para a compreensão de seus mais íntimos fantasmas. Viver, assim como escrever, requer devoção. Disse Matisse: “não desenho melhor hoje, desenho diferente”. As obsessões não nos aperfeiçoam, mas sim nos revelam outras maneiras de ver o mundo. Eu mesmo disse em outro livro que a beleza será impudica ou não será. A beleza convulsiva evocada pelo surrealismo é apenas um elemento que integra essa condição impudica da criação. Ir ao ponto, sem retórica de espécie alguma, por mais sutil que seja seu disfarce. Jamais permitir que falsos moralismos derrotem o poema e a verdade de sua beleza. Mais do que verdade: sinceridade. A sinceridade é o que faz com que Matisse desenhe diferente e não melhor. A sinceridade é a resultante da criação que não pode ser substituída pela impressão do que lhe há causado a canção a seu próprio criador.

O alcance de nossa visão é mais amplo quando percebemos essas sensações fugidias, a maneira como buscamos equilíbrio não como se tratasse de uma reconciliação de divergências, mas sim como uma aceitação das variantes dos estados sensíveis da matéria humana. O homem não está regido pela lógica, como prova o fato de ainda não sabermos lidar com a loucura. A lógica não produz mito. Os movimentos ou capítulos de Campos queimados tocam sensivelmente esta outra obsessão. Quando a morfina subitamente me salva a vida mordida por uma trombose que me leva a um hospital em Sidney, Austrália (“Blacktown hospital, bed 23”). Quando tragicamente descobrimos a torpeza com que evitamos tocar a realidade e nos viciamos em adiar o que somos (“A noite em tua pele impressa”). Quando o convívio mais intenso com a crônica policial me leva a acompanhar autópsias e ali descubro, na dissecação de cadáveres, uma porta secreta que nos traz de volta à vida (“Pequeno bosque de imitações”). Quando um amor supostamente derrotado pela voracidade da razão perambula por ruas conflituosas em busca de uma maneira de livrar-se da metáfora de seu desengano (“Duas mentiras”). Ou quando matamos o outro que habita em nós e está a ponto de revelar o que não desejamos exposto (“As joias do abismo”). De que somos feitos? Este livro não difere de nenhum outro meu no sentido dessa ideia fixa que me define a existência. Importa ser um homem melhor ou um homem diferente? Que traje uso para falar comigo? Essas pequenas notações ocupam toda uma vida. Estou convicto de que são menos perceptíveis justamente naquela arte menor em que seu criador tenta afastar-se de si.

Muita vanguarda está tomada por esse repúdio ao criador, reflexo de uma incompreensão do fato de que não há criatura sem criador. Outra vanguarda se verifica na negação da tradição. Negar não é o mesmo que romper com algo. Aqueles artistas inclinados a negar a tradição perderam muito da consciência da composição. É inconcebível destruir o que não se consegue construir. Nem se reconstrói do nada. Muita vanguarda resultou incompreensível por esse componente de uma desarmonia mais intensa. A obsessão pela criação não mudou de cenário. Tornou-se invisível por equívoco, por um distúrbio qualquer do criador. A arte não se tornou diferente, mas sim menor. A paisagem humana não desapareceu. O homem é, ao mesmo tempo, criador e criatura. A responsabilidade de um artista está determinada por esta compreensão.

Certa vez escrevi em um poema de adolescência que um carteiro poderia ser presidente de uma nação. Evidente que sim. Porque todos nós participamos, não importa o grau de consciência que temos a respeito do tema, da expressão real do que nos agrada e desagrada no simples fato de estarmos vivos. Não vai além do patético o fato de que muitos defendem o que digo quando o alvo trata de fome, conflitos raciais ou violência religiosa em países o mais longe possível de sua própria casa. O mundo só é imperfeito e digno de repúdio quando bem longe de mim – esta é a ideia fixa do homem. Duro de aceitar é que tenha se tornado também a ideia fixa do artista. E se uma alma assim tão pobre de si assina uma canção, uma escultura, um poema, o mundo vai perdendo força, desacreditando que há uma maneira sincera de exprimir as coisas.

A vida de cada um de nós está composta por aspectos que devem compreender sua situação, que devem saber situar-se. Volto a Magritte quando disse: “tenho mais de cinquenta anos de pintura nas costas e sempre sinto um pouco de medo ao começar uma tela”. Pois eu tenho igual sensação a cada livro que me reinicia. Sinto-me aceso pela mesma imperativa vontade de identificar minhas formas perdidas no mundo, o que sou em cada gesto, o que imagino ser, o que não consigo ser. Não é outro o mundo da criação. Alguém que muito me ensinou a este respeito foi o pintor Antonio Bandeira, com o impacto que me provoca pela maneira com que mescla paisagismo, figurativismo e abstracionismo. Bandeira é o artista que mais avançou no cenário do abstracionismo, justamente por jamais haver perdido de vida a paisagem e a figura. O título que dou a este meu livro, Campos queimados, é uma declaração de felicidade por este presente que ele me deu: sua obra. Título de uma pintura sua, os campos que aqui trato de queimar são expressões de minha ideia fixa do que representam criador e criatura em nosso mundo. São a representação da minha sinceridade.

 


• GÊNESE DE UM LIVRO DE HORAS

É possível que este seja o livro de um pintor, muito mais do que o de um poeta. Fascina-me constatar que cada poema traz em si a chave-mestra de um paiol de imagens-vivas. Neles eu não busquei modelos, nem os trouxe à perspectiva de uma leitura para sugerir mimetismo. Suas vozes vão preenchendo a escrita como a descoberta de uma nova ramificação existencial. Cada registro desnuda a pluma que o revela. O vento no jardim nos trouxe umas vozes que queriam ser descascadas. Ouvimos os hieróglifos da pele delas todas. Uma porcelana de sementes impossíveis. Relendo-o agora, estou certo de tê-lo pintado, e não escrito. Na manhã em que senti a presença da médium Eva Fay de imediato pensei na pedra chinesa para caligrafia que minha filha me trouxe de Hong Kong. Eva sabia o quanto eu queria desenhar palavras. E à mesa vi como foi trançando as metáforas de Antonio Bandeira, Maria de Naglowska e Franz von Stuck. Como a evocação de luzes na pintura de Bandeira, onde cada cena descrita abria um canal de alteridade que nos levava ao outro do outro no outro… Um ramo sem fim da criação quando esta aprende a reconhecer-se em tudo o que toca. Desentranhado em poucas manhãs, este livro não deixa de ser um caderno de anamorfoses. Tudo o que percebemos a razão se esmera em ocultar ou deformar. Este talvez seja o maior conflito amoroso de nossa precária existência. O léxico é um grafismo de corpos que planejam as cenas mais eróticas que já psicografei. Quando pousei o olhar sobre uma foto de Francesca Woodman soube de seu suicídio, porque ela tratava obsessivamente de desfazer-se de si em cada plano em que registrava a própria imagem. Francesca estava sempre em outra parte. Suas fotos movem-se com agudeza e tragam a nossa alma para o mais íntimo de seus ângulos. O mesmo que as enigmáticas figuras que perambulam pela obra de Leonor Fini, Olia Pishchanska e Xia Xiaowan. Seus traços foram guiando as letras à procura do paradeiro de muitos dos poemas que tenho escrito. A rigor, quando evoco seus nomes há muito que já estão comigo. Somos como os meteoros de Radovan Ivsic: já não são escamas a recobrir seu corpo, mas sim lábios minúsculos, inumeráveis. Não importa o que um disse, mas antes o que o outro pensou. Quando ainda recortava figuras para fazer uma colagem afeita a minúcias eu tinha a meu lado a aura de Luca Signorelli, Pierre Nicolas Huillot e Leila Ferraz. Todas as linguagens são uma só. Conversávamos ao modo de uma película de sonhos. Um transbordamento perene de imagens, bodas perfeitas entre Barroco e Surrealismo, voragem anímica. Essa melodia de excessos me deu uma chave secretíssima da obsessão espiral, cujas janelas me escancaram a obra de Eugène Ionesco, Valdir Rocha e Eunice Odio. O encontro com Valdir não foi intermediado por Eva Fay, porém há momentos em que não descartamos a hipótese de habitarmos uma variada excentricidade de mundos. Em uma de nossas conversas, quando me disse preferir minhas fotos nuas aos efeitos de sobreposição que costumo empregar, eu me pus a namorar transparências de Claude Monet e Cícero Dias, e ali descobri uma narrativa que descerrava um horizonte de fábulas, como se visitássemos as pinturas religiosas populares de séculos esquecidos à procura de uma aceitação mínima para o que somos. A história da humanidade, de algum modo, é um jogo ardiloso de cenas superpostas. Não há relevo sem perspectiva, causa e tributo. Dalton Trumbo intuiu que a sala de identificação é um baile de máscaras. A história aceita o engano, casual ou não. O homem reluta em cair em si. Edith Rimmington retira do fundo falso de uma caixa invisível os personagens de seu teatro ao revés. Marie Wilcox se torna a figura exemplar que ninguém quer por perto. Uma velha índia que ao invés de implorar por justiça ou um prato de comida se põe a trabalhar pelo registro de sua língua nativa. O século XXI ainda não aterrissou em si mesmo e uma de suas mais perigosas confusões diz respeito à hemorragia da culpa, graças à qual tudo se tenta remendar da pior maneira possível. Quando me visitou Hilma Af Klint confesso me haver surpreendido. A abstração me interessava muito pouco como um recurso isolado. Como qualquer outro truque de linguagem. Mas logo compreendi que era justamente isto o que ela queria me dizer, em sua condição precursora, o que ficou bem límpido assim que voltei a conversar com Austin Osman Spare ou Pablo de Rokha. O sonho mais aterrador que se pode ter é com um cemitério de linguagens, onde os túmulos se multiplicam sem o menor contato entre eles. Não de todo ao acaso, minhas anotações são uma espécie de clepsidra graças à qual oriento o curso de minha criação. Verbos, imagens, tonalidades, movimentos, dissonâncias, o palco se desfazendo e refazendo a cada cena. Ocultismo e mediunidade. Tênue silhueta da humanidade encontrada entre escombros do acaso. Uma canção de amor. Uma aquarela esmaecida. Um refúgio da memória. De algum modo naufragamos em nossas aspirações. Vejo agora que nem escrevi ou pintei este livro. Ele sempre esteve em mim, generoso palimpsesto, como a história secreta de uma multidão. E por isto o dedico à multidão que habitou alguém que sempre amei: Chico Anysio.

 


• GÊNESE DE UM LIVRO DE FARPAS

A cena se passa em um castelo medieval, há tempos transformado em Grande Hotel, majestoso e soturno, com suas paredes grossas e quartos que são como celas de um convento. Todavia não se trata mais do Hotel, que foi à falência, nem de um eventual convento, e sim de uma dúbia e improvisada casa de recuperação de virtudes. A médica Nise se sente intrigada ante o desafio de seu mais novo paciente, Antonio, e solicita ajuda de Maria, renomada por seu êxito em reanimar sexualmente pacientes encerrados em si mesmos. Antonio é um caso complexo, porque se sente aprisionado por sua própria consciência. A ambientação é completada por duas presenças curiosas. Aurora é a faxineira que vem aos sábados cuidar da limpeza da casa. Teria tudo para ser uma moça de hábitos simples. No entanto, ela é assediada por tremores que lhe fazem crer uma encarnação de Aleister Crowley, o mestre da magia sexual que ela desconhece por completo. Não bastasse, sabe-se que por alguma razão a direção da casa cedeu espaço, em um cômodo no porão, para que um taxidermista se instalasse, com a incumbência de montar uma exposição de corpos representativos da história do Grande Hotel. O que se descobriu tardiamente era que Guilherme tinha mais de meio milênio de existência e que havia atravessado destinos simplesmente se apossando de novas formas. Quando se encontram estes cinco personagens não há propriamente uma discórdia, mas antes um convulsivo cenário em que cada um deles manifesta uma opinião terapêutica acerca de Antonio, desde cedo caracterizado e aceito como o paciente único do Grande Hotel. O encontro deste quinteto é tão imprevisto quanto fascinante, cabendo à imaginação tecer os fios comunicantes desse prodigioso acaso. Esta, em definitivo, é uma obra de ficção, em especial pelo que se confunde com a realidade.


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Número 175 | julho de 2021

Artista convidado: José Duarte Julio (Chile, 1968)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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Um comentário:

  1. ¡Qué interesante! Leer sobre tu proceso de creación es sumamente enriquecedor; aprendo mucho.

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