Antes que a árvore se feche termina com “A outra voz do tempo”, um curriculum vitae bastante extenso de Floriano Martins, a pressupor no “outra” um anterior texto com o mesmo caráter biográfico. E esta seria mais uma fronteira aberta, por tal se entendendo que a separação entre dois territórios não é total; a fronteira instaura um espaço de partilha, de convivialidade com os outros, os estrangeiros nossos vizinhos, “nuestros hermanos”, dizemos nós, portugueses, dos espanhóis, e vice-versa. O texto anterior, intitulado “Os três tempos da árvore”, é uma longa conversação de Floriano Martins com R. Leontino Filho, que nos permite penetrar na alma do poeta. Realmente, a poesia é a condição maior de Floriano Martins, quer responda a perguntas de um entrevistador, quer escreva prosa ou faça fotografia, atividade tão importante como a escrita, quer a perspetivemos no âmbito das artes plásticas quer no design gráfico, pois ele assina muitas capas dos livros que tem editado, dele e alheias.
Sem fronteiras
de géneros literários, sem fronteiras linguísticas (acresce o dado biográfico de
que Floriano Martins também é tradutor), sem fronteiras de género, seja significando
género literário, seja género masculino ou feminino. Exemplifica-o 12 Fantasmas de Lavínia, dois livros enunciados
no feminino, por Lavínia, sendo que um deles é um diário. Outra instituição da fronteira
como espaço de partilha e mistura vemo-lo expresso na metáfora da geografia, caso
de “III – Atlas revirado”, envolvendo desordens no espaço físico, e de “II – Enigmas
circulares”, a circunscrever problemas noutro território, o qual invocaria para
a circunscrição mais o conceito de limite do que o de fronteira; livros que fazem
parte do livro Disfarces da dúvida (2019).
Pensando na obra
em geral, a coautoria, como território de partilha em planos diversos, desde o subjetivo
ao comercial, é prática habitual de Floriano Martins. É notório que ele gosta de
trabalhar a quatro ou mais mãos, que a criação comum reverte em prazer tão grande
como o resultado dela.
No território
das palavras desenham-se acidentes geográficos passíveis de estabelecer fronteiras,
zonas de mistura, aquilo que não apresenta a rigidez dos limites. Existem permanentes
passagens, “vasos comunicantes”, para convocar a autoridade de André Breton. As
mais tocantes são naturalmente as passagens entre este mundo e o outro. Elas trazem
ao palco uma complexidade de referências históricas, literárias e míticas, profanas
e sagradas, como acontece em “Tempestades avulsas”, cujo aspeto mais óbvio de mistura
é a de prosa e verso e de descida aos infernos a viagem a cumprir:
A caminho do inferno, já na última vértebra, sempre
alguém indaga sobre
os miseráveis planos da desordem,
a inviolável desordem com uma voz desesperada a que
se referia Gui
Rosey antes de desaparecer engolido por tal inquietude.
Um desconfiado método da harmonia.
Lugar inexato onde tudo se contempla e raro se completa.
O que há de mais em teus versos, poeta? Essa pobre vida
incompatível será sempre a mesma?
Sou eu: o nome, as letras
em que te arrastas, as perguntas que iniciam
a travessia de tua dor.
Noite inquieta sob escombros.
Delicado tambor das tormentas. Tua sombra vem vindo
ao ninho de minhas sílabas errantes.
Tua sombra erguida. Intimidade de cinzas
onde a dor o lábio toca. Formas ressurgidas do caos.
Prolongas teu ser em tudo o que me falta.
Noite submersa em tremores.
Esplendor de infernos devassados. Pousa tua mão
na esfera crepitante de meus sentidos.
Uma prova: o livro que conduz
ao templo. Missal de cinzas. Teu corpo soprado mil vezes,
a queimar mais e mais longe de ti.
Por tradição
subentende-se aquilo que é intemporal, que, vindo desde os mais remotos avatares,
continuamos a praticar. Então, quando indagamos qual a tradição de dada escrita,
nada obriga a que ela remonte a um ab initio, pode apenas situar-se num dado ponto
da linhagem cuja origem própria é o cinema, suponhamos. Quer isto dizer que a tradição
é muito mais complexa do que a sua origem. No texto “Avalon, 1190”, primeiro de
O diário de L., vemos aglutinadas informações
que não se cingem à Idade Média. Basta tratar-se de um relato autobiográfico de
Lavínia para a mistura de géneros, estilos, informações ficar patente. No texto
“Fortaleza, 1957”, deparamo-nos com o caso bastante interessante de o autor poder
ser filho de Lavínia, já que esta sofre de dores no ventre e divaga sobre quem pode
ter dentro dela. Fortaleza, 1957, eis o local e a data de nascimento de Floriano
Martins. Fica também patente, até na informação segundo a qual “avalon” significa
“maçã”, que parte importante da tradição preservada na obra de Floriano Martins
é de raiz bem europeia, o que decerto molda o seu imaginário, incapaz de se conter
nas balizas americanas e mais especificamente brasileiras. Neste imaginário europeu
convém, pois, inserir o glossário de termos próprios do catolicismo que, como uma
arca barroca, fornecem pontilhações cerimoniais e luxuosas sobretudo à lírica, acentuando
o seu caráter de liturgia.
O texto “Macuri,
1873” remonta a perseguições de índole religiosa: o léxico procede da história da
Igreja Católica, seu catecismo e liturgia. Tratando-se do Diário de L., não é irrelevante citar desta personagem intemporal a
conclusão de que “Toda santidade é herética”. Lavínia critica tempos remotos que
são os seus, tal como é seu o século XXI. Ela consegue esse prodígio, não por ser
santa, antes por ser uma figura de poesia que ultrapassa o tempo de vida habitual
do ser humano. O âmbito étnico de Macuri, segundo o autor, em informação pessoal,
é amazônico. Vale a pena transcrever a sua resposta à pergunta “O que é Macuri?”:
É indígena, tem um canto do Amazonas que diz assim:
Tamba-tajá, me
faz feliz,
assim o índio
carregou sua macuri
para o roçado,
para a guerra, para a morte,
assim carregue
o nosso amor a boa sorte.
Ao que parece é um tipo de coqueiro, conhecido como
coqueiro-macuri.
O autor, que
na sua panóplia de géneros cultivados inclui o teatro, estabelece laços de familiaridade
com Tennessee Williams, por exemplo, seja por via da peça de teatro mais perturbadora
na época, seja por via da sua adaptação ao cinema, Bruscamente no Verão passado. No poema primeiro de “A outra ponta do
homem”, do livro Resumo prefigurado, encontramos
uma extensa reflexão sobre os problemas levantados pela figura de Sebastian. O que
vem de mais impressionante da peça, entretanto, não é nenhum dos tópicos mais chocantes
– canibalismo, homossexualidade –, antes a palavra, o próprio nome da personagem-vítima:
Sebastian. O nome é de si uma entidade, carregada de valores simbólicos, não só
para Floriano Martins como para o próprio Tennessee Williams, que bebe, para voltar
à tradição, na tradição martirológica europeia, como um dos santos mais tratados
pela literatura (e pintura), e por isso mais personagem do que figura real. Escreve
Floriano Martins, em Antes que a árvore se
feche, atento à diversidade de dores que em geral acompanham o martírio e à
probabilidade de todos os homens serem mártires, como esses Hölderlin, Trakl e Paolo,
diria eu que Pier Paolo Pasolini, que se juntam a Sebastian:
O homem é o cardápio do homem.
Sonha com sua metade profunda a la carte.
Hölderlin, Hölderlin, mais do que Sebastian, mais do
que Paolo, abrasado
pela carga desmedida de sua profecia. Hölderlin e sua
vigília
da loucura. Trakl e sua vigília da solidão. Cage e sua
vigília da
dissipação do homem – transfigurações dos grãos da humanidade
em
nós.
O que apazigua a morte? E a vida?
São Sebastião,
eleito o mais belo dos santos, é uma criação literária coletiva, aliás criação cultural
coletiva, pois também existe o contributo de outras artes, de entre as quais salientaria
a pintura. Certas comunidades gay, como a brasileira, erigiram-no em seu patrono,
tendo em São Salvador da Bahia uma importante igreja como seu santuário, a Arquiabadia
de S. Sebastião ou Mosteiro de S. Bento. Muita representação do santo impressiona
pelo seu erotismo, ele é inequivocamente um amado. Aliás, na iconografia, as flechas
do seu martírio são as mesmas de Eros/Cupido. Recordo em especial o conjunto de
belíssimos quadros que Guido Reni lhe dedicou, uma evidente homenagem amorosa.
Floriano Martins
tece uma lista de reflexões a propósito de Sebastian que vão precisamente da dor
à beleza e ao erotismo, erigindo o corpo em tema central do livro. Aliás, o corpo
é central na modernidade, tantas vezes exemplo flagrante de fronteira, enquanto
território de mistura e hibridação, por isso de indiferenciação entre masculino
e feminino. É assim que, a seguir à evocação de Sebastian, um desses indivíduos
que rompe os limites do género, surge a narrativa (numa primeira pessoa feminina)
de duas mulheres, Eugenia e Anete, assassinadas por um homem que acreditava ser
traído por uma delas com um homem. Na sequência, a indiferenciação sexual muda de
protagonista, numa vertigem literária que também ela muda de narrativa para lírica,
sem lhe faltar, aqui e ali, excurso ensaístico, a denotar crítica, humor, ou mesmo
sátira que opõe conceitos ao preconceito social.
Apenas a dor anima o homem,
a dor transfigurada na impostura da desforra,
qualquer que seja a condenação que celebre.
Na dissertação desse ofício haverá sempre um responsável
pela minha dor.
Jamais serei eu mesma a culpada.
As mulheres que amei foram mortas por estarem com outra
mulher.
Novos ofícios ambientados no jogo caseiro de ventura
e desventura.
As três foram violentamente assassinadas:
Lucíola Eugenia Anete.
Devo agradecer que me tenham deixado viva?
Entre o sagrado
e o profano estabelece-se outro espaço de fronteira, patente, por exemplo, na torrente
caudalosa dos versos, à maneira de Walt Whitman, ou à maneira de tantos como Álvaro
de Campos, versos que se ordenam em longas estrofes como hinos ou em extensos poemas
como odes. Esta torrencialidade, muitas vezes marcada pelo léxico litúrgico, outras
tantas indissociável do erotismo, assinala o estilo de Floriano Martins, referido
a deuses e deusas, recamados de predicados e virtudes, como no “Salvé Rainha”, em
detrimento da ação. Sequências litúrgicas, que revelam bem o amor do poeta pelas
palavras, ocorrem por vezes a meio de narrativas, caso de 12 Fantasmas de Lavínia di Lúvia, série de histórias narradas por Lavínia:
Eu sou a ventania das profundezas.
Eu sou a orquídea desaparecida na noite.
Eu sou o orvalho acordado no interior de um vulcão.
Eu sou o último combatente de tua grandeza.
Eu sou um deus que abre teu corpo até o Norte.
Lavínia repetia as frases destacadas no livro que Michel
lhe pusera em mãos. Um rio de óleos descia por seu corpo, sem que ela recordasse
em que momento tirara a roupa. Aquele azeite irreverente lhe dava um sentido de
fraternidade a seu espírito. Aqueles laços intermediários deveriam ser bastantes
para unir as letras extraviadas de seus sentidos. As lacunas de sua memória talvez
aflorassem ou então perdessem de vez a importância.
O amor pelas
palavras é evidente em Floriano Martins de maneiras várias. Palavras são corpos,
as palavras organizam-se em discursos, esses discursos são personagens e até pessoas.
A interação entre discursos, próprios e alheios, é constante, constante a criação
de discursos que se encaixam uns nos outros, trazendo à mente a imagem das bonecas
russas. É assim que Lavínia escreve uma caderneta independente do seu diário em
“12 histórias de assombração”, mas a própria Lavínia é uma narrativa maior, a começar
pela poética do nome, a continuar na circunstância dos seus 78 anos, em que inicia
o seu primeiro romance, independente das narrativas mencionadas, datadas as frases
de momentos humanamente impossíveis, como se houvesse alguma coisa impossível na
literatura. Seja exemplo o facto de o texto “Fantasma do Café”, mais propriamente
Café Louise, estar datado de 2029.
Estes textos
de géneros híbridos, muitas vezes góticos na sua tonalidade obscura e metaforização
luxuriante, na sua referência às divindades infernais, caso de Leviatã, no “Fantasma
da autópsia”, em 12 Fantasmas de Lavínia di
Lúvia, giram constantemente em torno da morte, e mesmo em torno das nossas mortes
várias. Assim remata “Fantasma de autópsia”: “Eu não esqueço quantas vezes tive
que morrer”.
Outra circunstância
recorrente, a tocar o leitor com o estilete da realidade pessoal, é a de frequentemente
a escrita parecer autobiográfica, pertença ou não a autobiografia a uma Lavínia
di Lúvia ou a um narrador do género masculino. Bem sabemos, oficiais do mesmo ofício,
que a autobiografia das Lavínias carrega sempre a nossa vida.
MARIA ESTELA GUEDES (Portugal, 1947). Poeta, dramaturga, ensaísta, dirige uma imensidão virtual que se chama TriploV. Membro da Associação Internacional de Críticos Literários (AICL), da Associação Portuguesa de Escritores (APE), da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa, do Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA), da Associação 25 de Abril, das Comissões Interinstitucionais da Academia Lusófona Luís de Camões e do Instituto Fernando Pessoa – Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas. Nessa qualidade vem integrando as Comissões de Honra de diversos congressos. Investigadora no Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL), tendo co-organizado cinco edições do colóquio internacional Discursos e Práticas Alquímicas e os dois primeiros volumes das respectivas atas. Foi Assessora Principal da bibliotecária no Museu Bocage Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Lisboa.
Nossa artista convidada nesta edição da Agulha Revista de Cultura é a fotógrafa francesa Agnès Geoffray. Uma valiosa leitura crítica de Eva Wittocx situa sua obra como um ideal equilíbrio entre realidade e ficção, entre situações cotidianas e impensáveis. Suas fotografias, instalações e vídeos combinam o desconhecido com o aterrorizante, como nos contos de fadas populares. Um fascínio pelos vestígios visíveis e invisíveis de desordem, ou mesmo desastre, em situações e eventos cotidianos está subjacente aos textos, fotografias, vídeos e apresentações de slides em STUK. Em fotografias quase inteiramente brancas, composições horríveis inspiradas em imagens da mídia, ou composições com as quais estamos familiarizados da iconografia tradicional, escapam aos olhos do público. Outra importante voz crítica, a da curadora belga Katerina Gregos, destaca que todas as fotografias de Geoffray podem ser vistas como lugares latentes de devir e equivalentes espaciais que representam nossos medos infantis ou nossos piores pesadelos adultos. Mas, além de seu impacto visual sinistro e imersivo, as fotografias de Geoffray acabam abrindo um espaço para a imaginação e para a ficção e, nesse espaço, as possibilidades de interpretação são ilimitadas. Agradecemos à fotógrafa sua imediata aceitação de participar da presente edição.
Agulha Revista de Cultura
Número 216 | setembro de 2022
Artista convidada: Agnès Geoffray (França, 1973)
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